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Breve Histórico da Educação Canadense para as Pessoas com Deficiência

CAPÍTULO II: EDUCAÇÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO BRASIL: POLÍTICAS E

3.1 Breve Histórico da Educação Canadense para as Pessoas com Deficiência

A história da educação canadense para pessoas com deficiência acompanha o contexto mundial, no qual o Brasil também se insere, onde a educação das pessoas com deficiência tem início em escolas residenciais, depois é transferida para as salas de aula segregadas nas escolas públicas – no momento histórico denominado de integração – e, em seguida, para as escolas onde os alunos com deficiência estão incluídos em salas de aula regulares juntamente com seus pares, caracterizando a era da inclusão escolar e social.

Na década de 1950, as pessoas com deficiência estavam totalmente excluídas do sistema de educação pública canadense, momento histórico em que o modelo médico- patológico predominava no âmbito global e local (FISHER e GOODLEY, 2007; THOMAS, 2004). A partir desse modelo, especialistas médicos e educacionais aconselhavam muitas famílias a enviar seus filhos com deficiências para outros locais, uma vez que esse grupo social era visto como “doente” e a escola não era o local apropriado para “cuidar” deles. Durante esse período histórico, predominavamno Canadá as grandes instituições residenciais onde muitas pessoas com deficiência eram enviadas e passavam décadas – até mesmo uma vida – vivendo em uma instituição, longe de familiares, amigos e comunidade.

A visão patológica oficial sobre as pessoas com deficiência proveio do consenso internacional através das assembleias junto à Organização Mundial da Saúde-OMS. Em 1976, surgiu a conceituação para a classificação desse grupo social nomeada International Classification of impairments, disabilities, and handicaps: a manual of classification relating to the consequences of disease (ICIDH), publicada em 1989. A ICIDH regula as normas de muitos países para garantir os direitos civis às pessoas com deficiência, a partir do enquadramento médico, nas descrições anatômicas de cada deficiência, presentes no relatório.

No campo educacional, a ICIDH também se tornou, mundialmente, base para reforçar a exclusão de pessoas com deficiência e encaminhá-las para serviços educacionais distintos daqueles oferecidos para a maioria da população.

Nesse sentido, a institucionalização foi muito forte no Canadá e em algumas dessas instituições aconteciam verdadeiras “aberrações” e afrontas aos direitos humanos desse grupo social, queera vítima de abusos sexuais, maus tratos e viviam em condições sub-humanas. No modelo institucional, as pessoas com deficiência passam a ser vistas como “um ponto fora da

curva da normalidade” e as instituições possibilitaram, então, o assistencialismo a essas pessoas, antes eliminadas violentamente das relações coletivas, através de assassinato e abandono nas ruas. Através das instituições, as pessoas com deficiência passaram a ser assistidas e „protegidas‟, ainda que com a marca de doença, dor, anormalidade e incapacidade, estigmas necessários para garantir o amparo institucional (MARQUES, 1998, p. 8).

Durante uma das minhas passagens pelo Canadá no percurso do mestrado em 2011, tive a oportunidade de conhecer, na cidade de Winnipeg, uma dessas instituições25 e comprovar quão terríveis são esses lugares. Muitos dos pioneiros que iniciaram o movimento de autoadvocacia no Canadá foram reféns dessas instituições e um dos trabalhos mais fortes que hoje eles exercem é lutar junto ao Governo para pôr fim a elas e, assim, poder oferecer às pessoas com deficiência uma vida digna, juntamente com o direito de viver na comunidade, ter uma casa, um emprego, vida social, família, amigos etc.

Essa triste experiência dentro de uma instituição foi compartilhada por David, pessoa com deficiência intelectual e um dos integrantes do movimento de autoadvocacia no Canadá:

Eu morei em uma instituição durante 18 anos e eu estou cansado de ver aquelas pessoas, é muito triste. Na instituição, eu trabalhava lavando a louça. Eu trabalhava todos os dias e não recebia nada por isso. Todos nós tínhamos que frequentar o mesmo banheiro, não havia portas e nenhuma privacidade. É muito triste. Nos quartos também, não havia cortinas, portas e dormiam 31 garotos em um único quarto. Eu fui abusado durante muitos anos nessa terrível instituição, mas eu simplesmente não sabia o que estava acontecendo. Um dia, eu fui pra casa e minha mãe telefonou para instituição para perguntar se estava acontecendo alguma coisa comigo, eu me lembro disso. Quando eu voltei de casa eu fiquei preso em um quarto durante três semanas. Então minha mãe nunca mais ligou, porque toda vez eu tinha problemas. Eu tentei fugir por noves vezes e na última, finalmente, eles deixaram eu ir morar na comunidade. As instituições precisam ser destruídas e é por isso que temos esse trabalho no People First (David, deficiência intelectual).

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Apesar da grande luta do movimento de autoadvocacia junto ao Governo para fechar essas instituições, em

O depoimento de David, resgatado do filme The Freedom Tour26, mostra a realidade opressora vivida por muitas pessoas com deficiência no Canadá com os métodos e tratamentos adotados em algumas instituições especializadas. Por isso, quando o país assina a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006) reforça o movimento de resistência das pessoas com deficiência engajadas na luta contra todo tipo de tratamento indigno relativo a esse grupo, assim como na busca pela extinção daquelas instituições fortemente segregadoras e responsáveis por impedir a atividade e participação social de pessoas com deficiência, conforme abordo nas seções a seguir sobre o impacto positivo da Convenção na vida de pessoas com deficiência nos dias atuais.

A oportunidade que David teve de ter acesso a um processo informal de educação, por meio do conhecimento de autoadvocacia e da participação no grupo People First, trouxe para ele a consciência do seu valor enquanto ser humano, proporcionando a autoafirmação na reivindicação pela dignidade oferecida através de suporte coletivo para que fosse inserido na comunidade e tivesse acesso à moradia, emprego, família, amigos etc. Paulo Freire (1970) chama esse processo que David experienciou de transição, como resultado de sua conscientização sobre sua condição de opressão. O que quer dizer que somente quando David descobriu, através da educação, as estratégias institucionais de opressão, passou a enxergar sua libertação pela crença em si mesmo e seu engajamento na luta. Isso teve efeito positivo sobre eleno sentido de mudança de sua posição na sociedade para uma nova postura, agora empoderada (!).

Em outras palavras, o processo de transição que David passou tem a ver com a sua consciência acerca do desempoderamento a que as pessoas com deficiência estão submetidas em suas vidas:

Entre as pessoas com deficiência, o empoderamento tem sido entendido através da sua compreensão do desempoderamento. A busca pelo empoderamento começa com a experiência de desempoderamento. Isso ajuda a explicar o significado que a ideia de empoderamento tem entre as pessoas com deficiência. Eles têm uma vasta experiência de desempoderamento através de segregação, institucionalização, isolamento, inferiores oportunidades educacionais, pobreza, baixa renda, e as restrições sobre as oportunidades e escolhas. Para pessoas com deficiência ativistas, empoderamento significa desafiar o seu desempoderamento, ter mais voz e

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Um dos trabalhos desenvolvidos pela organização People First da cidade de Winnipeg – Canadá foi a

produção de um filme chamado Freedom Tour, traduzido para a língua portuguesa como a Viagem para a Liberdade, que mostra muitas pessoas com deficiência que viveram nessas instituições e foram “libertas”,

através do trabalho dos autoadvogados junto ao Governo. No filme, as pessoas discorrem sobre suas terríveis experiências de vida nessas instituições inspirando outras pessoas e principalmente os órgãos governamentais a porem fim a essas instituições que feriam os direitos humanos. O depoimento de David foi colhido neste filme, quando eu estava na cidade de Winnipeg/Canadá, por ocasião do meu mestrado no ano de 2011.

controle sobre suas vidas, sendo capazes de influenciar os outros e trazer a mudança. O objetivo é uma maior autonomia e autodeterminação (BERESFORD, 2013, p. 9).

O Empowerment é, então, um conceito predominantemente político e isso é evidente no ato de reivindicação que pessoas com deficiência expressam, quando se apropriam desse conceito. Nesse contexto, o poder pessoal e o poder político são indissociáveis, porque aquilo que é da vida privada da pessoa com deficiência passa a fazer parte da luta por direitos, por exemplo, quando pessoas com deficiência lutam para viver sozinhas ou constituir família. O empoderamento pessoal acarreta, portanto, preocupar-se com o incentivo à mudança em indivíduos, em conformidade com os valores e exigências do estado e serviços.

Freire (1970) reforça que esse é o papel eminentemente pedagógico da transformação que é primeiro individual e depois contribuição para uma mudança de caráter coletivo. Isso é comprovado também na experiência de David, uma vez que a partir da sua história de vida, de assujeitamento, ele se engajou ao People First e fortificou sua transformação pessoal a partir da filosofia do movimento e junto a outras pessoas com trajetórias de vida semelhantes. Nesse caso, a intencionalidade da educação (aqui informal) de formar sujeitos autoadvogados foi determinante para que essas pessoas pudessem desmistificar suas realidades, criticando-as e refazendo-as.

Retomando a história do movimento de pessoas com deficiência no Canadá, em meados de 1955, começam a ocorrer pequenas mudanças, quando os pais, confrontados com as instituições segregadas como a única opção disponível, começam a organizar sociedades sem fins lucrativos em comunidades de toda a província de British Columbia e a fornecerem aulas nos porões das igrejas para seus filhos. Assim como no Brasil, iniciam-se as associações filantrópicas que, apesar da ênfase maior no cuidar do que no educar, constituem os pioneiros da educação especial, uma vez que impulsionam o governo a criar legislação para fornecer o financiamento para as associações locais que dirigem as escolas para alunos com deficiências27.

Paralelo a isso, a Universidade de British Columbia (UBC) realizou a primeira formação de professores da “educação especial”, nomeando um Professor de Educação

27 O financiamento dos programas estava no mesmo ritmo que o financiamento para a educação pública - em 1956, a 25,36 dólares por mês por criança.

Especial para treinar professores de crianças com deficiências, o que contribuiu para dar visibilidade a essa modalidade educativa (BROWN e GIBSON, 2012).

Apesar de ser um avanço, considerando que essas são as primeiras instituições canadenses a se preocuparem com a educação para pessoas com deficiência, até então negligenciadas pelo sistema de ensino formal, algumas dessas instituições filantrópicas não contribuíram para a autoadvocacia das pessoas com deficiência, uma vez que não havia iniciativas preocupadas em proporcionar às pessoas com deficiência uma vida mais livre, autônoma e cidadã.

As atividades desenvolvidas nessas organizações eram direcionadas tão somente a aulas de pintura, de canto, peças de teatro e dança, não favorecendo uma inserção social e não contribuindo para que tais alunos com deficiência estivessem inseridos no mercado de trabalho. Gauthier (1998) diz que o simples fato da educação não ter uma intencionalidade de reflexão sobre o significado da experiência individual-coletiva leva a uma ação „sem sentido‟ prático, por a educação estar desconectada das relações sociais.