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Legislação e o Compromisso Governamental com o Modelo Social da Deficiência

CAPÍTULO II: EDUCAÇÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO BRASIL: POLÍTICAS E

4.1 Dimensão Global

4.1.2 Legislação e o Compromisso Governamental com o Modelo Social da Deficiência

Brasil e Canadá adotaram a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006) e, com isso, o modelo social da deficiência, assumindo, portanto, o compromisso de transformação social e não simplesmente adequação individual de pessoas com deficiência ao espaço comum. Os princípios dos direitos humanos à luz do modelo social da deficiência adotado pela Convenção determinam de forma geral e universal que:

(a) Toda pessoa com deficiência tem direito à educação de qualidade e em igualdade com as demais pessoas;

(b) Toda pessoa com deficiência tem direito a uma vida digna, sem discriminação e com participação social;

(c) Toda pessoa com deficiência tem direito à vida pública e a ter acesso ao mercado de trabalho, lazer, cultura, matrimônio, entre outros;

(d) Toda pessoa com deficiência tem direito a suporte através de serviços sociais e acessibilidade;

(e) Toda pessoa com deficiência tem o direito de ter voz e de ser respeitada em suas escolhas, desejos e projetos de vida.

Os governos, quando buscam ações que evidenciem o modelo social da deficiência, contribuem para a evolução social de formas humanizadoras e que auxiliam na criação de estratégias que atendam melhor às necessidades das pessoas com deficiência (AUGUSTIN, 2012) dentro de um mundo de representações (WOODWARD, 2000) e, com isso, favorecem a oportunidade de desenvolvimento do empoderamento desse grupo social.

Brasil e Canadá, conforme descrito nos capítulos II e III, caracterizam-se distintamente em termos de legislação. Enquanto o Canadá possui uma legislação mais geral que contempla toda a população e apenas diretrizes, sem caráter compulsório, para as pessoas com deficiência, o Brasil é um dos países que se destaca por ter uma das legislações específicas para as pessoas com deficiência mais avançadas mundialmente. A legislação brasileira é ampla e diversa, além do crescimento expressivo no país nessas últimas décadas de diretrizes, projetos, campanhas, seminários, fóruns e eventos que enfocam a inclusão socioeducacional de pessoas com deficiência.

Tanto as influências internacionais, a pressão do movimento das pessoas com deficiência, que reivindicavam dignidade, direitos humanos e igualdade de oportunidades, como a adesão do governo brasileiro às determinações das agências financiadoras internacionais, foram aspectos determinantes para que o governo brasileiro consolidasse um marco político-legal específico para as pessoas com deficiência: direitos que vão desde a instalação de uma simples rampa à liderança e participação política. Dessa forma, as pessoas com deficiência no Brasil estão assistidas no texto legal em todas as áreas de sua vida.

No Canadá, não há um arcabouço legislativo e político tão extenso como no Brasil. O marco político-legal canadense, concernente com os direitos humanos, é genérico e engloba toda a população. É interessante apontar que esse fato - de não ter uma legislação específica - evidencia que as pessoas com deficiência são vistas como pessoas e não pela ótica da deficiência. Por ser pessoa, pressupõe-se ter os mesmos direitos garantidos. Por outro lado, a adoção da Convenção tardiamente à sua publicação mundial (cinco anos após) revela a negligência governamental canadense acerca das especificidades de luta do grupo social das pessoas com deficiência, que inclui as relações subjetivas no que se refere à discriminação, preconceito e ações segregadoras que atingem pessoas com deficiência em todo o mundo e não apenas em países pobres.

Em termos da efetivação dos direitos humanos das pessoas com deficiência, no entanto, este estudo mostra que isso acontece independente da quantidade de leis, diretrizes e política, pois tem relação com a cultura que pode ser mais inclusiva ou não. Assim, embora Brasil e Canadá oficialmente tenham aderido à Convenção como documento base nas questões que envolvem as pessoas com deficiência, as concepções e modelos sobre a deficiência não são homogêneas, ao contrário, variam nas práticas e nos discursos em cada espaço e instituição, como nas políticas, leis, escolas, famílias e universidades. Em outras palavras, as práticas e discursos públicos, mesmo quando afirmam estar comprometidos com a inclusão das pessoas com deficiência e com o modelo social da deficiência, são carregados de subjetividade e, portanto, podem se materializar de diversas formas, inclusive de modo patologizante e limitante nas relações pessoais ou institucionais com as pessoas com deficiência.

Exemplo disso é a adoção pelo governo brasileiro de características médicas da deficiência, para a inclusão de pessoas com deficiência, como é o caso no fornecimento do Atendimento Educacional Especializado (AEE) na escola regular e no decreto-lei de acessibilidade (nº 5296/04). No Canadá, apesar de não ter uma legislação específica para as pessoas com deficiência, há ações governamentais que são fornecidas com base no

diagnóstico da deficiência, como os programas de amparo financeiro e os Group Home. O governo, nesse contexto, ao mesmo tempo em que reconhece que a deficiência é uma característica grupal vulnerável e, com isso, reforça os direitos desse grupo, reforça também os estereótipos patológicos relacionados às pessoas com deficiência, porque, uma vez afirmada a deficiência, este conceito carrega a subjetividade que interfere mais na trajetória individual das pessoas com deficiência do que na mudança da sociedade como preconiza o modelo social da deficiência.

A experiência de Francisco (brasileiro) ilustra essa crítica, quando a instituição especial é que foi responsável de dizer quando ele estaria pronto para ingressar no mercado de trabalho e, assim, ter bom desempenho, diferentemente das demais pessoas que são livres para provarem suas capacidades durante o processo de contratação. A voz da instituição, além de calar Francisco, é que foi claramente „o comprovante‟ de sua capacidade. Ainda que a ação da APAE tenha como foco a inclusão, através da empregabilidade, subjetivamente prevalece um modelo médico da deficiência.

O mesmo acontece com as ações para a inclusão educacional no Canadá em que, muitas vezes, não há uma mudança na escola e ainda prevalece a materialização da exclusão através das práticas educativas. A experiência de John mostra essa realidade, quando em seu Programa Educacional incluiu-se um “cenário alternativo” e ele teve que fazer outras atividades que não aquelas designadas aos demais estudantes. No horário da Educação Física, por não ser exigência a mudança das aulas para incluí-lo, o estudante acabou tendo que realizar atividades paralelas que nada tinham a ver com o que a turma realizava. Essa diferenciação de John vai contra os princípios postos pela Convenção de Guatemala (1999): “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais”, mas que esse tratamento desigual não signifique desvantagem, ao contrário, seja a equidade para garantir os direitos negados à minoria. A Convenção é o brado mais recente em favor do direito de ser diferente na escola, sem que essa diferença seja desqualificada. No caso de John, ele foi tratado desigual de forma desvantajosa, uma diferenciação com base na deficiência que o impede de aprender os conteúdos de Educação Física como os demais colegas, configurando-se, portanto, uma distinção negativa.

Dessa forma, as escolas e instituições especiais são autorizadas – através das diretrizes consolidadas com base na deficiência – a enquadrar as pessoas com deficiência em práticas específicas que reforçam a identidade desse grupo social. Embora essa permissão, muitas vezes, cause interpretações equivocadas que intensificam a segregação e exclusão das pessoas com deficiência dentro do espaço comum em razão da sua especificidade e diferenciação:

A identificação é, pois, um processo de articulação, uma suturação, uma sobredeterminação (...). como todas as práticas de significação, ela está sujeita ao „jogo‟ da différence. Ela obedece à lógica do mais de um processo, a identificação opera por meio da différence, ela envolve um trabalho discursivo, o fechamento e a marcação de fronteiras simbólicas, a produção de „efeitos de fronteiras‟. Para consolidar o processo, ela requer aquilo que é deixado de fora – o exterior que a constitui (HALL, 2012, p. 134).

Segundo Stuart Hall (2012), a identificação e, consequentemente, o enquadramento das identidades são sobredeterminações, mas que permitem a resistência, não sendo, portanto, um ajuste completo. Nesse contexto, as pessoas com deficiência em todo momento são enquadradas nas suas identidades através dos discursos governamentais incorporados nas relações sociais subjetivas. Assim, mesmo que impere o discurso da inclusão através das políticas contemporâneas, os vestígios da história de assujeitamento e tutela que as pessoas com deficiência sofreram mundialmente são evidenciados, ao prevalecer ações protecionistas e assistencialistas a esse grupo.

Portanto, tanto no Brasil quanto no Canadá, as pessoas com deficiência precisam adquirir competências para autoadvogar-se e, assim, desconstruírem a representação individualizada e limitante sobre a deficiência que o discurso coletivo sobredetermina. Como afirmam Glat e Fellows (1999 apud GLAT, 2004), a eliminação de rótulos é o primeiro elemento fundamental em sujeitos autoadvogados, em que a pessoa passa a se ver além da deficiência, mas dentro de arranjos culturais que as impõem estereótipos e que, por isso, são tuteladas em todas as áreas da vida.

Adquirir essa consciência é importante, porque permite um movimento individual (do sujeito consigo) e coletivo (da comunicação do sujeito sobre si), base para a mudança das relações sociais e adesão de novos valores culturais. Esse é o caminho para a adoção de um modelo social da deficiência, em que essas pessoas tenham o direito de expressar suas diferenças e fazer escolhas de acordo com seus projetos de vida, e não simplesmente por enquadramento institucional, conforme ditam as ações do governo canadense e brasileiro.