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Relações Familiares: Ponto de Partida para o Empoderamento e a Autoadvocacia

CAPÍTULO II: EDUCAÇÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO BRASIL: POLÍTICAS E

4.3 Dimensão da Experiência individual de Empoderamento e Autoadvocacia

4.3.1 Relações Familiares: Ponto de Partida para o Empoderamento e a Autoadvocacia

A história de exclusão das pessoas com deficiência ocasionou a guarda desse grupo social restritamente ao ambiente familiar. Diferentemente do Canadá, a institucionalização de pessoas com deficiência apesar de também ocorrer no Brasil, não era de maneira tão frequente, pois não havia um número extenso de instituições especializadas que atendessem a todas as pessoas com deficiência nas diferentes regiões do país. Nesse contexto, a segregação e exclusão das pessoas com deficiência ocorriam na própria casa onde elas permaneciam trancafiadas, escondidas e longe do convívio social. Nos dias atuais, há uma presença maior das pessoas com deficiência na sociedade, no entanto, elas permanecem sob a tutela da família, que decide sobre seus destinos ainda que em alguns momentos isso não pareça evidente.

Segundo Batista e França (2007, p. 117), é na família que a criança tem a primeira referência sobre sua identidade. Nesse caso, a concepção familiar sobre a deficiência é que vai determinar o desenvolvimento sociocognitivo das pessoas com deficiência e as possíveis situações favoráveis para o empoderamento e autoadvocacia:

A família é o primeiro grupo social no qual somos recebidos. É por meio da família que, num primeiro momento, temos acesso ao mundo. Somos apresentados a uma série de informações que nos dirão quem somos e o que esperam de nós. Trata-se da unidade básica de desenvolvimento e experiência, onde ocorrem situações de realização e fracasso, saúde e enfermidade. É um sistema de relação complexo dentro do qual se processam interações que possibilitam ou não o desenvolvimento saudável de seus componentes.

No Brasil, as famílias das pessoas com deficiência tiveram um papel fundamental na construção das instituições especializadas. Em 1954, no Rio de Janeiro, pais de pessoas com

deficiência, militantes pelas causas de seus filhos, organizaram-se para construir um local em que eles/elas pudessem estudar, receber tratamento médico e socializar-se com seus pares. A APAE foi uma instituição brasileira que nasceu nesse contexto: pais de pessoas com deficiência intelectual e múltiplas buscavam, com o movimento Apaiano, ter a garantia de saúde, educação e assistência social para seus filhos, por isso uniram força. A atividade política dos pais refletia a omissão do governo brasileiro que não garantia os direitos humanos às pessoas com deficiência, diferentemente do Canadá em que o governo apoiava no financiamento as instituições especializadas para pessoas com deficiência.

Mesmo com representatividade forte de pessoas sem deficiência, como a família, para defender seus direitos, as pessoas com deficiência também foram autoras do movimento social em defesa de si. O marco da organização de pessoas com deficiência no Brasil ocorre em 1980, o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, quando se realizou o Primeiro Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes, que ocorreu nos dias 9 e 10 de agosto de 1980, em São Paulo. Nele, as pessoas com deficiência debateram e afirmaram a importância de sua participação no “trabalho, educação, lazer e em todas as atividades da sociedade, mas sem paternalismos” (JUNIOR, 2010, p. 37).

A partir desse momento, destaca-se a intensa e crescente participação da pessoa com deficiência nesse movimento: “se no início eram pais e profissionais que por eles reivindicavam seus direitos, aos poucos tomam a palavra e, sem tutela, sua voz começa a ecoar” (CAIADO, 2009, p. 211). Alseni, mulher com deficiência desde a infância, desafiou os limites impostos pela sociedade em razão da sua condição: ela foi a única mulher com deficiência da sua época que deixou sua cidade (do interior nordestino) e foi morar e estudar numa instituição especializada na Capital (pois no interior onde ela morava não havia instituições especializadas). Alseni foi uma exceção, porque ao ter saído tão jovem de sua casa e ter aberto mão da convivência familiar, ela pôde estudar e se desenvolver em diversas áreas da vida, aspectos que seriam difíceis de ela conseguir pela falta de expectativa cultural em relação ao desenvolvimento sociocognitivo das pessoas com deficiência.

Por mais que a voz dela tenha sido incisiva na mudança de cidade, como conta Alseni, essa experiência não foi uma escolha livre, pelo contrário: ter que morar em uma instituição especializada era a norma política e cultural mundialmente determinada às pessoas com deficiência. Isso foi tanto positivo quanto negativo na vida de Alseni. Ela conta que essa foi uma experiência bastante dolorosa para uma criança de sete anos de idade, a qual teve que aprender logo cedo a tomar decisões em sua vida e viver longe do convívio de sua família. Por outro lado, essa experiência contribuiu para torná-la uma mulher empoderada, pois ela

não teve a proteção dos familiares que, muitas vezes, limitavam-na. A oportunidade de hoje, Alseni ser formada em Pedagogia e concursada, só foi possível porque ela vivenciou toda essa trajetória particular de vida.

Mariana, diferentemente de Alseni, teve total apoio e oportunidades de desenvolvimento proporcionadas pela sua família. Filha de pais de classe média alta, a jovem teve acesso a uma educação de qualidade, a viagens, tecnologias variadas, participação em grupos de lazer, facilidade de transporte (porque possui carro particular) e ao mercado de trabalho. Mesmo contando com o conforto familiar, a jovem decidiu sair de casa por um período de oito meses para trabalhar em uma ONG em uma cidade pobre da Paraíba, imbuída pelo desejo de ajudar crianças carentes.

Mariana, ao convencer seus pais de morar sozinha numa cidade carente, em condições distintas da vida que tinha, rompeu com a visão incapacitante da deficiência e com as representações sociais femininas, mostrando-se uma mulher forte, corajosa, destemida. A liberdade que ela encontrou em sua família permitiu que ela expressasse seus desejos e realizasse os seus projetos de vida, o que a ajudou a desenvolver uma identidade própria, a qual constitui um dos pilares da autoadvocacia, como afirma Glat e Fellows (1999 in GLAT 2004). A construção dessa identidade está, portanto, relacionada à ressignificação da identidade das pessoas com deficiência, afirmando-as como indivíduos únicos e singulares, e está presente na história de vida de Mariana, quando ela reconhece o seu valor humano (DANTAS, SILVA, CARVALHO, 2013). Isso mostra que a vivência de um processo de empoderamento e protagonismo não depende unicamente das questões econômicas relacionadas à família ou de fortes situações de opressão, como no caso de Alseni, mas de processos subjetivos de educação.

No Canadá, comumente, os jovens geralmente saem da casa de sua família ao atingirem a maioridade, e, da mesma forma, acontece com as pessoas com deficiência, quando elas possuem a opção de: (a) morarem sozinhas com ou sem suporte governamental; (b) serem “adotadas” por outras famílias com suporte financeiro do governo; (c) morarem em group homes, casas mantidas pelo Governo em que moram três ou mais pessoas com deficiência. Vale destacar que tais possibilidades de moradia para pessoas com deficiência podem depender tanto do contexto de vida em que pessoas são direcionadas para determinado tipo de moradia quanto por escolha pessoal de cada um. Ao mesmo tempo em que ainda impera um modelo assistencialista, a exemplo dos group homes neste modelo o governo supre todas as necessidades básicas sem dar a oportunidade de elas, por exemplo, terem trabalho e ser sustentadas pela sua própria renda –, esta política corrobora para o

empoderamento individual porque, sem a intervenção direta da família, essas pessoas têm a chance de decidirem sobre suas vidas mais abertamente.

Shanne, atual presidente do People First, viu-se desligado da famíliaaos nove anos de idade, após a descoberta do diagnóstico sobre sua deficiência intelectual leve. A partir desse momento, ele teve que ir morar em um group home, onde foi escolarizado e permaneceu muitos anos de sua vida. O afastamento familiar em tenra idade o fez sofrer demais e, ao mesmo tempo, contribuiu para ele buscar o seu valor como ser humano e se engajar na fundação do movimento de autoadvocacia (Shanne esteve presente na reunião inaugural que deu origem ao People First). Hoje, Shanne tem sua própria casa, é casado, tem filhos e netos, e possui liderança no movimento, ajudando outras pessoas a se tornarem autoadvogadas, aspectos que revelam que o seu empoderamento perpassa a esfera individual em direção ao coletivo.

Neves (2005) afirma que a ideia inicial da autoadvocacia foi difícil para inúmeros pais que criam os seus filhos como pessoas dependentes ao pressupor a deficiência associada à cura e cuidado. O posicionamento dos familiares em relação a sua vida e escolhas é um fator chave na construção do empoderamento, quando os familiares estimulam a criação da autonomia e não permitem que o „rótulo‟ de deficiente tenha efeito desqualificador na história de vida desse grupo. Isso deve ser uma ruptura diária no combate à visão da pessoa com deficiência como alguém que “não tem condições de agir independentemente no dia a dia e que, portanto, necessita de assistência direta de profissionais e proteção da família durante toda sua vida” (GLAT, 2004, p. 2).

Diferentemente de Shanne, homem com deficiência canadense, que teve a oportunidade de casar-se e ter filhos, Bia, Mariana e Everton, adultos brasileiros, revelam que ainda há bastante tabu na relação entre pais e filhos com deficiência, principalmente quando se refere à sexualidade. Bia e Mariana, mesmo em idade adulta, não têm a liberdade para iniciar a vida sexual e são constantemente vigiadas por suas famílias, pela tutela direta e pelo discurso limitador. Foucault (1979) discorre que as relações de poder estão inseridas nas múltiplas redes de relações sociais, como família, escola, igrejas, e atuam como uma força que coage, controla e disciplina o indivíduo. Para o autor, não existe sujeito a não ser como o simples e puro resultado de um processo de produção cultural e social. Esse controle sobre a sexualidade também atinge as próprias mulheres com deficiência que passam a autogovernar- se ao esperarem o consentimento dos pais para iniciarem sua vida sexual.

Everton „resistiu‟ ao disciplinamento de seus familiares, ao se definir como homossexual e reivindicar o direito de ter sua sexualidade reconhecida dentro de casa. Isso foi

resultado do fortalecimento da sua identidade através da participação em grupo de protagonismo (como o Projeto de extensão Pró-líder), que despertou seu interesse para participação nos movimentos sociais, incluindo o movimento LGBT no qual ele leva a pauta que envolve deficiência, sexualidade e relações de gênero.

As experiências relatadas, tanto no Canadá como no Brasil, evidenciam que adquirir o empoderamento e a autoadvocacia está inerente ao sujeito e a sua história de vida, seja em relações mais positivas no seio familiar ou em relações opressoras e de exclusão dentro de casa. Durante o processo de coleta de dados, encontrei experiências discriminatórias e dolorosas para as pessoas com deficiência assim como experiências que revelam o rompimento constante de barreiras sociais que impedem o protagonismo. Ambas conduziram a um subsequente empoderamento e autoadvocacia, que foram independentes dos contextos socioeconômicos dos países, mas das relações individuais-coletivas que dependem de contextos culturais-locais.