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Qualidade de vida: um referencial útil para as políticas urbanas?

Introdução É grande o interesse que, ao longo dos anos, o tema da qualidade de vida tem vindo a despertar, 

1.4 Qualidade de vida: um referencial útil para as políticas urbanas?

A revisão que acabou de ser feita de alguns modelos de conceptualização e de operacionalização  do conceito de qualidade de vida permitiu constatar a sua grande complexidade teórica, bem como 

Tendo  por  base  estes  contributos,  mas  também,  de  uma  forma  mais  abrangente,  os  grandes  debates,  anteriormente  abordados,  que  perpassam  a  investigação  sobre  o  tema  (subcapítulo  1.2),  ensaia‐se agora uma clarificação do quadro conceptual que orienta o presente trabalho, retendo‐se  os elementos principais em que este se alicerça. 

Considera‐se, assim, que a designação qualidade de vida expressa o que se poderá considerar como  um  nível  global  de  bem‐estar  dos  indivíduos,  que  incorpora  os  aspectos  relacionados  com  as  condições objectivas em que se desenrola o seu dia‐a‐dia assim como os sentimentos pessoais dos  cidadãos face ao seu quadro de vida concreto. Para além desta complementaridade das vertentes  objectiva e subjectiva, a noção de qualidade de vida encerra, por outro lado, um número alargado  de  dimensões  –  materiais  e  imateriais,  mas  também  individuais  e  colectivas  –  que  tendem  a  ser  reconhecidas como determinantes para uma existência humana gratificante. Revela‐se, deste modo,  como uma construção de síntese, simultaneamente multidimensional e holística. 

Um outro ponto fundamental deste referencial conceptual é o de que a noção de qualidade de vida  não  pode  ser  desligada  da  possibilidade  de  os  indivíduos  definirem  o  rumo  das  suas  vidas,  de  forma  livre  e  pró‐activa.  Esta  perspectiva  é  totalmente  coincidente  com  a  que  é  assumida  pela  Fundação Europeia para a Melhoria das Condições de Vida e do Trabalho no relatório “Monitoring  Quality of Life in Europe” e que é inspirada pelas posições de Sen (Fahey, Nolan e Whelan, 2003, p.  16): “(...) a high quality of life is attained not when a predetermined lifestyle becomes universal, but rather  when  people’s  scope  to  choose  the  lifestyle  they  wish  for  themselves  is  enhanced.  This  has,  of  course,  to  be  achieved within the constraints imposed by economic sustainability and respect for the rights and the needs  of others”. 

Daqui decorrem várias implicações no plano da avaliação empírica. Uma das mais importantes é,  porventura,  a  de  que  não  basta  analisar  resultados  (objectivos  ou  subjectivos),  sendo  igualmente  necessário conhecer as oportunidades que as pessoas têm à sua disposição, bem como as escolhas  que  efectivamente  são  feitas,  pois  todos  estes  elementos  são  cruciais  e  devem  ser  tidos,  conjuntamente,  em  conta.  Uma  outra  implicação  que  importa  sublinhar  prende‐se  com  a  necessidade de as análises não incidirem apenas nas condições de vida e nos recursos acessíveis a  um  nível  individual,  mas  atenderem  de  igual  modo  ao  contexto  em  que  se  desenrola  a  vida  colectiva e às suas características. 

Desde os anos 60 que o interesse suscitado pelo conceito de qualidade de vida tem estado, como se  viu,  muito  associado  a  preocupações  de  natureza  pragmática.  Medir  o  bem‐estar  das  populações  foi  visto  como  um  exercício  útil,  sobretudo  para  melhor  se  poder  orientar  a  intervenção  pública,  que  permanentemente  precisa  de  identificar  os  problemas  e  observar  as  mudanças,  estabelecer  prioridades  para  a acção  e  avaliar  o impacto  das  políticas.  Um alvo  preferencial  destas  medições  foram,  desde  início  (anos  60),  as  cidades,  confrontadas  com  um  crescimento  acentuado  não  acompanhado  por  uma  adequada  estruturação  e  organização  do  espaço  urbano,  o  qual,  pelo  contrário, fez emergir uma série de problemas de natureza social e ambiental. Foram produzidos  muitos  relatórios  onde  as  condições  de  bem‐estar  nos  centros  urbanos  eram  descritas  e  comparadas, existindo, frequentemente, a preocupação de analisar o impacto da urbanização e do 

alastramento  das  periferias  na  qualidade  de  vida  dos  indivíduos  e  das  comunidades  (Hancock,  2000). 

A  leitura  que,  em  geral,  é  feita  da  relevância  destes  estudos  é  a  de  que  eles  pouco  ajudaram.  Os  seus resultados não se traduziram em inputs verdadeiramente úteis para o planeamento e a gestão  das  cidades.  A  comprová‐lo  está,  desde  logo,  o  facto  de  as  políticas  e  projectos  de  intervenção  continuarem  a  ser  concebidos  e  avaliados  com  base  em  preocupações  e  critérios  exclusivamente  sectoriais,  não  se  atendendo  aos  seus  efeitos  numa  perspectiva  holística  de  bem‐estar.  Apesar  da  grande apropriação de que a noção de qualidade de vida foi alvo por parte do discurso político –  que  a  adoptou  como  o  objectivo  final  a  atingir  pelas  políticas  públicas  –,  a  actuação  nas  cidades  continuou  a  desenrolar‐se  como  um  somatório  de  medidas  e  soluções  na  maior  parte  dos  casos  fragmentadas. 

Em  que  medida  constitui  a  qualidade  de  vida,  actualmente,  um  referencial  útil  para  as  políticas  urbanas? 

Antes de mais, importa sublinhar que a qualidade de vida é, hoje em dia, uma meta partilhada à  escala  global  pelos  poderes  públicos  e  pelos  cidadãos.  E  é,  inevitavelmente,  à  escala  das  cidades  que  ela  é  mais  insistentemente  enunciada,  não  só  porque  é  aí  que  se  concentra  a  maior  fatia  da  população, mas também porque as cidades são o grande palco de convergência e de interacção de  um  grande  conjunto  de  mutações  –  sociais,  económicas,  ambientais  (quer  ao  nível  do  ambiente  natural, quer do ambiente construído) e políticas – que criam novos e muito complexos desafios às  políticas públicas. 

Na  Figura  1.8  encontram‐se  representadas  as  principais  linhas  de  força  que  estão  a  induzir  mudanças rápidas e intensas na realidade urbana europeia, com implicações directas na qualidade  de  vida  quotidiana  dos  cidadãos  (EEA,  2007).  As  mudanças  em  curso  no  plano  económico,  conjuntamente com as mudanças demográficas – em particular o envelhecimento populacional e a  alteração das estruturas familiares – que, de resto, surgem frequentemente inter‐relacionadas entre  si, representam os dois principais vectores de transformação. Apesar de as condições ao nível das  diferentes componentes do ambiente urbano terem repercussões consideradas menos importantes  no  presente,  reconhece‐se  que  elas  serão,  no  futuro,  factores  cada  vez  mais  influentes  na  atractividade  e  nos  níveis  de  bem‐estar  que  as  cidades  podem  proporcionar.  No  caso  das  transformações na esfera política, estão em causa mecanismos que são, por um lado, facilitadores  das outras mudanças referidas e, por outro, eles próprios geradores de novas mudanças e desafios.  Perante  a  metamorfose  da  realidade  urbana,  intensifica‐se  a  necessidade  de  adopção  de  um  referencial que ofereça uma visão sistémica dos problemas e das oportunidades e que, na prática,  ajude  a  que  as  políticas  urbanas  sejam  orientadas  e  articuladas  no  sentido  de,  transversalmente,  fazerem a diferença em termos do bem‐estar das pessoas e das comunidades. Face à sua natureza  multidimensional e abrangência, o enfoque na qualidade de vida revela‐se, assim, particularmente  útil para a integração das estratégias, ao mesmo tempo que fornece uma base de consenso para a  concertação dos diferentes interesses e actores. 

Não basta, contudo, concluir que a qualidade de vida se mantém como um referencial adequado  do ponto de vista teórico. É necessário, designadamente, que ele seja assumido numa perspectiva  de longo prazo por todos aqueles que têm responsabilidades ao nível da gestão e do planeamento  urbanos, nas suas práticas e decisões do dia‐a‐dia. 

Figura 1.8 Principais linhas de força da mudança urbana na Europa

Fonte: PLB (2008) in EEA (2007, p. 44)

Neste  domínio,  mudanças  em  curso  ao  nível  da  esfera  política,  a  que  atrás  se  fez  referência,  parecem  ser  propícias  a  uma  abordagem  mais  integrada.  Neste  âmbito,  importa  destacar  as  mudanças  que  atingem  o  planeamento  urbano  e  que  têm  levado  a  que  este  deixe  de  ter  apenas  uma  vertente  física  e  deixe  de  estar  fechado  num  grupo  técnico‐profissional  e  passe  a  ser  mais  abrangente, estratégico e participado (Ferrão, 2010). 

Perante  uma  realidade  tão  complexa  exigem‐se,  com  efeito,  novas  formas  de  pensar  e  de  colocar  em prática as políticas urbanas. 

Considerando que a este nível muitos aspectos estão, de facto, a mudar, Wassenberg, van Meer e  van Kempen (2007) apontam aquelas que consideram ser as principais modificações que podem ser  já observadas. 

Uma  primeira  que  assinalam  está  relacionada,  justamente,  com  a  tendência  para  que  as  políticas  deixem  de  ter  uma  vincada  orientação  sectorial  e  passem  a  ser  integradas,  opção  justificada  por  imperativos de eficiência. Estes autores sugerem que as cidades mais bem sucedidas, a nível global,  são aquelas que têm feito uma abordagem integrada dos desafios sociais, económicos e ambientais. 

Uma  segunda  tendência  destacada  prende‐se  com  a  transição  de  uma  lógica  de  “governo”  para  uma  lógica  de  “governança”.  No  actual  contexto  de  recuo  da intervenção  directa  do  Estado,  este  tende  a  assumir  uma  função  que  é  sobretudo  estratégica,  reguladora  e  de  mediação  entre  os  múltiplos  intervenientes  no  processo  de  desenvolvimento  urbano.  Nas  cidades  têm  vindo  a  multiplicar‐se os partenariados, ou seja, coligações de interesses distintos que procuram definir e  executar soluções para os problemas urbanos a partir de uma estratégia consensualizada entre os  parceiros  envolvidos.  Estes  podem  ser  muito  diversos:  entidades  dos  diversos  níveis  da  administração  pública,  organizações  do  terceiro  sector,  promotores  imobiliários,  empresários  ou  associações  empresariais,  etc.  Ainda  no  âmbito  da  governança,  Wassenberg,  van  Meer  e  van  Kenpen  falam  igualmente  da  importância,  cada  vez  maior,  do  papel  atribuído  aos  cidadãos,  sobretudo em projectos de desenvolvimento urbano à escala dos bairros. De destinatários passivos  das políticas urbanas, os residentes nessas áreas passam a actuar como agentes participativos nas  várias  etapas  dos  processos  de  planeamento,  sendo‐lhes  pedido  igualmente  um  envolvimento  directo na resposta aos problemas.  

Esta orientação area‐based de muitas das intervenções nas cidades configura, ela própria, segundo  os  mesmos  autores,  uma  outra  evolução  verificada  ao  nível  do  planeamento  e  da  gestão.  Nestes  casos, a opção por esta solução é justificada pelo facto de a dimensão espacial oferecer a matriz que  permite  coordenar  os  esforços  intersectoriais  e,  em  paralelo,  envolver  e  fazer  cooperar  mais  facilmente todo o tipo de  agentes com ligação ao território em causa, nomeadamente as próprias  populações.  

Finalmente,  Wassenberg,  van  Meer  e  van  Kenpen  relevam  as  preocupações  crescentes  com  a  monitorização e a avaliação das estratégias e dos projectos de intervenção. Apesar de nem sempre  ser fácil estabelecer os nexos causais entre medidas e resultados, os exercícios de monitorização e  de  avaliação  são  vistos  como  ferramentas  importantes  para  se  promover  uma  maior  eficácia  das  intervenções. 

No  seu  conjunto,  estas  tendências  de  reformulação  que  afectam  as  políticas  urbanas  e  que,  em  síntese, podemos associar às ideias‐chave de integração, governança, enfoque espacial e avaliação,  criam  condições  de  maior  abertura  para  a  adopção  de  referenciais  multidimensionais  e,  a  este  nível,  como  foi  visto,  a  noção  de  qualidade  revela‐se  particularmente  atractiva  face  à  sua  capacidade de resumir a complexidade dos desafios da vida moderna não só em termos materiais  mas  também  em  termos  existenciais,  quer  do  ponto  de  vista  individual,  quer  do  ponto  de  vista  colectivo. 

Para  que  se  possam  desenvolver  políticas  modernas  que  tragam  respostas  inovadoras  para  os  problemas é, pois, necessário dispor de informação sobre a qualidade de vida das pessoas, não só  sobre as condições objectivas que podem ser observadas, mas também sobre o que estas sentem no  seu  dia‐a‐dia,  as  suas  preferências  e  prioridades.  Tal  passa,  no  entanto,  em  larga  medida,  pelo  desenvolvimento  e  generalização  de  novos  sistemas  de  informação  e  de  monitorização  da  qualidade  de  vida,  dotados  de  ferramentas  analíticas  que  permitam  ir  mais  longe  do  que  os  estudos  descritivos  das  condições  de  vida  nas  cidades,  atrás  mencionados,  funcionando  como 

De seguida sistematizam‐se as principais abordagens, métodos e instrumentos que têm vindo a ser  ensaiados ao nível da análise empírica da qualidade de vida, procurando entender de que modo o  desafio anterior se revela de mais ou menos fácil concretização no plano que poderemos designar  por “técnico e operacional”. 

2 Abordagens, métodos e instrumentos da análise empírica

Neste  capítulo  oferece‐se  uma  panorâmica  de  diferentes  abordagens,  métodos  e  instrumentos  disponíveis para medir a qualidade de vida das populações e procura‐se dar conta das principais  discussões que actualmente se travam no plano metodológico29

A  investigação  aplicada  sobre  o  tema  da  qualidade  de  vida  reparte‐se  tradicionalmente  por  dois  grandes  conjuntos  de  estudos:  aqueles  em  que  a  noção  de  qualidade  de  vida  é  encarada  numa  perspectiva objectiva e aqueles em que a perspectiva valorizada é dominantemente subjectiva. Não  obstante  a  grande  unanimidade  que  actualmente  existe  em  torno  da  opinião  de  que  a  melhor  aproximação  ao  conceito  é  a  que  se  baseia  na  integração  destas  duas  abordagens,  na  prática  as  análises tendem a adoptar apenas uma delas, como se teve já a oportunidade de referir no capítulo  anterior30

Há  assim,  por  um  lado,  os  trabalhos  que  se  baseiam  na  recolha  e  análise  de  dados  estatísticos  objectivos  referentes  a  determinadas  unidades  territoriais  –  países,  regiões,  cidades  –  em  que  o  objectivo  mais  frequente  é  caracterizar  as  condições  de  vida  locais  (materiais  e  imateriais,  individuais e colectivas) mas que podem igualmente visar a avaliação do quadro de oportunidades  que  esses  lugares  oferecem  para  que  os  cidadãos  exerçam  as  suas  opções  e  atinjam  os  seus  objectivos pessoais (Marques, 2004). Neste caso privilegia‐se, em qualquer das hipóteses, o recurso  a medidas objectivas31

Por  outro  lado,  há  as  pesquisas que  têm  por  base  inquéritos  directos  à  população  em que aquilo  que se procura medir é o bem‐estar subjectivo dos inquiridos relativamente à sua vida global, ou  em  relação  a  diferentes  realidades  do  contexto  social,  económico  e  ambiental  em  que  estão  inseridos. É a partir deste tipo de avaliação, cuja informação de suporte são medidas subjectivas,  que melhor podem ser analisados os sistemas de valores e as preferências dos indivíduos. 

29

Em coerência com as opções assumidas já noutros capítulos da presente dissertação, neste apenas serão abordadas questões relacionadas com a qualidade de vida de populações – com base em indicadores objectivos e subjectivos -, e não metodologias destinadas a avaliar a qualidade de vida individual, muito usadas, nomeadamente, pelos profissionais da área da saúde.

30

Há, no entanto, cada vez mais exemplos de conciliação das duas abordagens. À escala nacional, o Projecto Sistema de Monitorização da Qualidade de Vida Urbana, do Município do Porto representa uma experiência concreta (Martins e Santos, 2008).

31Vários autores chamam a atenção para os limites desta “objectividade”, já que a própria escolha dos indicadores e a sua leitura introduzem necessariamente elementos de subjectividade nestas análises.

A  partir  da  década  de  90,  uma  terceira  linha  de  trabalho  tem  vindo  a  ganhar  uma  projecção  assinalável.  Dedicada  à  construção  de  indicadores  compósitos  sobre  o  bem‐estar  humano  e  o  progresso  social,  esta  frente  de  investigação  representa  uma  das  vias  em  que  se  tem  vindo  a  concretizar, com frequência, uma utilização combinada de indicadores objectivos e subjectivos de  qualidade de vida. 

Cada  um  destes  três  campos  de  investigação  será  objecto  de  atenção  neste  capítulo  2,  caracterizando‐se de uma forma breve o enfoque da sua análise, as metodologias mais aplicadas, o  tipo de resultados obtidos e os desafios que presentemente se colocam. 

Antes  de  se  entrar  propriamente  nesta  caracterização  do  estado  da  arte  da  investigação  empírica  sobre qualidade de vida, dedica‐se um primeiro ponto ao debate mais geral do uso de indicadores  como  ferramentas  de  produção  de  conhecimento  científico  e  como  instrumentos,  cada  vez  mais  valorizados, no apoio aos processos de decisão técnica e política. Num primeiro momento foca‐se a  atenção  na  diversidade  de  medidas  que  hoje  estão  disponíveis  para  de  seguida  se  equacionar  as  principais  questões  que  estão  no  centro  da  discussão  sobre  a  utilidade  efectiva  de  todo  este  manancial de informação no contexto da concepção e avaliação de políticas. 

2.1 Os indicadores como ferramentas de produção de