Introdução É grande o interesse que, ao longo dos anos, o tema da qualidade de vida tem vindo a despertar,
2.4 Medidas multidimensionais de síntese
A construção de medidas multidimensionais de síntese – uma grande parte delas à escala dos países tem sido igualmente um dos principais resultados da investigação desenvolvida no terreno da qualidade de vida.
O Quadro 2.5 apresenta alguns exemplos deste tipo de medidas agregadas, tendo‐se seleccionado apenas algumas das que têm tido uma maior projecção no plano internacional e para as quais se dispõem de séries temporais de dados para vários países43.
A breve apresentação que é feita de cada um dos índices mostra que este esforço de construção não tem sido exclusivamente impulsionado pela iniciativa académica, mas que tem sido igualmente patrocinado pelos governos nacionais, por organismos internacionais e por entidades ligadas à chamada “sociedade civil”. Por outro lado, os exemplos mencionados tornam patente uma grande diversidade de soluções adoptadas quanto à selecção das componentes ou domínios da qualidade de vida tidas em conta, bem como quanto à natureza dos próprios indicadores de base utilizados. Em parte, esta orientação da pesquisa poderá ser explicada pela tentativa de chegar a uma medida da qualidade de vida que, constituindo uma alternativa válida para a avaliação do progresso das sociedades, possa reproduzir o sucesso e aceitação que tiveram outras medidas de natureza económica, entre as quais se destaca, sem margem para dúvidas, o PIB. Com efeito, a possibilidade de traduzir a qualidade de vida através de índices sintéticos apresenta o grande atractivo de tornar muito mais fáceis os exercícios de comparação dos desempenhos dos países à luz de preocupações que vão muito para além do crescimento económico. 43
Uma panorâmica mais alargada daquela que tem sido a produção deste tipo de medidas é oferecida no documento “Survey of existing approaches to measuring socio-economic progress” disponível no endereço http://www.stiglitz-sen- fitoussi.fr/en/documents.htm.
D e signa ç ã o
A no de public a ç ã o
Tipo de inicia tiv a C o m po ne nte s / D o m ínio s
Na tur e za do s indic a do r e s de ba s e
R e fe r ê nc ia
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G e nuine Progre ss Indica to r
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Entra em linha de conta com vários aspectos da vida económica não considerados pelo PIB. (exs: desigualdades de rendimento, trabalho não remunerado, perda de tempo de lazer, custos com poluição, degradação dos recursos naturais)
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Q ua lity of Life I nde x - A dv a nce d
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Investigação académica (Ed Diener)
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Ha ppy Life -Ex pe cta ncy
(HLE) 1996
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A ustra lia n Unity We llbe ing I nde x
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Investigação académica
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Ha ppy P la ne t I nde x
(HP I ) 2006
Entidade sem fins lucrativos
(New Economics Foundation) Esperança de vida, Satisfação, Sustentabilidade ambiental Objectiva e Subjectiva http://www.happyplanetindex.org/
Como vimos, a opção técnica de construir medidas compósitas não é consensual. A qualidade de vida depende de um grande número de factores, sendo muito difícil, quer do ponto de vista conceptual, quer do ponto de vista metodológico, incorporá‐los num único número. Uma opinião frequentemente defendida é, aliás, a de que, dependendo dos objectivos, a sumarização do bem‐ estar a partir das suas múltiplas componentes num indicador de síntese pode obscurecer mais do que evidenciar (Fahey, Nolan e Whelan, 2003).
Estão disponíveis na literatura várias análises e interpretações sobre os resultados práticos desta linha de trabalho orientada para a produção de medidas multidimensionais de síntese.
Hagerty et al. (2001) passaram em revista 22 índices aquando da elaboração de um relatório de trabalho para a ISQOLS (International Society of Quality of Life Studies) cujo objectivo central era avaliar individual e criteriosamente os indicadores compósitos sobre qualidade de vida propostos até à data e propor linhas de investigação prioritárias.
Nas conclusões que tiraram, os autores reconhecem que a maior parte dos índices têm na sua génese o desígnio de constituírem instrumentos válidos no plano das políticas públicas. Muitos deles dispõem já de longas séries temporais de dados, o que torna possível analisar trajectórias de evolução e estabelecer comparações entre diferentes países e regiões. Um outro aspecto relevante, do ponto de vista do planeamento e da acção pública, é o de que, em geral, estas medidas podem ser determinadas para subgrupos da população, o que significa que se torna possível estudar a questão das desigualdades em matéria de bem‐estar.
Os pontos aos quais Hagerty et al. apontam críticas mais desfavoráveis prendem‐se, em primeiro lugar, com a enorme proliferação de definições e de domínios da qualidade de vida que são considerados, o que, na sua opinião, torna muito difícil a comunicação entre especialistas e a validação das propostas entre pares. Uma outra crítica sugerida é a de que a generalidade dos índices desenvolvidos não estabelece uma distinção clara entre o tipo de indicadores usados, designadamente em termos da classificação “input”, “throughout” e “output”, frequentemente valorizada no contexto das políticas públicas. Acrescentam ainda como notas desfavoráveis o facto de muitos destes índices variarem muito pouco ao longo do tempo, não sendo sensíveis aos efeitos das estratégias de intervenção concretizadas – o que limita fortemente a sua aplicabilidade como ferramentas de monitorização e avaliação das políticas públicas –, e, ainda, o facto de a investigação não ter privilegiado o confronto dos vários índices entre si, desconhecendo‐se por isso o nível de redundância que poderá existir entre as diferentes medidas que foram construídas. Sharpe e Smith (2005) realizaram também um exercício de inventariação e avaliação de indicadores internacionalmente usados para medir o bem‐estar da sociedade. Ainda que estes autores não se tenham limitado a rever índices sintéticos, tendo a sua compilação abarcado, de igual modo, as experiências de avaliação da qualidade de vida com base em sistemas de indicadores não agregados, a verdade é que uma parte muito significativa dos indicadores submetidos à sua apreciação correspondeu, de facto, a indicadores compósitos.
Perante esta divisão das abordagens em sistemas abrangentes de indicadores e índices sintéticos, no que toca à avaliação empírica da qualidade de vida, Sharpe e Smith assinalam que, apesar de estes últimos terem tido grande sucesso em chamar a atenção do público para grandes tendências, a sua utilidade tem‐se mostrado muito limitada quando se procura identificar problemas específicos, os quais são muito mais bem apreendidos através de indicadores individuais.
Entre as considerações que tecem, estes autores referem que, em geral, o panorama se revela muito heterogéneo no que diz respeito ao nível de sofisticação das medidas usadas, cobrindo um espectro que vai desde os casos em que os indicadores surgem devidamente enquadrados e justificados por construções teóricas sólidas até às situações em que se desconhece os fundamentos da própria escolha dos indicadores e a forma como estes foram, tecnicamente, construídos. Chamam igualmente a atenção para o facto de os indicadores de resultado serem os mais utilizados, o que parece comprovar que estes são, de facto, os mais apropriados para medir o bem‐estar.
Mais recentemente, Costanza et al. (2009), num documento em que defendem a necessidade de se desenvolverem novas medidas para se avaliar o progresso do bem‐estar humano, debruçam‐se sobre os indicadores que têm vindo a ser propostos como alternativas ou complementos ao PIB até à data, discutindo as suas motivações de origem, finalidades e limitações.
A principal conclusão que é extraída por estes autores é a de que, apesar dos esforços levados a cabo, há ainda um longo caminho a percorrer para que se possa dispor de medidas que permitam avaliar, efectivamente, o progresso da sociedade, isto é, o desenvolvimento da qualidade de vida humana no respeito pela capacidade de carga dos ecossistemas do planeta. Consideram que, para tal, se torna necessário ultrapassar obstáculos de dois tipos: barreiras que subsistem relacionadas com os dados de base e as metodologias usadas na construção dos indicadores compósitos e, por outro lado, barreiras associadas a aspectos sociais e institucionais.
Dado o conteúdo deste subcapítulo, relevam‐se aqui as ideias expressas por Costanza et al. relativamente ao primeiro tipo de barreiras, isto é, às dificuldades de ordem técnica. Assim, estes autores chamam a atenção de que, contrariamente ao que acontece com o sistema de contas nacionais que suporta o cálculo regular e sistemático do PIB – que há mais de 70 anos tem vindo a ser aperfeiçoado nos seus processos de recolha, estruturação, análise e divulgação de resultados –, a infra‐estrutura de informação disponível e os conhecimentos técnicos necessários à produção de indicadores de bem‐estar são ainda insuficientes. Em consequência deste facto, uma questão central é a fiabilidade dos dados de base utilizados no cálculo destas medidas, à qual se junta o problema das frequentes lacunas de dados sociais e ambientais adequados e com a necessária actualização. Entre os domínios em que se torna mais urgente melhorar a qualidade dos sistemas de informação, os autores mencionam os da saúde – humana e dos ecossistemas –, da educação e do bem‐estar da comunidade.
Para além destes constrangimentos relacionados com a informação de base, a construção de medidas de bem‐estar enfrenta o problema da embrionária estandardização das suas metodologias de cálculo, que cria obstáculos à sua ampla apropriação e operacionalização por parte dos diferentes países. Ainda a respeito das metodologias, estas são muitas vezes acusadas de estar
associadas a escolhas arbitrárias. Reconhece‐se, com efeito, que a selecção de indicadores tem necessariamente subjacente um quadro de objectivos e valores desejados em termos do progresso da sociedade, que não estão suficientemente consensualizados.
A concluir este capítulo dedicado às questões metodológicas, vale a pena enfatizar duas ideias principais.
A primeira ideia é a de que, apesar de existir hoje em dia uma forte convicção geral de que não é plausível construir um único índice sintético que atenda a todas as vertentes e dimensões que têm vindo a ser associadas ao conceito de qualidade de vida, reconhece‐se a importância de não basear as abordagens exclusivamente em indicadores por domínio e insistir nos esforços de síntese. São inegáveis as vantagens dos indicadores compósitos para oferecer um “retrato” global da realidade e para facilitar a comunicação de certas mensagens a grandes audiências.
A segunda ideia é a de que esta é uma via metodológica que apresenta igualmente grandes limitações. A mais evidente dessas limitações prende‐se com a arbitrariedade das escolhas a que a sua construção obriga. Na verdade não parece ser fácil encontrar respostas cabais para as perguntas fundamentais formuladas por Fahey, Nolan e Whelan (2003, p. 59): “How do we reach agreement on which indicators to use, and even more on how much weight to give to each? If a society has a relatively low level of average income but above‐average life expectancy, to use perhaps the most obvious but striking example, how would we place a value on one versus the other in constructing a summary measure?”.
Perante estes factos torna‐se evidente que a opção de construir índices deverá sempre ser tomada tendo em conta os propósitos do exercício em causa, devendo ser criteriosamente pesado aquilo que se ganha e aquilo que se perde com este tipo de agregação.
3 Avaliar a qualidade de vida urbana
A partir dos anos 90 a investigação sobre qualidade de vida passa a dedicar uma atenção cada vez maior às cidades.
No prefácio do livro que juntou as comunicações apresentadas na “Primeira Conferência Internacional sobre Qualidade de Vida em Cidades”, realizada em Singapura, em 1998, dizia‐se: “increasingly, countries all over the world, both developed and developing, have found that they cannot ignore the effects of rapid urbanisation on their citizens, especially on how the environment and growth is affecting the health and well‐being of people, or what is generally referred to as quality of life” (Yuan, Yuen e Low, 1999). Com efeito, apesar de muitos aspectos da vida quotidiana nas cidades terem vindo a melhorar ao longo do tempo – no domínio da habitação e das infra‐estruturas básicas, da oferta e diversidade dos equipamentos, serviços e comércio, da vida cultural e do lazer –, a verdade é que, em sentido contrário, vários problemas se agravaram, como é o caso da degradação ambiental, da insegurança,
dificuldades de conciliação entre a vida profissional e a vida familiar (EEA, 2009). Ao mesmo tempo, a exclusão social tem vindo a aumentar, acentuando os problemas da fragmentação social e espacial do território urbano (ECOTEC, 2007).
Para além destas ameaças há ainda a ter presente um conjunto de transformações actualmente em curso ao nível da economia e da sociedade que se prevê que possam vir a influenciar o quotidiano dos indivíduos, muito embora ainda se desconheça quais serão os seus impactos concretos. As mudanças ao nível das estruturas demográficas e familiares, da organização do trabalho, da utilização das TIC, dos modelos de provisão dos serviços públicos são apenas alguns dos exemplos que podem ser referidos (Eurofound, 2009; Kotowska et al., 2010; Rose, Munro e Wallace, 2009). Esta consciência da necessidade de aprofundar o conhecimento das condições de vida e de bem‐ estar na cidade contemporânea tem alimentado inúmeros projectos e iniciativas de investigação, com objectivos diversos como divulgar informação sobre processos e dinâmicas de transformação das cidades, estabelecer rankings de lugares ou apoiar o planeamento estratégico e a gestão local. Face a esta multiplicidade de propósitos não é de admirar que esta investigação aplicada tenha sido impulsionada por diferentes tipos de agentes: comunidade académica, entidades de âmbito internacional, governos nacionais e locais, grupos comunitários, empresas privadas, etc.
É justamente de alguns desses projectos e iniciativas e, sobretudo da diversidade de abordagens que eles ilustram e dos seus efeitos práticos, que se procura dar conta de seguida.
Antes, porém, dedica‐se uma primeira parte deste capítulo a uma reflexão sobre os grandes valores que actualmente estão subjacentes às políticas destinadas a promover a melhoria da qualidade de vida nas cidades. Como antes se viu, não existe uma visão única e consensual para aquilo que se pode considerar uma “boa qualidade de vida”. Perante esta evidência, qualquer tentativa de avaliar e de promover as condições de vida e de bem‐estar exige que se clarifique o quadro normativo adoptado e se estabeleça o referencial daquilo que se pretende alcançar. Por outras palavras, importa imaginar colectivamente um futuro para as cidades já que, como refere Healey (2002, p. 1783), “their [the cities] existence and their power to act lie in the way they are imagined and brought to life, and in how these imaginings then become mobilised to shape politics, public policy and projects”.
Existe algum consenso sobre esses referenciais?