Introdução É grande o interesse que, ao longo dos anos, o tema da qualidade de vida tem vindo a despertar,
2.2 A investigação baseada em sistemas de indicadores objectivos
2.2.1 Operacionalização do conceito de qualidade de vida
O primeiro dos problemas apontados prende‐se com o modelo conceptual adoptado. Em causa está, em primeiro lugar, a identificação concreta dos domínios da qualidade de vida – e respectiva desagregação em dimensões – que deverão ser tidos em conta por parte da análise empírica. A segunda questão que se coloca é a da selecção dos indicadores a utilizar.
A problemática da eleição dos domínios foi já abordada no subcapítulo 1.2.2, pelo que aqui apenas se insiste novamente na ideia de que não existe, de facto, um elenco único e universal, tendo as escolhas que ser feitas em função dos objectivos da avaliação e do contexto cultural, espacial e temporal a que esta se reporta.
Do ponto de vista prático, como também se mencionou atrás, têm vindo a ser usados vários critérios para operacionalizar esta definição dos domínios e subdomínios que interessa privilegiar em cada caso concreto. Uma das possibilidades é recorrer a listas pré‐estabelecidas que obtiveram
teóricos produzidos no contexto da investigação académica. Uma outra hipótese comum é realizar a selecção com base na opinião de peritos técnicos.
Mas desde há já algum tempo que estes critérios têm vindo a ser alvo de contestação.
Leitmann (1999, p. 49), por exemplo, exprime a sua crítica afirmando: “(...) there is no consensus about the objective components that make up quality of life. The consequence is that researchers are free to define quality of life according to their own biases, objectives or schools of thought. The result is that different analyses can come up with inconsistent answers to the same question”.
Como alternativa às soluções top‐down muito formatadas pela opinião de especialistas técnicos, tem vindo a ser ensaiado outro tipo de abordagens em que as próprias populações e os agentes locais se envolvem directamente nessa escolha identificando os aspectos que consideram ser mais importantes para a qualidade de vida, no âmbito de processos participativos (inquéritos, entrevistas, workshops). Deste modo é possível combinar o contributo dos peritos com o contributo dos actores cuja qualidade de vida irá ser avaliada.
Esta é, no entanto, uma fórmula não isenta de riscos. Leitmann (1999), considera que os aspectos indesejáveis que podem ocorrer num processo deste tipo são os seguintes: exclusão de algum tipo de participantes, papel desajustado dos peritos e impossibilidade de garantir a comparabilidade dos resultados. Para prevenir ou remediar cada uma destas situações podem, no entanto, ser assumidos certos procedimentos, tais como estabelecer desde início um inventário dos perfis dos actores que deverão estar representados e assegurar que essa representação se concretiza, criar dispositivos de validação dos resultados finais por todos os tipos de intervenientes no processo (através de representantes, por exemplo) e, finalmente, completar as escolhas feitas através do processo participativo com um subconjunto de temáticas da qualidade de vida usadas em outros projectos nacionais ou internacionais. De qualquer dos modos, definidos os domínios – e, relativamente a cada um destes, as dimensões consideradas significativas –, o passo seguinte diz respeito à selecção dos indicadores, processo de cariz eminentemente subjectivo e exigente do ponto de vista técnico. Como afirma Madureira Pinto (2010, p. 190): “A selecção/construção de indicadores é uma operação da pesquisa científica que, não obstante a tentadora simplicidade com que tantas vezes se apresenta, justifica inteiramente que, na sua concretização, se assumam especiais precauções de índole conceptual, técnica e metodológica”.
No guia prático que conceberam para apoiar o desenvolvimento de indicadores de progresso social, Trewin e Hall (2010) referem a utilidade de, no processo de escolha dos indicadores, começar por identificar aqueles que se afiguram como os melhores do ponto de vista conceptual, algo que se poderia designar como os indicadores “ideais” e que podem ou não existir realmente. É exactamente nas situações em que estes indicadores “ideais” não se encontram disponíveis que os desafios maiores se colocam, pois torna‐se necessário encontrar as melhores proxies. Aqui o exercício que se impõe, desde logo, é avaliar caso a caso o desfasamento existente entre o melhor indicador disponível e o indicador ideal. No caso de se verificar um gap considerável, uma das
hipóteses possíveis é recorrer, não a uma proxy, mas a vários indicadores que, no conjunto, possam dar conta da realidade que se pretende aferir.
Para que a margem de subjectividade associada à escolha dos indicadores possa ser minimizada, uma prática comum é o estabelecimento prévio de um conjunto de critérios base de selecção, os quais são geralmente definidos em função dos objectivos específicos de cada projecto.
Para ilustrar o tipo de regras fixadas veja‐se o caso do Relatório Social da Nova Zelândia no qual são apresentados nove critérios (Quadro 2.2). À excepção dos dois últimos, cuja adequação poderá não ser válida em todos os exercícios de avaliação, todos os restantes podem ser facilmente generalizáveis. Também a propósito da selecção dos indicadores Trewin e Hall (2010) chamam a atenção para dois critérios que consideram ser particularmente influentes no caso de indicadores‐chave de progresso social e que designam como “critério dos resultados” e “critério da não ambiguidade”. O “critério dos resultados” significa que os indicadores, sempre que possível, devem estar focados em resultados e não em inputs ou em respostas aos resultados (outputs). Estes autores esclarecem os fundamentos desta escolha recorrendo a um exemplo prático: no domínio da saúde, os indicadores a privilegiar devem, em primeira instância, traduzir o estado de saúde da população e não os seus hábitos (como a dieta alimentar e o consumo de tabaco) ou as despesas em tratamentos médicos. Com efeito, um incremento registado por uma medida de resultado, como a esperança média de vida, permite uma leitura mais correcta e inequívoca da realidade do que um aumento verificado numa medida de output, como o número de pessoas que foram sujeitas a cuidados hospitalares, cuja interpretação pode ser associada não a uma evolução favorável (mais pessoas a serem tratadas por ganhos de eficiência no sistema) mas a uma evolução desfavorável (mais pessoas doentes, logo maior número de pessoas a necessitar de tratamentos de saúde).
Com isto, Trewin e Hall (2010) não pretendem afirmar que as medidas de input e de resposta são desadequadas para monitorizar tendências evolutivas na área da saúde, mas apenas que, quando se quer seleccionar indicadores chave para avaliar o progresso social, as medidas de resultado constituem melhores medidas, do ponto de vista conceptual. Claro que, de outros pontos de vista, podem não ser as melhores soluções. Em geral este tipo de medidas não é, por exemplo, muito valorizado pelos decisores políticos, o que se justifica essencialmente por duas ordens de razões. Por um lado, não é fácil estabelecer uma relação directa entre os resultados e as medidas que tenham sido tomadas com o objectivo de os influenciar, pois frequentemente eles são produzidos pela acção de múltiplos factores e agentes, o que dificulta a identificação das “responsabilidades”. Por outro lado, alguns indicadores de resultado (e aqui poder‐se‐á novamente usar o exemplo da esperança média de vida) apresentam variações muito pequenas de ano para ano, constituindo, além disso, o efeito acumulado de medidas adoptadas por vezes muito tempo atrás. No seu conjunto, estas são razões que levam a que os responsáveis pelas políticas prefiram indicadores de input.
Quadro 2.2 Critérios gerais para a selecção de indicadores de progresso social usados no âmbito da elaboração do Relatório Social da Nova Zelândia
Critério de selecção Descrição sumária
RELEVÂNCIA O indicador escolhido deve constituir a mais rigorosa estatística que permita medir o fenómeno em causa
AMPLO CONSENSO A escolha do indicador deve contar com um largo apoio, de modo a que diga respeito a aspectos que façam parte de um entendimento muito partilhado da noção de bem-estar
BASEADO NA INVESTIGAÇÃO
Devem existir sólidos resultados de investigação que evidenciem as principais influências e factores que determinam a evolução do indicador
PASSÍVEL DE DESAGREGAÇÃO
É vantajoso que o indicador possa ser discriminado por grupos de população (grupos etários, por género, ...) e por unidades espaciais, de modo a facilitar os exercícios de comparação
CONSISTENTE AO LONGO DO TEMPO
Esta consistência é imprescindível para se conseguir monitorizar, com rigor, tendências evolutivas
CONSISTENTE ESTATISTICAMENTE
O indicador deve basear-se em dados de base de elevada qualidade e em métodos de cálculo estatisticamente robustos
PASSÍVEL DE ACTUALIZAÇÃO
As variáveis de base devem poder ser recolhidas regularmente de modo a que o indicador possa apresentar informação actualizada SIGNIFICATIVO À ESCALA
NACIONAL
O indicador deve traduzir tendências de progresso verificadas a nível nacional e não tendências muito localizadas em certas áreas
PASSÍVEL DE COMPARAÇÃO INTERNACIONAL
O indicador deve reflectir os objectivos sociais dos neo-zelandeses mas deve também ser consistente com as opções feitas no âmbito de outros projectos internacionais de monitorização de modo a permitir
comparações de resultados Fonte: Adaptado de MSD (2010, p. 7)
Já relativamente ao “critério da não ambiguidade” a preocupação que Trewin e Hall manifestam é a de que a leitura do indicador seja inequívoca em termos de assinalar uma evolução favorável ou desfavorável. Tal clareza de interpretação não se verifica com frequência, sendo difícil qualificar o sentido da trajectória descrita. Esta situação pode ser constatada recorrendo a uma medida concreta, como seja o número de divórcios. Poderá este ser um bom indicador sobre a realidade familiar? A sua leitura não deixa de oferecer dúvidas: se é verdade que um acréscimo deste indicador poderá indiciar haver mais pessoas com casamentos infelizes, ele poderá também testemunhar uma melhor aceitação de que os casamentos infelizes sejam dissolvidos.
Em síntese, a selecção de indicadores constitui uma etapa exigente do ponto de vista técnico, que apela a uma forte capacidade de inovação e de resolução de problemas. Com efeito, trata‐se de um processo ao longo do qual podem surgir desafios de diferente natureza – dificuldade de traduzir o fenómeno com base num número reduzido de indicadores, falta de dados, dificuldade de medir fenómenos porque estes se encontram, mal definidos do ponto de vista da sua conceptualização e
da sua medida, etc. –, em que se torna necessário investir significativamente, de modo a que os indicadores possam servir, no final, como instrumentos verdadeiramente úteis para uma análise fundamentada, rigorosa e fecunda.