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A Ergonomia como expressão do antagonismo trabalho capital

CAPÍTULO I – DESIGN E LUTA DE CLASSES: TEORIA E

2. FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA PRODUÇÃO E CONTROLE SOBRE O

2.3 A Ergonomia como expressão do antagonismo trabalho capital

Os estudos ergonômicos compõem uma das principais áreas do conhecimento ligadas ao design. A Ergonomia é genericamente definida como o estudo das relações (“interfaces”) entre os seres humanos e os “sistemas técnicos”, ou os “sistemas homem-máquina-ambiente” intermediados pelo trabalho (GRANDJEAN, 1998; IIDA, 2005). As diferentes “etapas” pelas quais passou a Ergonomia correspondem diretamente com as transformações ocorridas no próprio capitalismo.

Grandjean (1998) mostra como a ergonomia ocupacional marcou o pós-II Guerra, voltada à produção industrial, onde predominava a Interface homem-máquina; surgiu em seguida uma ergonomia ambiental e sua interface homem-ambiente; com o desenvolvimento da tecnologia informática, uma ergonomia cognitiva passou a se ocupar da interface homem-computador; e, por fim, surgiu uma macroergonomia, ou

ergonomia organizacional, voltada aos sistemas homem-organização-máquina. Tudo

isto permitiu ao design, associado aos estudos ergonômicos, interferir projetualmente tanto no processo de produção e de organização empresarial, quanto no próprio desenvolvimento dos produtos, através da analogia com o sistema usuário-produto. Tudo isto demonstra o caráter epistemológico sistêmico desta área do conhecimento.

Os principais marcos do desenvolvimento dessa área, no início do século XX, são os estudos de organização do trabalho de Frederick Winslow Taylor (1856- 1915) – que publicou, em 1911, Princípios de Administração Científica45 –; e as

45 “A gerência científica, como é chamada, significa um empenho no sentido de aplicar os métodos da

ciência aos problemas complexos e crescentes do controle do trabalho nas empresas capitalistas em rápida expansão. Faltam-lhe as características de uma verdadeira ciência porque suas pressuposições refletem nada mais que a perspectiva do capitalismo com respeito às condições de produção. Ela parte, não obstante um ou outro protesto em contrário, não do ponto de vista humano, mas do ponto de vista do capitalista, do ponto de vista da gerência de uma força de trabalho refratária no quadro das relações sociais antagônicas. Não procura descobrir e confrontar a causa dessa condição, mas a aceita como um dado inexorável, uma condição “natural”. Investiga não o trabalho em geral, mas a adaptação do trabalho

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pesquisas sobre tempos e movimentos, de Frank Gilbreth (1868-1924) e sua esposa Lilian Gilbreth (1878-1972), publicadas na mesma época, outro clássico do taylorismo.46

A Ergonomia parte do “trabalho” como categoria primordial, iniciando pelo estudo detalhado de suas bases fisiológicas: musculatura e movimentos, comando nervoso, reflexos, destreza, etc. Não é à toa que um manual clássico de Ergonomia começa pela musculatura humana (do trabalhador) (GRANDJEAN, 1998). O objeto da análise ergonômica é expressão da própria divisão social do trabalho: a relação entre a

tarefa do trabalhador, aquilo que os setores gestoriais prescrevem, “o comando, os

objetivos, as metas, e o que a organização oferece para a execução do mesmo” (OLIVEIRA, 2006, p.32); e sua atividade, aquilo que de fato o trabalhador realiza em sua jornada, seu comportamento diante da tarefa. A contradição tarefa/atividade representa o antagonismo entre gestão e execução.

A Ergonomia existe dentro de um campo ambíguo, que tenta harmonizar a saúde do trabalhador com o aumento da produtividade. Tanto Grandjean (1998), quanto Iida (2005) apresentam uma grande preocupação com a preservação da saúde do trabalhador. No entanto, todo esforço técnico em “adaptar o trabalho ao homem” - para usar um jargão ergonômico -, parte de uma situação dada onde o trabalho já está subsumido ao capital e, conseqüentemente, o trabalhador à máquina. Ao final, toda esta preocupação acaba sempre com uma justificativa de aumento da produtividade através da otimização do trabalho levando em conta aspectos ambientais, posturais, mentais, ferramentais, etc.

Como afirma Bernardo (2009, p.124), o objetivo exclusivo da Ergonomia é o de

(...) conceber a maquinaria e os conjuntos de máquinas e instalações de maneira a melhor integrarem o trabalhador, ou estudar as remodelações a introduzir para que essa integração tenha lugar, reduzindo os desajustamentos físicos e psicológicos e, portanto, aumentando a produtividade.

Mesmo com sua origem taylorista, há tempos a Ergonomia incorporou as transformações operadas pelo processo de reestruturação produtiva. Neste sentido, o

às necessidades do capital. Entra na oficina não como representante da ciência, mas como representante de uma caricatura de gerência nas armadilhas da ciência” (BRAVERMAN, 1987, p.83).

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surgimento de uma ergonomia cognitiva coincide não apenas com o desenvolvimento das tecnologias da informação mas, principalmente, com a prática toyotista de exploração da componente intelectual do trabalho; assim como a ergonomia física, com seus estudos sobre os aspectos fisiológicos do trabalho, corresponde ao período de acumulação fordista-taylorista. Em seu interesse sobre os processos cognitivos, a Ergonomia passa a atuar sobre a atividade mental cada vez mais exigida do trabalhador. Estuda os fluxos de processamento da informação; a percepção; a formação da memória, da atenção e dos reflexos, etc (GRANDJEAN, 1998, IIDA, 2005); bem como os aspectos fisiológicos e psíquicos envolvidos, de forma coerente às exigências produtivas do toyotismo.

Boltanski e Chiapello (2009, p.131-132) fazem referência direta a esta área, ao abordarem as novas ideologias gestoriais, ajustadas às necessidades de “flexibilidade” organizacional e “engajamento” do trabalhador, em contraposição às rígidas formas tayloristas de organização da produção, como demonstra esta precisa passagem:

A taylorização tradicional do trabalho consistia certamente em tratar os seres humanos como máquinas, mas não possibilitava pôr diretamente a serviço da busca do lucro as propriedades mais específicas dos seres humanos: afetos moral, honra. Inversamente, os novos dispositivos, que exigem engajamento maior e se respaldam numa ergonomia mais sofisticada, integrando as contribuições da psicologia pós-behaviorista e das ciências cognitivas, justamente por serem mais humanos penetram com mais profundidade no íntimo das pessoas que – como se espera – devem “doar-se” – conforme se diz – ao trabalho, possibilitando a instrumentalização dos seres humanos naquilo que eles têm de propriamente humano.

É assim que o maior nome da Ergonomia brasileira defende a “flexibilização do trabalho”:

O trabalho moderno é caracterizado pela flexibilidade e maior respeito às diferenças individuais e características próprias de cada grupo. Com isso, o trabalhador tem maior grau de liberdade para decidir sobre o seu próprio trabalho. A distribuição das tarefas, dentro de uma equipe, pode ser decidida pelos próprios elementos dessa equipe, de acordo com as habilidades e preferências de cada um (IIDA, 2005, p.386, grifado no original).

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No caso de uma linha de montagem, a esteira pode ter velocidade variável. No início da jornada, a velocidade pode ser menor e ela vai aumentando, quando os trabalhadores se sentirem “aquecidos”. Da mesma forma, quando se sentirem cansados, podem reduzí-la (id.ibid).

Este é apenas um exemplo acerca do grau de “autonomia” permitido ao trabalhador pelo toyotismo, circunscrita à decisão sobre a intensidade da chibatada que lhe castiga a carne. No entanto, surgiu na década de 1980, na França, uma corrente crítica, a partir do trabalho de Christophe Dejours (1992) e seu Estudo de

Psicopatologia do Trabalho. Ao contrário de Grandjean (1998), que discorre sobre a

“evolução” da jornada de trabalho sem citar uma linha sequer sobre conflitos de classe e as lutas trabalhistas, Dejours (1992, p.14-25) apresenta uma história da medicina do trabalho atrelada à luta de classes, onde cada período é demarcado pelo caráter das reivindicações do proletariado organizado: 1) século XIX, quando a luta pela redução da jornada de trabalho era uma luta do trabalhador pela sobrevivência, para não morrer; 2) entre a I Guerra e 1968, período marcado pela manutenção da “saúde do corpo”, pela melhoria das condições de trabalho, contra o taylorismo e seu controle sobre a “fisiologia do trabalho”; 3) pós-Maio de 1968, momento em que o proletariado lutou pela apropriação dos meios de produção e gestão do processo produtivo; início da reestruturação produtiva e ascenção do toyotismo e o “trabalho cognitivo”; a hierarquia e a organização do trabalho como causas do sofrimento mental do trabalhador.

As lutas autônomas dos trabalhadores na década de 1960, baseadas nas ocupações de fábrica, após derrotadas ensinaram aos capitalistas a necessidade de incorporar no processo produtivo as capacidades intelectuais e organizativas dos trabalhadores, libertadas pelas experiências de autogestão. Isto ocorreu num duplo sentido: o de exploração dessas novas qualificações cognitivas; e o controle dos trabalhadores através da ilusão da participação, promovida pela escola administrativa das “Relações Humanas”, com forte influência sobre a Sociologia Industrial (DEJOURS, 1992; TRAGTEMBERG, 2005; BERNARDO, 2009). Apenas esse conjunto de fenômenos permite hoje a um ergonomista afirmar a superioridade dos “grupos autônomos” frente ao taylorismo, por considerar que “os trabalhadores de hoje são mais instruídos, mais informados e mais organizados e não aceitam tão passivamente as determinações impostas de ‘cima para baixo’ pela gerência” (IIDA, 2005, p.09).

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Avançando sobre esta questão, Dejours (1992, p.137) parte do conceito de “alienação” (i.e. estranhamento), em Marx, para analisar “(...) a tolerância graduada segundo os trabalhadores de uma organização do trabalho, que vai contra seus desejos, suas necessidades e sua saúde”. Para este psicanalista, “a alienação é uma verdade clínica que, no caso do trabalho, toma a forma de um conflito onde o desejo do trabalhador capitulou frente à injunção patronal” (id.ibid.). Trata-se de um estado psicossocial cuja materialidade encontra-se na divisão e organização social do processo de trabalho, onde o trabalhador é destituído de controle direto sobre sua atividade sensível e seu produto final, sobre seu tempo, etc. Infelizmente, a posição de Dejours (1992) não é hegemônica no campo do design, onde se ensina e se pratica amplamente a abordagem tradicional, seja na intervenção projetual diretamente no processo de produção, seja na concepção de novas mercadorias. Pois, a ergonomia toyotizada está se especializando em captar a subjetividade do “consumidor”, assim como fez com o trabalhador.

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Neste momento da exposição, é preciso adentrar na história do design, que se confunde com a própria história da Revolução Industrial e com os primórdios do capitalismo. Pois, é daí que emanam suas diversas posições epistemológicas e teórico- metodológicas e, portanto, políticas. Do ponto de vista estético, o design coincide com o momento da “destruição da aura” da obra de arte “na era de sua reprodutibilidade técnica”, tal como preconizou Benjamin (1994a). A arte se desprende do “domínio da tradição”, desaparecendo com isso o “valor único da arte ‘autêntica’” (1994a, p.171). Os objetos produzidos tornam-se um fenômeno de massas.

3. DESIGN, VANGUARDAS E REVOLUÇÕES SOCIAIS