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CAPÍTULO I – DESIGN E LUTA DE CLASSES: TEORIA E

2. FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA PRODUÇÃO E CONTROLE SOBRE O

2.1 O padrão de acumulação fordista-taylorista

Alguns grandes debates presentes na história do design, assim como a demarcação de diferentes campos teóricos, só podem ser mais bem compreendidos se confrontados com as determinações materiais e subjetivas decorrentes dos padrões de acumulação e das formas de organização capitalistas. O período histórico analisado posteriormente neste capítulo, em que surgem os marcos do design como a Bauhaus e o Vkhutemas (década de 1920 e início da de 1930) e a HFG Ulm (décadas de 1950 e 1960), corresponde ao desenvolvimento e crise do padrão de acumulação fordista- taylorista e seu respectivo modelo de organização da produção e controle sobre processo de trabalho.

A questão da ornamentação e da padronização industrial no interior da

Deutscher Werkbund, na primeira década do século XX; o problema da divisão do

trabalho colocado pela pedagogia da Bauhaus; as posições das vanguardas construtivistas soviéticas em relação à adoção do taylorismo na URSS; a relação entre as formas de produção em massa e a obsolescência programada; a crescente importância da Ergonomia para o design; entre tantos outros assuntos, são exemplos da influência do fordismo-taylorismo sobre a práxis projetual. O próprio Maldonado (1977a), ao caracterizar o styling como uma abordagem projetual ligada à obsolescência, como resposta do capitalismo à crise de 1929, vai transparecer certo saudosismo em relação ao fordismo. Após citar o próprio Ford acerca dos “modelos de longa duração”, afirma este foi “derrotado” neste aspecto. Nas palavras do próprio autor,

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Enquanto antes da crise a indústria norteamericana no setor de automóveis e eletrodomésticos estava orientada sobretudo para uma política de poucos modelos de grande duração, depois da crise se orienta para uma política de muitos modelos de pouca duração (1977a, p.48).41

Assim, após aquela que foi a primeira grande crise econômica do século XX, o design teria sofrido uma grande modificação, pois, “(…) enquanto antes da crise a forma dos produtos está concebida respeitando as exigências da simplicidade construtiva e funcional, depois da crise ocorre tudo ao contrário” (id. ibid.)42. No entanto, o fato de os automóveis deixarem de ser “todos pretos”, como pretendia o empresário em sua célebre frase, não demonstra qualquer tipo de derrota de seu sistema, cujo cerne está na forma de organização da produção, não na forma final das mercadorias produzidas.

A característica centralizadora do fordismo-taylorismo talvez explique a presença de departamentos de design organizados no interior das empresas, como departamentos das mesmas; assim como o processo que levou estes mesmos departamentos a se “autonomizar”, constituindo-se enquanto escritórios semi- independentes, que terceirizam projetos para outras indústrias, parece corresponder às novas formas de organização geradas pela reestruturação produtiva.

Na literatura específica da Sociologia do Trabalho, o sistema Ford-Taylor foi analisado incansavelmente por autores das mais variadas abordagens como Linhart (1983), Braverman (1987), Antunes (2001), Bernardo (2004), Gramsci (2008), apenas para citar alguns, não cabendo aqui realizar uma ampla revisão bibliográfica, o que seria exaustivo e pouco produtivo para os objetivos desta Tese. No entanto, é necessário extrair desta discussão algumas premissas básicas para se apreender a relação dessa forma de controle do capital sobre o trabalho. Como mostra Antunes (2001, p.36-37), o fordismo-taylorismo

(...) baseava-se na produção em massa de mercadorias, que se estruturava a partir de uma produção mais homogeneizadora e enormemente verticalizada. Na indústria automobilística taylorista e fordista, grande parte da produção necessária para a fabricação de veículos era realizada internamente,

41 “Mientras que antes de la crisis la industria norteamericana en el sector de los automóviles y de los electrodomésticos estaba orientada sobre todo hacia una política de pocos modelos de larga duración, después de la crisis se orienta hacia una política de muchos modelos de poca duración” (traduzi). 42

“mientras que antes de la crisis la forma de los productos está concebida respetando las exigencias de

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recorrendo-se apenas de maneira secundária ao fornecimento externo, ao setor de autopeças. Era necessário também racionalizar ao máximo as operações realizadas pelos trabalhadores, combatendo o “desperdício” na produção, reduzindo o tempo e aumentando o ritmo de trabalho, visando a intensificação das formas de exploração (grifado no original).

Em seguida, o autor lembra que “uma linha rígida de produção articulava os diferentes trabalhos, tecendo vínculos entre as ações individuais das quais a esteira fazia as interligações, dando o rítmo e o tempo necessário para a realização das tarefas” (idem, p.37). Trata-se, portanto, de um processo produtivo caracterizado “(...) pela

mescla da produção em série fordista com o cronômetro taylorista, além da vigência de

uma separação nítida entre elaboração e execução” (id.ibid., itálico no original). Isto significava a “supressão” da componente intelectual do trabalho, sendo o savoir-faire operário transferido para o pólo de concepção/gestão da produção.

Taylor levou este aspecto às últimas consequências, tornando-se senão o primeiro, ao menos aquele que melhor compreendeu a função política da divisão social do trabalho, dentro de uma perspectiva gestorial. Mesmo assim, Taylor é representado cinicamente como alguém com preocupações humanistas, em certas teorias administrativas, como nesta significativa passagem: “O que levou Taylor ao trabalho e forneceu toda a sua motivação foi, antes de tudo, o desejo de libertar o trabalhador do ônus da labuta pesada, algo deletério para o corpo e a alma” (DRUCKER, 2012, p.18).

Em sentido oposto, em obra clássica Braverman (1987) elenca os três princípios que orientam a doutrina taylorista: 1) princípio de “dissociação do processo

de trabalho das especialidades dos trabalhadores”; 2) de “separação entre concepção e execução” (diretamente ligado ao design); 3) de “utilização do monopólio do conhecimento para controlar cada fase do processo de trabalho e seu modo de execução”. Estas normativas têm como objetivo a expropriação da iniciativa e da

possibilidade de gestão do processo produtivo pelos próprios trabalhadores, significando uma subordinação total do trabalho ao capital. Para Taylor, “todo possível trabalho cerebral deve ser banido da oficina e centrado no departamento de planejamento ou projeto (...)” (1987, p.103). De acordo com Braverman (idem, p.104), “esta é a chave da administração científica”. O autor ainda enfatiza que,

Taylor elevou o conceito de controle a um plano inteiramente novo quando asseverou como uma necessidade absoluta para a gerência adequada a

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imposição ao trabalhador da maneira rigorosa pela qual o trabalho deve ser executado (idem, p.86, itálico no original).

Braverman lembra também que, devido ao caráter capitalista da divisão social do trabalho, “num local, são executados os processos físicos da produção; num outro estão concentrados o projeto, planejamento, cálculo e arquivo” (idem, p.112, grifei). Não resta dúvida sobre a importância desta discussão para explicar o surgimento do que se conhece hoje por design.

É possível encontrar na teoria do design como em Maldonado (1977a), por exemplo, referências à análise de Gramsci (2008) sobre o que este marxista italiano chamou de americanismo, obra em que predomia uma análise sobre a “organização do trabalho e da produção social do consentimento na indústria moderna” (BRAGA, 2008, p.14). Para construir sua noção de americanismo43, Gramsci (2008) afirma que o fordismo encontrou maior resistência para ser implantado na Europa, por considerar que naquele continente ainda existiam fortes resíduos sociais do regime anterior. Assim, a condição preliminar para o pleno desenvolvimento do citado sistema seria uma “composição demográfica racional”, que “(...) consiste no fato de que não existem classes numerosas sem uma função essencial no mundo produtivo, ou seja, classes absolutamente parasitárias” (2008, p.34). Segundo o autor, essas classes ainda encontravam-se na Europa. No entanto, a América “(...) não tem grandes tradições

históricas e culturais, mas também não está marcada por essa capa de chumbo” (idem,

p.40). Neste sentido:

Visto que existiam estas condições preliminares, garantidas pelo desenvolvimento histórico, foi relativamente fácil racionalizar a produção e o trabalho, combinando habilmente a força – a destruição do sindicalismo operário de alcance nacional – com a persuasão – altos salários, benefícios sociais diversos, propaganda ideológica e política muito hábil, conseguindo- se, assim, basear toda a vida do país sobre a produção (idem, p.41).

Gramsci (2008, p.69) defende que no americanismo surgem mecanismos de controle sobre a vida social do trabalhador, seus hábitos e costumes cotidianos bem como sua sexualidade e lazer. Assim,

43 De acordo com Oliveira (2008, p.126), “embora haja em Americanismo e Fordismo – penso eu - certo

exagero em colocar o peso ideológico (superestrutural) do puritanismo como fator determinante do acelerado desenvolvimento do capitalismo nos Estados Unidos, não se pode negar a sua perspicácia em notar, já em 1934, que a hegemonia do fordismo dependeria de processos dentro e fora da fábrica”.

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a racionalização do trabalho e o proibicionismo estão indubitavelmente conectados: as investigações dos industriais sobre a vida íntima dos operários, os serviços de inspeção criados em algumas empresas para controlar a moralidade dos operários são necessidade do novo método do trabalho.

Após realizar uma crítica contundente ao “gorila amestrado” de Taylor44

, Gramsci (2008) apresenta a subjetividade proletária como um epifenômeno da forma

americanista de organização da produção. Nas palavras do autor:

Quando o processo de adaptação ocorre, se verifica na realidade que o cérebro do operário, em vez de se mumificar, alcança um estado de completa liberdade. Foi mecanizado completamente só o gesto físico; a memória do ofício, reduzida a gestos simples repetidos com ritmo intenso, se aninhou nos feixes de músculos e nervos, o que deixou o cérebro livre e solto para outras ocupações. (...) Caminha-se automaticamente e ao mesmo tempo se pensa no que quiser (idem, p.77).

Os estudos de psicopatologia do trabalho posteriores (ver item 1.5.1) mostram justamente o contrário, que do fordismo-taylorismo não advém nenhuma forma de “liberdade mental”, como gostaria este importante marxista italiano. Assim como o toyotismo – que incorporou a componente intelectual do trabalho no processo de acumulação –, surge como um complicador ainda maior diante da concepção gramsciana da dialética entre materialidade e subjetividade do trabalho. A emancipação do trabalho, neste caso, só pode ocorrer na construção de relações sociais novas, fora dos circuitos de controle do capital e em oposição a estes.

Tanto Antunes (2001) como Bernardo (2004) vão evidenciar o papel ativo dos trabalhadores no processo de crise do padrão fordista-taylorista de acumulação, combinado com a queda de produtividade do sistema. Afinal, “o taylorismo levou ao limite o desenvolvimeno da mais-valia relativa assente na componente muscular do trabalho” (BERNARDO, 2004, p.77). A maioria dos autores citados reconhece que a grande concentração de trabalhadores nos locais de trabalho foi um fator que facilitou a organização proletária, nas décadas de 1960 e 1970. Naquele momento, a luta de classes foi marcada mundialmente por

44 “Taylor, de fato, exprime com cinismo brutal a finalidade da sociedade americana, de desenvolver no

trabalhador posturas maquinais mínimas e automáticas, eliminar o antigo senso psicofísico do trabalho profissional qualificado, que demandava uma participação ativa da inteligência, da fantasia, da iniciativa do trabalhador, e reduzir as operações produtivas ao aspecto físico maquinal somente” (GRAMSCI, 2008, p.69-70).

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(...) um vasto movimento de contestação que, em vez de se limitar e exigir uma maior participação nas riquezas, teve como características principais colocar em causa a disciplina reinante nas empresas e processar-se fora das instituições reivindicativas oficiais, ou até contra elas (idem, p.77-78).

Para Antunes (2001, p.42), tratavam-se de

(...) contestações da divisão hierárquica do trabalho e do despotismo fabril emanado pelos quadros da gerência, formação de conselhos, propostas de controle autogestionárias, chegando inclusive à recusa do controle do capital e à defesa do controle social da produção e do poder operário.

É importante frisar estes aspectos que marcaram a crise que levou à chamada reestruturação produtiva. Por um lado, os trabalhadores que passaram a tomar as fábricas e a geri-las de forma autônoma mostraram aos capitalistas que eram capazes de pensar e decidir sozinhos, qualificando-os no campo da gestão; por outro, a recente massificação do ensino universitário colocava um amplo contingente de novos trabalhadores hiperqualificados à disposição do sistema produtivo. Diante de uma crise de superprodução somada às lutas radicalizadas levadas a cabo por trabalhadores e estudantes, com ocupações de fábricas e universidades – além de questões que não há espaço para serem aqui discutidas, como a crise do welfare state, o crescimento da esfera financeira, etc. –, o resultado foi uma “(...) dupla tomada de consciência por parte dos capitalistas, de que era necessário explorar a componente intelectual do trabalho e que era necessário fragmentar ou mesmo dispersar os trabalhadores” (idem, p.80). O conjunto de medidas e processos engendrados pelo capital em resposta a esta crise culminou no chamado toyotismo.