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As vanguardas estéticas russas e a arte revolucionária

CAPÍTULO I – DESIGN E LUTA DE CLASSES: TEORIA E

3. DESIGN, VANGUARDAS E REVOLUÇÕES SOCIAIS

3.4 Vkhutemas: para além de uma “Bauhaus soviética”

3.4.3 As vanguardas estéticas russas e a arte revolucionária

Abordar o Vkhutemas é, necessariamente, falar sobre as vanguardas modernistas russas, especialmente sobre o construtivismo. De Feo (2005) estabelece que o período entre a Revolução Russa de 1905 e 1918 marcou o surgimento de movimentos artísticos que, apesar de determinados equívocos, “(...) configuram-se como o correspondente, na arte, aos partidos políticos revolucionários” (2005, p.14). A primeira vanguarda se apresentou à sociedade russa em 1912, com o manifesto do

cubofuturismo, que já tinha à sua frente entre outros nomes, Vladimir Mayakovsky

(1893-1930), o “poeta da Revolução”. Entre 1913 e 1915 através da conquista da total abstração nas pinturas, por Kazimir Malevich (1878-1935), surge o suprematismo, que pregava em seu manifesto a “supremacia da sensibilidade pura na arte” (idem, p.18). Outros importantes nomes convergem com as propostas de Malevich, como Chagall (1887-1985), Kandinsky (1866-1944) e Rodchenko (1891-1956). Esse movimento terá grande influência sobre o construtivismo russo, sobre o neoplasticismo holandês e sobre a própria Bauhaus, que realizou uma publicação da obra de Malevich, em 1927.

Todo esse período tem como característica a influência de um conjunto de fatores enumerados por Miguel (2006, p.30), entre eles a idéia do “Super-Homem” nietzscheano; o “misticismo fin de siècle” (Simbolismo, Antroposofia, etc.); o maquinismo; a racionalização do trabalho e o taylorismo; e o Proletkult (Cultura Proletária). Este último foi uma importante e polêmica organização artística e política que tinha como fundador Alexandr Bogdanov (1873-1928), com um grande apoio de Lunatcharsky. Bogdanov foi um médico e intelectual revolucionário que atuou nas mais diversas áreas do conhecimento, membro do partido bolchevique até ser expulso em 1909, devido a suas divergências com Lênin. O pensamento de Bogdavov tinha grande

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influência do empiriocriticismo90, de Ernst Mach e Richard Avenarius, o que levou Lênin a escrever Materialismo e Empiriocriticismo91, no mesmo ano. Nessa obra, o líder bolchevique estabelece duras críticas à corrente política de Bogdanov, acusando-o de idealista e não-marxista. A partir dali, Bogdanov tornou-se persona non grata do movimento comunista internacional.

Bogdanov volta ao cenário político em 1917 com o Proletkult que, segundo Rodrigues (1975, p.21), “(...) tinha a intenção de se tornar uma organização de agitadores, artistas e intelectuais, ao serviço da revolução”. Gare (2000) afirma que, para Bogdanov, em uma “revolução socialista genuína”, a divisão entre organizadores e organizados, entre trabalho físico e mental, deveria ser superada. De acordo com Miguel (2007, p.118),

Para Bogdanov, a autonomia do proletariado, em relação à burguesia e aos intelectuais, era muito importante, pois levaria ao desenvolvimento autônomo das práticas culturais e sociais do operariado, uma nova cultura proletária e a uma intelectualidade totalmente operária.

A independência política e a crítica à crescente burocratização vinda do Proletkult não agradaram Lênin que, de acordo com Lunacharsky (1969), sugeriu que o órgão devesse ser subordinado ao NARKOMPROS, isto é, ao Estado. É famosa a aversão de Lênin pelas vanguardas modernistas. Ao longo da década de 1920, principalmente a partir de 1923, com os ataques do partido o Proletkult perde força e encerra suas atividades. Mas, não sem deixar marcas profundas no cenário cultural soviético, inclusive sobre o construtivismo.

90 A tese fundamental do Empiriocriticismo é que “a experiência pura precede a distinção entre físico e

psíquico e, portanto, não pode ser interpretada em bases materialistas nem idealistas. Os elementos da experiência pura são as sensações, que são acompanhadas pelos caracteres, qualificações várias que as sensações recebem em suas diversas relações: p. ex., prazer e dor, aparência e realidade, certo e incerto, conhecido e desconhecido, etc. (...) Algumas dessas teses, e especialmente a de que todas as coisas ou pensamentos se compõem de um complexo de sensações que não são entidades físicas nem entidades psíquicas, são aceitas e defendidas por Mach” (ABBAGNANO, 2007, p.326).

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Justamente sobre essa mesma obra de Lênin, Pannekoek (2004) se debruça para criticar suas posições, em Lênin Filósofo. Ali, o marxista holandês defende a tese de que Lênin falseia as idéias dos empiriocriticistas, portanto também as de Bogdanov, tendo o materialismo burguês como base para a análise da oposição materialismo-idealismo, não o materialismo histórico de Marx. Após uma profunda revisão do pensamento de Dietzgen, Mach e Avenarius, Pannekoek (2004) acusa Lênin de não avaliar as condições sociais de onde surgem as idéias dos empiriocriticistas, estando mais preocupado em realizar um “processo judicial” dos autores, do que uma crítica verdadeiramente marxista. O marxista holandês critica também a “teoria do reflexo”, em Lênin, onde a consciência nada mais seria do que a matéria refletida na mente.

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Do interior do Proletkult surgiu um grupo mais radical com relação à ruptura com o passado estético russo, cujos membros eram conhecidos como “iconoclastas”, organizado em torno da revista LEF (Frente Cultural de Esquerda) que tem como principal nome, novamente Mayakovsky, além de Ossip Brik (1888-1945). Neste momento, “o Comitê Central do PC toma posição oficial contra o autonomismo dos expoentes de arte de vanguarda” (DE FEO, 2005, p.28). Para este crítico italiano, devido à radicalidade com que defendia os princípios construtivistas, “a constituição da Lef não é senão um dos maiores episódios do ajuste cultural em função da bandeira da arte socialista” (idem, p.30).

Martins (2003, p.62) considera que o movimento construtivista, enquanto produto direto da Revolução de Outubro surge com o intuito de destruir o “(...) campo estético contemplativo, e elaborar os princípios do domínio estético materialista, fundado num novo diálogo entre os processos da arte, do trabalho e da produção”. O autor alerta para a necessidade de definir com maior precisão o movimento. Alguns autores, ao apresentarem o construtivismo, enfatizam uma disputa ideológica no seu interior entre os formalistas e os produtivistas (RODRIGUES, 1975; MALDONADO, 1977a; DE FEO, 2005). No entanto, Martins (2003, p.09) considera que o chamado formalismo está ligado ao primeiro momento do movimento construtivista, à sua “(...) fase analítica ou dos objetos não utilitários, transcorrida de 1919 a 1921 – aquela que os construtivistas também denominaram fase de ‘laboratório’, justificando-a como ‘experiências em vista da futura produção’”. Portanto, a corrente construtivista seria a formada pelos formalistas ligados a esse primeiro momento estético, em contraposição aos produtivistas. Entre eles encontravam-se Malevich, Tátlin, Ladovsky, Lissitzky, entre outros. Essa mesma disputa é definida por Miguel (2006) na contraposição entre “racionalistas” (formalistas) e “construtivistas” (produtivistas).

Surgiu em 1923 a primeira associação livre de arquitetos, a ASNOVA (Associação dos Novos Arquitetos), construtivista-formalista, que tinha como princípio exercer influência psicológica sobre as massas, através de configurações formais, plásticas, com alto grau simbólico. Neste sentido, “as soluções arquitetônicas novas em relação aos problemas da questão industrial e social devem representar uma síntese dialética de fatores econômicos, técnicos, ideológicos e plásticos” (DE FEO, 2005, p.44). Esta corrente foi posteriormente criticada pela OCA (Associação dos Arquitetos

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Contemporâneos, também grafado como OSA), ligada ao Vkhutemas, que existirá entre 1925-1930, defendendo as teses produtivistas aplicadas à arquitetura e o urbanismo. Ainda em 1929, surge a VOPRA (Associação dos Arquitetos Proletários) em oposição tanto à ASNOVA, quanto à OCA. Tanto Rodrigues (1975) quanto De Feo (2005) consideram que a VOPRA realizou críticas corretas às demais correntes, ao afirmar a necessidade de uma “arquitetura proletária”, mas a Associação não teria conseguido escapar do viés mecanicista. Assim afirma De Feo (2005, p.52): “se a crítica é, por vezes, sagaz, a ação prática da Vopra, ao contrário, desenvolve-se, mesmo, para as obras mais aceitáveis nos limites de um pesado monumentalismo, inspirado num modernismo eclético”.

As teses produtivistas foram desenvolvidas principalmente a partir da publicação, pelo Proletkult, em 1923, da obra Do Cavalete à Máquina de Nikolay Tarabukin (1889-1956), que foi secretário do INKhUK (Instituto de Cultura Artística), ligado ao NARKOMPROS entre 1920 e 1924. O produtivismo propõe o “utilitarismo como uma radicalização materialista do construtivismo”, sendo um “desdobramento crítico” do movimento original (MARTINS, 2003, p.57). Além de Tarabukin, alguns nomes do produtivismo são Ossip Brik (1888-1945), Boris Arvatov (1896-1940), Boris Kushner (1888-1937) e Alexei Gan (1889-1940). Uma das principais teses do produtivismo é a “morte da arte”, enquanto pura contemplação, tendo como significado fundamental “a dissolução da arte na vida”92. Outra tese era a da contraposição entre

construção e composição: “quanto à esfera subjetiva, a composição se refere a uma

atitude de contemplação passiva, enquanto que a construção se traduz num modo dinâmico de agir pelo material” (MARTINS, 2003, p.66). Buscava-se, portanto, a “emancipação do ilusionismo da representação”. Ao negar a obra de arte, passa a haver uma preocupação com o “objeto industrial”, como se vê na afirmação de Ossip Brik,

92 Arvatov resume assim as posições produtivistas: “nossa época é, por suas tendências a época do coletivismo industrial. E, portanto, a sociedade tem a oportunidade de usar a técnica – poderosa e universal – para construir de maneira consciente sua vida e as formas concretas em que essa vida se expressa. Antigamente, os artistas criavam em seus quadros e estátuas uma beleza ilusória, representavam a vida ou a adornavam exteriormente; hoje, deverão renunciar a estética da contemplação e da admiração, abandonar seus sonhos individualistas sobre a realidade e por-se a construir a vida em suas formas materiais. A arte deve ser utilitária do principio ao fim – dizem os ‘lefistas’ -; a arte pura, a arte pela arte, a forma como propósito em si, são produto do sistema social desorganizado burguês, que se desenvolvia de forma espontânea e, portanto não sabia orientar o progresso e introduzir o espírito de invenção na vida” (ARVATOV apud MIGUEL, 2006, p.69).

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para quem “[…] o espírito artístico será mesmo intrínseco a produção do objeto” (apud MIGUEL, 2004, p.03). O design terá um papel importante a partir daí.

Todo esse complexo de perspectivas estéticas – próprio de um período revolucionário onde múltiplas posições de vanguarda surgem e disputam prática e ideologicamente suas posições políticas –, está presente no Vkhutemas que, como apresentado até aqui, foi uma entre as múltiplas experiências que envolveram o universo projetual soviético.