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De forma geral, a Sociologia do Trabalho tem se debruçado sobre os aspectos organizativos mais amplos da produção, deixando em segundo plano, ou mesmo ignorando, os desdobramentos da reestruturação produtiva sobre o setor de projetos, e sua importância sobre a própria produção. A respeito das transformações trazidas para o design, advindas desse processo, Bonsiepe (2011a, p.204) afirma o seguinte:

A inovação tecnológico-industrial radical em forma de digitalização e a indústria da informática atingem todas as áreas da vida cotidiana de maneira

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crescente; elas influem na atividade projetual, tanto no conteúdo quanto na metodologia, e contribuem para o surgimento de novas profissões e novas áreas de ação no campo do design.

É esta lacuna que a presente pesquisa procurou preencher, dentro de certos limites e potencialidades. A literatura de Humanas que tem abordado o design se ocupou, principalmente, do fenômeno do fetichismo da mercadoria, sobre a estética da

mercadoria (HAUG, 1997), em suas múltiplas manifestações principalmente na esfera

da circulação: propaganda, marketing, branding, etc. Pois, como afirma Pagotto (2009, p.05), “é a noção marxista de fetichismo, segundo a construiu o próprio Marx, que nos parece ser central para a compreensão da forma pela qual as estruturas de dominação são recompostas em novas bases”. Este debate foi enriquecido por uma revisão do tema dentro da própria teoria do design que, há algumas décadas, ainda se preocupava com este tipo de questão.

A ausência notada encontra-se mais sobre o papel do design no campo da

organização dos processos de produção e circulação e enquanto estratégia empresarial,

isto é, sua natureza de classe. Braverman (1987, p.35) reconhece este problema, que ocorre com o design, na própria sociologia industrial, onde

(...) o sociólogo partilha esta intuição com a gerência, com quem ele também partilha a convicção de que esta organização do processo de trabalho é “necessária” e “inevitável”. Isto deixa à Sociologia a função, que ela partilha com o pessoal administrativo, de assentar não a natureza do trabalho, mas o grau de ajustamento do trabalhador.

Isto demonstra como as relações sociais de produção vão além das áreas do conhecimento. O objetivo deste sociólogo é justamente analisar como “(...) os processos do trabalho são organizados e executados, como o ‘produto’ das relações sociais que conhecemos como capitalistas” (idem, p.29). Esta preocupação permeia todo este estudo. Para abordar tudo isso, foi realizada uma ampla revisão da literatura teórica e historiográfica das principais obras utilizadas nos cursos brasileiros de design. O fato de esta produção teórica ainda não alcançar o volume de outras áreas do conhecimento, negativo em si mesmo, acabou por contribuir neste caso dispensando a utilização de instrumentos rígidos de seleção. Foi necessário recorrer inclusive a muitas obras ainda não traduzidas para o português, outra lacuna no setor editorial da área. Livros seminais de autores como Dal Co (1972), Selle (1973), Maldonado (1977b) e Bonsiepe (1978)

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são exemplos disso. Autores e obras de áreas afins também foram consultadas, como da História da Arte, da Comunicação, da Estética, etc.

A importância deste procedimento foi retomar o contato com fatos e reflexões que a teoria do design insiste em ignorar, em desvalorizar, ou mesmo em distorcer, principalmente os pontos de contato entre projeto e socialismo/comunismo. É sobre isto que versa a seguinte indagação de Pagotto (2009, p.37): “Ora, quando a teoria passa a prever apenas a possibilidade da análise sistêmica, varre-se do terreno da política a subjetividade antagonista. O resultado é a naturalização das relações de subalternidade histórica e determinada da produção capitalista”. Ou, como afirma Braverman (1987, p.25), é uma tendência a “(...) aceitar tudo que é real como

necessário, tudo que existe como inevitável e, portanto, o atual modo de produção como

eterno” (itálico no original). Quem leciona em cursos de design a partir de uma abordagem crítica, entende bem a que se referem Pagotto (2009) e Braverman (1987).

Aliás, está é outra lacuna na própria literatura sociológica, uma vez que o

design é constantemente identificado como uma atividade puramente capitalista. Não

que a realidade atual consiga negar tal concepção, mas nem sempre foi assim. É fundamental ao anticapitalismo mapear e conhecer as diversas experiências de negação sistêmica, em todas as esferas da vida social em que isto tenha ocorrido. A realização de uma arqueologia do problema do socialismo no design tornou-se, portanto, uma das preocupações desta investigação.

Como já foi evidenciado, o ponto de partida para este confronto teórico é o materialismo histórico, tradição inaugurada por Marx e Engels. Como o próprio marxismo é vasto em interpretações de suas obras originais, é importante demarcar qual “marxismo” de que se está partindo. Neste caso, o marxismo das relações de produção (BERNARDO, 2009). Bernardo (1977a, 1977b, 2009), após identificar oscilações teóricas em Marx, guiado pela hipótese da ausência de uma teoria dos gestores em O

Capital, vai identificar o desenvolvimento de dois campos políticos opostos no interior

do marxismo. O ortodoxo, ligado ao primado do desenvolvimento das forças

produtivas, cuja ideologia é expressão da prática da classe dos gestores (e do

capitalismo de Estado) que, do ponto de vista teórico, é alheio à questão da mais-valia, centrando sua análise nas formas jurídicas de propriedade. E a vertente heterodoxa, o chamado marxismo das relações de produção, que tem a luta de classes concreta, não o

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desenvolvimento material, como horizonte de ação e eixo de análise. Logo, autores como Mattick, Pannekoek e o próprio Bernardo serão constantemente chamados ao debate.

Quanto ao método, Pannekoek (2004, p.301-302) evidencia ser este o ponto forte do marxismo. Pois,

A importância do marxismo não reside nas regras que enuncia ou nas previsões que formula, como no que se denomina seu método, nessa afirmação fundamental de que existe uma relação entre cada acontecimento social e o conjunto do universo, no principio segundo o qual em todo fenômeno social deve-se buscar os fatores materiais reais aos quais está ligado.9

E o ponto de partida da análise é “(…) a realidade social, quer dizer, a sociedade dos homens, das relações de produção e das ferramentas, a que determina a consciência”(idem, p.362)10. Sendo o design o fenômeno social em questão, a teoria do

design só pode ser confrontada com “os fatores materiais aos quais está ligada”. Daí a

necessidade da uma revisão da Sociologia do Trabalho sobre as características do capitalismo contemporâneo, a partir da transição de um modelo de acumulação fordista- taylorista para o toyotista, a chamada reestruturação produtiva. Como no toyotismo a esfera da gestão assume um papel fundamental, inclusive para o design, foi necessária uma incursão pela literatura crítica à “administração científica” e, mais especificamente, a teoria dos gestores. Há nesta Tese, portanto, também uma clara inspiração

situacionista, principalmente quando combina a crítica ao fetichismo da mercadoria e a

crítica à dimensão gestorial (burocrática) do capitalismo. Mas, principalmente, à exploração do ser humano pelo ser humano, buscando abranger aspectos subjetivos- ideológicos e organizativos-concretos.

O tratamento crítico dado às concepções da teoria do design seguiu a orientação metodológica de Pannekoek (2004, p.286) para a crítica do pensamento. Pois, “não se pode eliminar uma concepção dada senão depois de descobrir que razões e circunstâncias a fazem necessária, e haver demonstrado que estas circunstâncias são

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“La importancia del marxismo no reside tanto en las reglas que enuncia o las previsiones que formula,

como en lo que se llama su método, en esa afirmación fundamental de que existe una relación entre cada acontecimiento social y el conjunto del universo, en el principio según el cual en todo fenómeno social hay que buscar los factores materiales reales a los que está ligado” (traduzi).

10

“(...) la realidad social, es decir, la sociedad de los hombres, de las relaciones de producción y de las

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passageiras”11. Assim, no método de investigação e crítica filosófica proposto pelo

conselhista holandês,

Para determinar o conteúdo verdadeiro de uma concepção filosófica é necessário [simplesmente ler cuidadosamente e reproducir fielmente as passagens em que se expressa] procurar compreender e reproducir suas fontes; é o único meio de encontrar as semelhanças ou as diferenças com outras teorías, de distinguir os erros da verdade (idem, p.337).12

Em sentido oposto ao da teoria do reflexo, o pensamento não é uma expressão “exata”, mecânica da realidade. Logo, “(...) la teoría es una imagen

aproximada que sólo da cuenta de los rasgos, de los caracteres generales de un grupo de fenómenos” (ídem, p.346). Neste sentido, a busca pela totalidade na construção da explicação não significa dar conta de tudo o que envolve o fenômeno investigado.

Inclusive, Eagleton (1998, p.20) lembra que “não buscar a totalidade representa apenas um código para não se considerar o capitalismo”. E mais, este marxista britânico parece descrever o atual estado da teoria do design, quando afirma que “captar a forma de uma totalidade exige um raciocínio rigoroso e cansativo, o que vem a ser uma das razões de por que aqueles que não têm necessidade de fazê-lo venham a se maravilhar com a ambiguidade e a indeterminação”. (idem, p.21). Esta afirmação é a perfeita descrição da produção bibliográfica de gestão do design.

O objetivo é, portanto, encontrar o que há de determinante no complexo de relações que compõe o problema. Como lembra Braverman (1987, p.29),

Os determinantes sociais não possuem a fixidez de uma reação química, mas são um processo histórico. As formas concretas e determinadas de sociedade são, de fato, “determinadas”, e não acidentais, mas se trata do determinante da tecelagem fio por fio da tessitura da História, jamais a imposição de fórmulas externas (itálico no original).

Pagotto (2009, p.04), mesmo sem abordar diretamente o design, acaba por formular uma síntese do problema enfrentado nesta pesquisa, em uma única passagem:

11

“No se puede eliminar una concepción dada sino después de haber descubierto qué razones y

circunstancias la hacen necesaria, y haber demostrado que estas circunstancias son pasajeras” (traduzi). 12 “Para determinar el contenido verdadero de una concepción filosófica hay que [simplemente leer cuidadosamente y reproducir fielmente los pasajes en que se expresa] intentar comprender y reproducir sus fuentes; es el único medio de encontrar las semejanzas o las diferencias con otras teorías, de distinguir los errores de la verdad” (traduzi).

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O marco teórico dominante ganha estatuto de uma ‘ontologia das coisas’, ou seja, ciência, técnica e máquinas - ou ainda, a economia, a ‘mão invisível do mercado’ - passam a ser as categorias determinantes para a compreensão das mudanças sociais. Procura-se fazer com que estas dimensões deixem de ser entendidas como resultado de embates entre sujeitos que ocupam lugares específicos e antagônicos na produção capitalista.

E esta é uma característica marcante da teoria do design em geral: a

ausência de conflito. Sua linguagem sistêmica permite uma descrição “asséptica” da

realidade. Neste caso, de um ponto de vista metodológico coerente com as “opções” epistemológicas, teóricas e políticas evidenciadas, é fundamental esquivar-se de constituir a citada “ontologia das coisas” plasmada na noção de cultura, tão em voga no

design. Nesta área, os objetos têm história, emoções, etc. Isto significa que tomar como

objeto de análise, “(…) não um mundo de produtos já produzidos, mas os atos encadeados da sua produção é passar do trabalho, entendido enquanto mero resultado, para o tempo de trabalho, enquanto conceito de trabalho como processo (BERNARDO, 2009, p.83-84). Daí a necessidade de investigar o trabalho intelectual em s ua relação com a produção/apropriação de mais-valia.

Outro aspecto importante diz respeito à formação profissional. De acordo com Gorter (2007, p.41), com relação à formação de especialistas técnico-científicos como necessidade do modo de produção capitalista, “o saber, os conhecimentos de todos estes mecânicos, construtores navais, engenheiros, técnicos agrícolas, químicos, matemáticos, professores de ciências, estão determinados, pois, pelo processo de produção”13

. Esta afirmação estende-se, inevitavelmente, ao designer. Ainda para Gorter (ídem, p.42),

O indivíduo imagina escolher livremente uma profissão e que as concepções que são alimentadas nelas “são causas características determinantes e o ponto de partida de sua atividade”. Na realidade estas concepções e, igualmente e em primeiro lugar, sua eleição, estão determinadas pelo processo de produção.14

13 “el saber, los conocimientos de todos estos mecánicos, constructores navales, ingenieros, técnicos agrícolas, químicos, matemáticos, profesores de ciencias, están determinados, pues, por el proceso de producción” (traduzi).

14 “El individuo se imagina que elige libremente una de las profesiones y que las concepciones que son alimentadas en ellas ‘son las causas características determinantes y el punto de partida de su actividad’. En realidad estas concepciones e, igualmente y en primer lugar, su elección, están determinadas por el proceso de producción” (traduzi).

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Esta é outra característica encontrada amplamente na teoria do design, um discurso autocentrado, autorreferenciado, que procura explicar a atividade de projeto em sua lógica interna e, a partir daí, encontrar as conexões que a ligam com a “sociedade”. Outras reflexões sobre método surgirão ao longo da exposição, na medida em que os temas colocarem a necessidade.