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CAPÍTULO I – DESIGN E LUTA DE CLASSES: TEORIA E

1. CONCEPÇÃO X EXECUÇÃO: O CARÁTER SOCIAL DA DIVISÃO DO

1.3 A unidade trabalho manual-intelectual: um debate a partir de Joseph Dietzgen

1.4.1 O design na divisão do trabalho

Entre os precursores do design moderno a temática da divisão social do trabalho é recorrente, ainda que a teoria do design contemporânea se esforce em esquecer determinadas lições dos clássicos. A maioria dos autores contemporâneos incorre na naturalização do processo de divisão social do trabalho, sem que se estabeleça qualquer relação com o antagonismo entre as classes sociais, emergindo meramente como uma “divisão técnica” do trabalho. É o que afirma Bomfim (1995) sobre o surgimento da necessidade de “técnicos em projeto” durante a Revolução Industrial. Assim como para Bürdek (2005, p.19):

36 O artigo de Marglin (1980) encontra-se numa importante obra organizada por Gorz (1980), antes que

este desse adeus ao proletariado. A linha de argumentação dos diversos artigos ali reunidos converge com o campo do marxismo das relações de produção, defendido neste trabalho. Numa posição crítica tanto ao capitalismo “livre-concorrencial”, como ao capitalismo de Estado, Gorz (1980, p.11) mostra que, para o capital, independente de sua forma social, “qualquer organização do trabalho deve ser, indissoluvelmente, técnicas de produção e de dominação patronal sobre aqueles que produzem (...)”, cuja finalidade é totalmente “(...) alheia aos trabalhadores, só pode ser realizada por eles, sob coerção (direta ou velada)”.

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Devido à divisão do trabalho, o projeto e a execução do produto já não serão responsabilidade de uma única pessoa; esta especialização se desenvolveu de uma forma tão extrema com o passar do tempo, que atualmente ao designer nas grandes empresas só se atribui o projeto de algumas peças de um produto.37

Se há um reconhecimento da teoria do design acerca da relação entre projeto e divisão do trabalho, poucas obras tratam a questão criticamente, como ilustra a citação acima, tratando apenas da divisão técnica do trabalho. Numa abordagem menos otimista, em polêmica com a visão unilateral de Adam Smith (1996, p.61-62) sobre a fragmentação do trabalho no interior do processo produtivo, quando este analisa a produção de alfinetes, John Ruskin afirma que,

Não é, a rigor, o trabalho que é dividido; mas os homens: divididos em meros segmentos de homens – quebrados em pequenos fragmentos e migalhas de vida; (...) E o grande clamor que se ergue de todas as cidades manufatureiras, mais alta que o alto-forno, é na verdade por essa proeza – que nós manufaturamos tudo ali, exceto homens (...) (apud BRAVERMAN, 1987, p.76-77).

Ainda que a posição de Ruskin seja eivada de romantismo acerca da produção artesanal, este artista inglês se aproxima da discussão marxiana sobre o

trabalho alienado. Se para Smith (1996) trata-se exclusivamente da possibilidade de

dez trabalhadores produzirem 48.000 alfinetes em um único dia de trabalho, para Marx (1983), além disso, este é o princípio da subsunção do trabalho ao capital, que já exerce aqui seu controle de forma despótica (1983, p.263). No primeiro caso, tem-se um

processo técnico no centro da análise, no outro, uma relação social. Neste sentido,

Maldonado (1977, p.17) reconhece que o design industrial “não se comporta como parte do processo laboral, (…) como se concepção e execução fossem duas forças produtivas distintas, destinadas a cumprir duas funções distintas”.38

Segundo Braverman (1987, p.118), a profissão de engenheiro é relativamente recente. Neste caso, a do designer é ainda mais jovem. Antes deles, “as funções conceptuais e de projeto eram de competência do profissional do ofício, do

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“A causa de la división del trabajo, el proyecto y la ejecución del producto ya no serán

responsabilidad de una única persona; esta especialización se ha desarrollado de una forma tan extrema con el paso del tiempo, que actualmente al diseñador en las grandes empresas sólo le incumbe el diseño de algunas piezas de un product” (traduzi).

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“(...) no se comporta como parte integrante del proceso laborativo, (…) como si ideación y ejecución

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mesmo modo como as funções de estimular as artes industriais mediante inovação”. Portanto,

O profissional estava vinculado ao conhecimento técnico e científico de seu tempo na prática diária de seu ofício. (...) o ofício proporcionava um vínculo diário entre a ciência e o trabalho, visto que o profissional estava constantemente obrigado ao emprego do conhecimento rudimentar científico, de Matemática, Desenho, etc. na sua prática (idem, p.119).

O historidor do design Adrian Forty (2007) é um dos autores que mais discute a questão da divisão social do trabalho, apesar das diversas ambigüidades presentes em sua análise. Forty (2007, p.50), discorrendo sobre o desenvolvimento da indústria cerâmica inglesa, em meados do século XVIII, afirma que, “(...) quando a manufatura foi dividida em processos realizados por diferentes trabalhadores, foi necessário adicionar mais um estágio, o da preparação de instruções para os vários operários: na verdade, um estágio de design”. Seguindo o mesmo raciocínio, Denis (2000), historiador brasileiro de design, vai afirmar que alguns dos primeiros designers emergiram de dentro do próprio processo produtivo, sendo “(...) aqueles operários promovidos por quesitos de experiência ou habilidade a uma posição de controle e

concepção” (2000, p.18, grifei).

Para Forty (2007), é justamente esta a natureza da atividade projetual, a de ser uma normativa sobre a produção, isto é, uma “preparação de instruções para a produção de bens manufaturados” (idem, p.12). Isto leva o autor a descrever, em algumas passagens, este processo enquanto conseqüência de uma necessidade puramente técnica. Pois, sem esse conjunto de instruções “(...) a manufatura de qualquer objeto teria toda a imprevisibilidade de um jogo, à medida que um homem após o outro acrescentasse seu trabalho ao produto” (idem, p.53).

Por outro lado, Forty (2007) tem o mérito de relacionar o processo de design com a necessidade capitalista de organização da produção, no quadro do antagonismo entre capital e trabalho. Combatendo a cristalizada noção de que a mecanização teria transformado por si mesma a aparência dos produtos, levando a uma redução da qualidade das mercadorias em meados do século XIX39, o autor afirma o seguinte:

39 Forty (2007) denuncia esse fetiche pelo “bom design”, que considera permear quase toda a

historiografia da área. De acordo com o historiador inglês a obra de Pevsner (1980), dotada de um “espírito vitoriano”, contribuiu em grande parte para isso. Na produção historiográfica tradicional, a

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(…) as máquinas não podiam ser a causa da tão denegrida especialização no trabalho de design, que já estava estabelecida muito antes do desenvolvimento da produção mecanizada. Em nenhum momento as máquinas tiveram alguma influência independente sobre o design (idem, p.63).

Para validar esta hipótese, o autor vai buscar a explicação no processo que Marx (S/D) denominou de subsunção formal do trabalho ao capital40, ainda que sem se referenciar a este conceito. Como ainda não se está tratando de uma maquinaria própria do momento de subsunção real, Forty (2007, p.73) defende que, “se quisermos encontrar explicações para as mudanças em design, temos de olhar para além das máquinas e examinar o sistema social em que elas eram usadas”. É verdade que tal abordagem encontra-se numa linha tênue, que permite atribuir neutralidade à tecnologia, mas a intenção do autor é outra. Ele procura demonstrar que é a relação capitalista presente nesse contexto que proporciona uma produção de qualidade e padronização oscilantes.

Ao evidenciar as condições de trabalho nas recém formadas manufaturas; ao perceber a incessante busca capitalista pela redução dos custos da produção; ao notar uma relevante diferença no salário dos antigos artesãos ainda em exercício, em comparação com os novos trabalhadores assalariados; o emprego do trabalho infantil; entre outros fatores, o historiador do design afirma que a falta de qualidade das mercadorias estava atrelada ao resultado da insatisfação dos trabalhadores diante de sua nova condição social, refletindo-se nos resultados de sua produção. Afinal, “era de se esperar que os donos de confecções quisessem explorar as partes do processo barateadas pela máquina e reduzir tanto quanto possível o trabalho mais elaborado e caro do acabamento à mão” (idem, p.76).

Grande Exposição Universal de 1851, realizada no Palácio de Cristal, em Londres, sempre aparece como referência inicial para os esforços de atribuir recursos estéticos aos produtos industriais, tendo engendrado a consciência da “urgência de embelezá-los” (ACHA, 1988, p.103). O próprio Maldonado (1977a, p.32) define como um estado de “degradação estética dos objetos”, o período de transição da produção artesanal para a industrial. Ou, como afirma Pevsner (1980, p.56), “depois da desaparição do artesão medieval, a qualidade artística de todos os produtos passou a depender de fabricantes incultos. Os desenhistas de certo valor não participavam na indústria, os artistas mantinham-se afastados e o trabalhador não tinha direito de pronunciar-se sobre matéria artística. O trabalho era frio como nunca o fora antes na história da Europa”.

40 Para Marx (S/D, p.89), em um primeiro momento do desenvolvimento do capitalismo, “(...) não se deu

uma modificação essencial na forma e maneira real do processo de trabalho, do processo real de produção. Pelo contrário, é normal que a subsunção do processo de trabalho no capital se opere com base num processo de trabalho preexistente (...)”.

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Assim como o sistema misto, que ainda combinava trabalho artesanal e fabril, com grandes diferenças de qualificação do trabalho, também contribuía para dificultar um “controle de qualidade” por parte dos patrões. Tal controle era, antes de tudo, o controle sobre o trabalho. Ao narrar o desenvolvimento da indústria cerâmica de Josiah Wedgwood, no século XVIII, Forty (idem, p.54) afirma que a fama do industrial não se baseava no uso das máquinas, “(...) mas no modo como ele organizou os trabalhadores em sua fábrica”. Wedgwood antecipou o taylorismo, na medida em que afirmava estar se “preparando para fazer dos homens máquinas que não possam errar” (apud FORTY, 2007, p.49). Em grande parte, o “sucesso” de Wedgwwod é atribuído ao fato de ter desenvolvido “(...) a divisão do trabalho em mais estágios ainda, que pudessem ser supervisionados mais de perto” (id.ibid., grifei). Além disto, “dividir o processo de produção em mais estágios tinha a vantagem de que, para algumas tarefas, ele poderia utilizar mão de obra menos especializada” (id.ibid.).

Neste contexto, Forty (2007, p.58) vai encontrar no trabalho dos

modeladores, como eram conhecidos os projetistas das cerâmicas de Wedgwood, os

princípios da atividade moderna de design. Pois, sua façanha teria sido “(...) chegar a formas que fundiam satisfatoriamente as exigências tanto da produção como do

consumo”. Com a posterior consagração do especialista em projeto, afirma o autor: “embora o designer profissional pudesse ser capaz de conceber um produto muito mais

elegante e vendável, o fato de que havia muito trabalho para ele não era conseqüência de seu gênio inventivo, mas da divisão do trabalho na fábrica” (idem, p.53).

Como evidenciou Marglin (1980), o parcelamento capitalista do trabalho não responde a uma mera necessidade técnico-produtiva, mas a um sistema que tem na hierarquia sua pedra angular, transferindo o controle do processo de produção, portanto de exploração, para gestores e burgueses. Nesse processo, o objetivo maior é a acumulação de capital, e é justamente este aspecto que “escapa” à teoria do design em geral.

Por isso, o paradoxo em outro marco da história do design, na tentativa de se contrapor à cisão entre trabalho manual e intelectual, proposta pela pedagogia da Bauhaus (WICK, 1989), está no fato de que essa síntese entre o artista e o artesão resultou na formação de um profissional especializado, justamente, num desses pólos: o da concepção. A divisão social do trabalho já estava estruturalmente consolidada na

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sociedade moderna, e o trabalho objetivamente subsumido ao capital. Posteriormente, o imperativo capitalista de total separação entre atividades conceptivas/administrativas e de execução vai ser sistematizado e desenvolvido até as últimas consequências por Frederick Winslow Taylor (1856 - 1915), alcançando nos meios gestoriais o status de “ciência”. Associadas à produção seriada fordista, as idéias de Taylor se tornarão amplamente presentes na teoria do design, principalmente através da Ergonomia, até o momento da reestruturação produtiva, assuntos dos próximos itens.

2. FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA PRODUÇÃO E CONTROLE