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O “conceito Ulm” e a derrocada de um projeto

CAPÍTULO I – DESIGN E LUTA DE CLASSES: TEORIA E

3. DESIGN, VANGUARDAS E REVOLUÇÕES SOCIAIS

3.5 A HFG Ulm e o reformismo do design racionalista

3.5.3 O “conceito Ulm” e a derrocada de um projeto

O projeto pedagógico da HFG era considerado inovador, estando completamente fora do sistema educacional alemão, tanto do ensino artístico, do técnico e do acadêmico (SPITZ, 2002). Isso logo atraiu para Ulm docentes e estudantes de vários países, dando-lhe um caráter internacional. Mesmo o ensino de design posterior jamais conseguiu oferecer uma formação tão ampla, como se percebe em sua estrutura curricular: Semiótica, Teoria dos Sistemas, Cibernética, Teoria da Ciência, Lógica Matemática, Pesquisa Operacional, Matemática Finita, Filosofia Analítica, Sociologia da Sociedade Industrial, Análises de Conteúdo, Psicologia Social, Retórica Visual, História da Cultura, Literatura e Arte Moderna, etc. (BONSIEPE, 1983, p.42). Na HFG se estudava os filósofos frankfurteanos, como Adorno, Benjamin, Marcuse, etc., além de Marx e Engels, todos constantemente referenciados nas obras teóricas de autores que passaram pela instituição. A Escola também foi pioneira no desenvolvimento da Ergonomia e em sua aplicação projetual.

As atividades da HFG se dividiam entre quatro departamentos: Design de Produto, Comunicação Visual, Arquitetura Industrializada (com grande influência de Hannes Meyer) e Informação. Posteriormente ainda foi criado um núcleo de produção cinematográfica. Criou um princípio educacional chamado de “Desenvolvimento”, definido por Otl Aicher como o desenvolvimento de protótipos prontos para a produção. Utilizava um sistema pedagógico interdisciplinar que tinha como objetivo possibilitar os

designers trabalharem em equipe com cientistas, técnicos e empresários. A intenção era

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produção industrial (SPITZ, 2002, p.22). Uma pretensão altamente gestorial, como se verá.

Além das disciplinas curriculares a HFG também oferecia seminários com grande participação de importantes intelectuais da época, que lecionavam durante um curto período, às vezes uma única vez: escritores, linguistas, cientistas sociais, psicólogos, historiadores, engenheiros, cineastas, filósofos, arquitetos, entre outros. A lista de personalidades convidadas a visitar Ulm mostra a diversidade de temáticas que interessava à sua comunidade acadêmica.

Para Bonsiepe (2011, p.218), “essas temáticas sempre ocuparam o centro do interesse filosófico, científico, cultural e político”. Esse quadro representa para o autor exatamente a “relação entre design e poder” (id.ibid.). A posição filosófica da HFG oscilava entre o racionalismo crítico frankfurteano (principalmente de Adorno e Benjamin) e o neopositivismo, de onde surge uma grande influência da cibernética e do sistemismo. Como afirma o próprio Bonsiepe (2011a, p.234-235): “existiram períodos históricos nos quais houve uma estima mútua entre posições de vanguarda na filosofia (por exemplo, o Círculo de Viena) e o design moderno”.108

Bürdek (2006, p.43-47) apresenta uma periodização da HFG, em 6 fases: 1) 1945-1953 – que envolve o surgimento da Fundação Irmãos Scholl, a contratação de Max Bill e a construção do prédio da Escola, período que Spitz (2002) designou como “pré-história”; 2) 1953-1956 – quando ocorre a nomeação de Bill como primeiro Reitor, em 1954, a inauguração em 1955, as aulas ministradas por ex-bauhausianos, e, a contratação de Maldonado; 3) 1956-1958 – a sucessão de Bill por Maldonado, em 1956, com a introdução de disciplinas científicas, e a saída de Bill, em 1957; 4) 1958-1962 – as disciplinas técnicas e científicas (Ergonomia, etc.) assumem maior importância no currículo, busca-se “rigor científico” na atividade projetual, através de métodos matemáticos, período em que metodologia projetual, modularidade e sistemas eram temas fortemente abordados; 5) 1962-1966 – busca-se uma igualdade de peso entre

108 Talvez o maior exemplo da relação entre o Círculo de Viena e o design, encontre-se na obra de Otto

Neurath (1882-1945). Além de sociólogo, economista político, filósofo da ciência (fundador do neopositivista “empirismo lógico”), Neurath é considerado um pioneiro do design gráfico, ao criar o sistema de informação gráfica ISOTYPE, baseada em pictogramas, amplamente utilizado até hoje, como na exposição gráfica de dados estatísticos, por exemplo. De acordo com Vossoughian (apud FOLHA.COM, 30/10/2011), Neurath "queria familiarizar e educar a classe trabalhadora em relação aos sistemas mais amplos de ordem que operam na cidade contemporânea". Neurath também teve uma breve participação nos conflitos da Revolução Alemã (LOUREIRO, 2005a, p.110). Sobre o sistema ISOTYPE, ver Lima (2008).

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teoria e prática, além do desenvolvimento de projetos para a indústria, que passa a uma maior valorização do design; 6) 1967-1968 – encerramento das atividades e fechamento da Escola, entre outros motivos, pelo não cumprimento das exigências institucionais colocadas pelo Parlamento.

A derrocada da HFG foi um fenômeno extremamente complexo, descrito minuciosamente e com grande riqueza de detalhes históricos por Spitz (2002). Os autores se dividem na tentativa de explicar a situação. Bonsiepe (1983) afirma que, assim como a Bauhaus, Ulm fracassou por motivos políticos. O ex-aluno e ex-professor da Escola considera que a HFG não se enquadrava politicamente na República Federal da Alemanha da década de 1950 e 1960, tampouco no contexto conservador da Guerra Fria, devido ao seu caráter antifascista e antimilitarista. Em função de seu “pensamento crítico, seu racionalismo, sua atitude pouco conformista”. Portanto, “a HFG Ulm foi avançada demais para seu contexto”, tornando-se um “experimento inconcluso” (1983, p.43).

Bürdek (2006) enfatiza que durante a década de 1960 houve grande pressão por parte do Governo Federal, por não se desenvolver pesquisa na Escola, pois “sem pesquisa, sem verba”. Nos seus últimos anos, a HFG passou por uma grande crise financeira, que a levou a ser alvo de uma disputa política que dividiu professores, estudantes e administradores. O fato de parte do seu financiamento ser privado foi também um problema. Com as “parcerias” entre a Escola e empresas privadas, os Institutos estavam dominados por um “sentido comercial” oriundo dos projetos realizados para a indústria. Assim, “vários docentes não queriam saber de independência ou de distância crítica” (BÜRDEK, 2006, p.47). Spitz (2002, p.22) evidencia este ponto, frisando que os chamados “times” de projeto foram se tornando escritórios no interior da Escola, cujos professores responsáveis foram se distanciando do ensino, privilegiando o que hoje se convencionou chamar de “consultorias” á iniciativa privada, ou “parcerias”. Prática bastante comum nas Universidades atuais, infelizmente.

Com a crise financeira, o Governo iniciou uma tentativa de estatização da HFG, que acabou aumentando os conflitos já existentes acerca da “autonomia” da Escola, principal bandeira do movimento estudantil. Os estudantes tiveram um papel político muito importante, principalmente pelo contexto das lutas de 1968. As

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representações estudantis questionavam as mudanças estatutárias que consideravam autoritárias, que iriam se acentuar com o modelo de estatização proposto. Em uma série de documentos, se colocavam como parte das lutas anticapitalistas que se desenvolviam em vários países; criticavam, com razão, o fato de as Escolas Técnicas e as Universidades terem se tornado “braços da indústria”; se opunham à concepção de uma “HFG tecnocrática”; além de criticarem os interesse do setor privado na formação de profissionais especializados “não críticos” (SPITZ, 2002, p.371, 374, 379-380, 383- 384). Pezolet (2008, p.19), assumindo as críticas de Asger Jorn a Max Bill e à HFG, afirma que em Ulm se gestava um novo “modelo social”, a “democracia liberal tecnocrática”, que se chocou com o momento ideológico dos anos 1960.

Neste momento, Spitz (2002) demonstra o seu conservadorismo na análise do papel do movimento estudantil, ironizando os “jargões sociológicos” utilizados, supostamente “em moda” na época, bem como a falta de objetividade e de realismo nas reivindicações estudantis, entre outros argumentos que buscam de certa forma desqualificar a radicalização política do corpo discente. Bürdek (2006, p.47) afirma que as tentativas de solucionar os problemas da Escola não corresponderam “às maciças exigências dos alunos, com o objetivo de se dar uma relevânca social do trabalho da escola e que correspondesse à sua autonomia”. O autor soma a esse quadro, as dificulades da HFG em absorver as críticas ao funcionalismo e a questão ambiental, que passou a ser assunto internacional no final dos anos 1960.

Após seu fechamento, houve ainda um projeto que Bürdek (2006, p.47) incluiu em sua periodização como “Pós-Ulm”, que foi de 1969 a 1972. Naquele período, passou a funcionar no prédio da HFG o Instituto para Planejamento Ambiental (IUP), onde se desenvolveram projetos de “caráter político-social”, colocados pelo movimento estudantil de 1968, que influnciaram também os jovens designers da época. Devido à falta de autonomia, a IUP foi fechada em 1972. Imediatamente, houve um grande “êxodo” de professores e ex-estudantes por todo o mundo. O design latino- americano foi muito influenciado pelo “modelo Ulm” (FERNÁNDEZ, 2006; BONSIEPE & FERNÁNDEZ, 2008). Especificamente o Brasil, com a fundação da Escola Superior de Desenho Industrial – ESDI, no Rio de Janeiro dos anos 1960, nos moldes da HFG Ulm (NIEMEYER, 1998).

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