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CAPÍTULO I – DESIGN E LUTA DE CLASSES: TEORIA E

3. DESIGN, VANGUARDAS E REVOLUÇÕES SOCIAIS

3.2 Ruskin, Morris e o Arts & Crafts

Durante esse período de grande efervescência política e social, surgiram alguns artistas muito influenciados pelo Romantismo, que realizaram duras críticas ao desenvolvimento industrial capitalista, principalmente à divisão social do trabalho. Os mais conhecidos são os controversos ingleses John Ruskin (1819-1900) e William Morris (1834-1896), que constituíram o movimento Arts & Crafts (Artes e Ofícios), no final do século XIX, um marco para o movimento modernista em geral, mas importantíssimo para design. Ambos militaram em movimentos políticos da época: tendo Ruskin se aproximado de correntes cooperativistas e sindicalistas; e Morris fundado a Liga Socialista, em 1884.

O ano de 1848 marcou, entre tantos acontecimentos, o surgimento da Irmandade Pré-Rafaelita, grupo de artistas medievalistas que viria a ser “apadrinhado” por Ruskin, a partir de 1851, tendo grande influência estética sobre Morris (CARDOSO, 2004). Como afirma Bernardo (2012), Ruskin, Morris, assim como o arquiteto A.W. Pugin (1812-1852), que defendia um revivalismo do estilo Gótico, os pré-rafaelitas,

(...) tal como os nazarenos antes deles, apreciavam a estética medieval porque viam nela uma forma decorrente da função, e não uma forma mascarando a função, como sucedeu na arte ocidental desde a segunda renascença em diante, ou seja, a partir de Rafael e Miguel Ângelo. Foi neste sentido e só neste sentido que eles procederam à apologia do artesanato (BERNARDO, 2012).

Pevsner (1980, p.29) define Pugin, outra importante influência para o movimento inglês, como “(...) o brilhante projetista e panfletário que durante os anos de 1836 a 1851 defendera violenta e inexoravelmente o catolicismo, as formas góticas como as únicas formas cristãs e também a honestidade e sinceridade tanto na criação como na fabricação”. Deste último princípio é que Ruskin se inspira para afirmar que “realizar com verdade é realizar manualmente, e realizar manualmente é realizar com alegria” (id. ibid.). Eis que um dos pontos fundamentais do Arts & Crafts estava na idéia de que “(...) a qualidade do objeto fabricado deveria refletir tanto a unidade de

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projeto e execução quanto o bem-estar do trabalhador” (Denis, 2000, p.71). Outro princípio extraído do estudo da arquitetura gótica, e medieval em geral, era o de construir à “escala humana”, como mostra Banham (2003).

Os nomes de Ruskin e Morris são motivo de reações passionais na literatura sobre arte, design e arquitetura, como se vê em Banham (2003, p.16), que afirma que no início do século XX, “homens cujos pontos de vista sobre a arte e o design eram os mais variados possíveis uniam-se, apesar de tudo, em seu ódio por cet déplorable Ruskin [esse deplorável Ruskin]”. Românticos, utópicos, revivalistas e mesmo reacionários, ou revolucionários, são adjetivos atribuídos por diversos autores que dividem suas opiniões na análise que realizam sobre estes personagens que, apesar de ligados indissocialvelmente, não podem ser confundidos. Um autor como Wick (1989) procura diferenciar Ruskin de Morris, demonstrando clara preferência pelo último, devido à “universalidade” de seu pensamento. Mesmo reconhecendo a importância de Ruskin, o estudioso alemão o critica por sua “idealização unilateral” e seu “ódio cego” pela máquina.

John Ruskin, crítico de arte, escritor, poeta e desenhista, de acordo com Cardoso (2004, p.16), “era rico e bem-sucedido, venerado pelo grande público e paparicado pela elite de sua época, amigo e correspondente tanto de operários quanto de marquesas”. Ruskin é autor de um conjunto de obras importantes de crítica estética, produzidas durante a Revolução Industrial, na Inglaterra. Autor de livros clássicos como

As Sete Lâmpadas da Arquitetura (1840) e As Pedras de Veneza (1851-1853), onde

desenvolve suas concepções estéticas. Pensador moralista e crítico da industrialização, Ruskin antecipou muitos temas hoje correntes, como a “crise ambiental”, o Welfare

State, ente outros. Mesmo denunciando a exploração do trabalho industrial, a produção

para o luxo, a indústria da moda, fenômenos “necessariamente responsáveis pela degradação e morte de muitos seres humanos”, enfatiza Cardoso (idem, p.14) que “seus ideais políticos vacilam entre um conservadorismo passadista (...), e um radicalismo vital”. Este último aspecto é, geralmente, secundarizado pela teoria do design.

Outro expoente do Arts & Crafts, William Morris (1834-1896) é um dos personagens mais importantes do século de XIX para a história da arte em geral, e do

design em particular. Poeta, escritor e artista, Morris foi um dos fundadores do

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Frequentemente, ele é definido como socialista utópico (foi autor de um romance utópico, Notícias de Lugar Nenhum, de 1890) e até como politicamente conservador, por sua defesa incondicional do artesanato. Foi influenciado diretamente por Ruskin, de quem herdou o princípio de indissociabilidade entre arte, moral, política e religião. Em 1861, funda a firma Morris, Marshall & Faulkner & Co., marco de “uma nova era na arte ocidental” (PEVSNER, 1980, p.28).

Morris era um grande crítico do processo de individuação do artista que, de forma narcisista, passou a produzir a “arte pela arte”, a obra como mera expressão da subjetividade do autor. Volta-se, assim, a um período anterior, quando “o artista era ao mesmo tempo um artesão que se orgulhava de empenhar toda a sua perícia na satisfação de qualquer encomenda” (idem, p.27), isto é, à Idade Média. Chegou mesmo a afirmar: “Toda essa história de inspiração é puro disparate, não existe tal coisa: o que realmente importa é o trabalho manual” (MORRIS apud PEVSNER, 1980, p.28). Por estes motivos, Pevsner (1980, p.29) afirma que o socialismo de Morris não está de acordo com os

(...) canônes consagrados nos fins do século XIX: é mais influenciado por Morus do que por Marx. (...) E em vez de olhar para o futuro olhava para o passado, o passado das sagas da Islândia, da construção de catedrais, das corporações de ofícios.

É assim que este crítico da arquitetura e do design define a defesa do artesanato, como a grande contradição da doutrina de Morris, pois se ele o fez com maestria, ignorou que isto significava “(...) defender um regresso às primitivas condições medievais e, sobretudo a defender a destruição de todos os inventos da civilização introduzidos durante o Renascimento” (idem, p.29-30); assim como Banham (2003), que encontra apenas o medievalismo em Morris. Contrapondo-se a esta tese, Forty (2007, p.85) afirma o seguinte:

Somente um socialista como William Morris estava em posição de ver que a crítica da sociedade industrial não precisava ser necessariamente regressiva e que poderia haver uma alternativa que não excluísse o progresso material. Portanto, Morris estava em condições, graças ao seu socialismo, de pôr a culpa da má qualidade do design na cobiça do capitalismo, coisa que outros hesitavam ou não eram capazes de fazer.

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Nas palavras do próprio artista inglês: “Não é desta ou daquela máquina tangível de aço e metal que queremos nos desfazer, mas da grande máquina intangível da tirania comercial, que oprime a vida de todos nós” (MORRIS apud FORTY, 2007, p.85).

Diante de análises tão contraditórias entre si, Bernardo (2012) afirma ter sido Morris ao mesmo tempo um “revivalista” e um “precursor do modernismo”. Pois, devido “ao seu interesse pelas artes aplicadas e à sua insistência na estrutura da obra, William Morris encontra lugar nos prolegómenos do funcionalismo”. Wick (1989, p.17) comprova esta tese, afirmando que Morris considerava como “mandamento número um a utilidade e a configuração construtiva, e não a originalidade das formas”. O princípio modernista de “fusão entre arte e vida” já se encontrava em Morris, que afirmava: “Não quero arte só para alguns, tal como não quero educação ou liberdade só para alguns”; e, “que interesse pode ter a arte se não puder ser acessível para todos?” (apud PEVSNER, 1980, p.28). Enquanto Bonsiepe (1983, p.11) considera o artista britânico “injustamente considerado como representante de um pensamento idealista e ultrapassado”. Bernardo (2012) complementa:

E foi tudo isto no quadro do marxismo militante, pois foi um dos mais activos participantes da primeira geração de marxistas britânicos, o que colocaria aos teóricos marxistas da estética um sério problema se eles não preferissem virar a cara para o outro lado.

Como se percebe claramente, Bernardo (2012) discorda da tese de que Morris estivesse distante do marxismo. Enquanto para teóricos do design como Bürdek (2006), Morris não passava de um “social-reformista”, o historiador inglês E.P. Thompson (1988, 1994), que dedicou uma grande obra biográfica a Morris, procurou demonstrar que, em sua trajetória, este artista inglês passou “de romântico a revolucionário”. Um revolucionário “sem revolução”, afirma o historiador, com o objectivo de criar uma tradição revolucionária, tanto intelectual como prática, mas consciente de não ter vivido em um contexto revolucionário.

Ao contrário de autores como Pevsner (1980), Denis (2000), Bürdek (2006), entre outros, Thompson (1994) defende que Morris aceitou quase totalmente a análise econômica e histórica de Marx, tendo realizados verdadeiros diagnósticos acerca do

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capitalismo são complementares e se reforçam mutuamente. Assim, para o historiador marxista, a questão moral neste artista britânico está determinada pela crítica à Economia Política. Há, portanto, uma “(...) dívida profunda de Morris para com os escritos de Marx, estes deram à sua própria crítica muito da sua forma e algo de sua força” (THOMPSON, 1994, p.11).51

Bernardo (2012) evidencia ainda a radicalidade política do artista, tanto teórica – presente em sua volumosa produção escrita –, quanto prática, considerando Morris como representante da “(...) ala esquerda do marxismo, defendendo o antiparlamentarismo, o que o levou a romper com Engels, com Eleanor Marx e com Aveling”. Em correspondência com seu melhor amigo, Georgie Burne-Jones, Morris defende sua posição política: “As idéias que tomaram conta de mim não me deixam descansar (...). É preciso voltar a ter esperança, e apenas em uma direção eu vejo isto - no caminho para a revolução: todo o resto já se foi (...)" (apud THOMPSON, 1994, p.05-06)52. Este historiador inglês considera que a influência política direta de Morris é frequentemente subestimada. Mas mostra que na década de 1890, muitos militantes “iniciados” por Morris haviam se tornado importantes lideranças políticas, tanto em sindicatos, como na Liga Socialista, e até arquitetos e artistas engajados nas lutas sociais. Fatos que a teoria do design contemporânea faz questão de esquecer, ou de não conhecer.