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A Revolução Russa e as novas relações sociais de produção soviéticas

CAPÍTULO I – DESIGN E LUTA DE CLASSES: TEORIA E

3. DESIGN, VANGUARDAS E REVOLUÇÕES SOCIAIS

3.4 Vkhutemas: para além de uma “Bauhaus soviética”

3.4.1 A Revolução Russa e as novas relações sociais de produção soviéticas

A Revolução Russa, processo que tem como marco a derrubada do Governo Provisório de Kerensky em 25 de outubro de 1917, é um dos eventos históricos mais importantes do século XX, do ponto de vista da luta de classes. Não se pretende aqui dar conta de resumir todo o processo, o que seria simplificar demasiadamente um fenômeno altamente complexo que envolve todas as esferas da vida social da época. Seus desdobramentos têm conseqüências sobre a economia, a política, a cultura, a arte e a ciência em nível mundial, até os dias de hoje. Serão apresentados apenas alguns aspectos históricos e analíticos que contextualizem e favoreçam um melhor entendimento acerca da atividade projetual, desenvolvida na década de 1920, sobre o qual o Vkhutemas tem um papel fundamental.

Ainda que o senso comum trate a Queda do Muro de Berlim, em 1989, como o marco do “fim do comunismo”, como a derrocada do “socialismo real” – opinião corroborada pela produção teórica pós-moderna e um sem-número de ex-

100 marxistas “renegados”79

–, a abordagem defendida neste trabalho trilha um caminho diametralmente oposto. A experiência que o mundo viu chegar ao fim naquela data foi o

capitalismo de Estado soviético. No entanto, esta conclusão não é consenso entre os

diferentes especialistas na história da Revolução Russa. Na atualidade, em linhas gerais, as principais abordagens sobre a natureza social da União Soviética são: 1) a do

“Estado operário burocraticamente degenerado”, tal como define Trotsky80 ; 2) o “pós-capitalismo”, ou “Estado pós-revolucionário”, de Mészáros (2002), que descreve uma sociedade em que há capital, mas sem capitalistas, onde a extração de mais-valia (por quem?) se daria por mecanismos políticos; e, 3) a própria tese do

capitalismo de Estado. Nos dois primeiros casos há uma total recusa de um

capitalismo de tipo estatal e, portanto, da existência de uma nova classe social exploradora na URSS.

Cabe ressaltar que, em um dos seis pontos que Mészáros (2002, p.737) elenca para definir o capitalismo, afirma que “a mais-valia economicamente extraída é

apropriada privadamente pelos membros da classe capitalista” (itálico no original).

Com isso, o filósofo húngaro utiliza um critério jurídico para definir o modo de produção capitalista, a forma de propriedade. Neste raciocínio, a estatização dos meios de produção descaracteriza o capitalismo enquanto tal. Não surpreende que o autor não enxergue na sociedade “pós-revolucionária” soviética, nem capitalismo de Estado, tampouco uma nova classe social exploradora (por mecanismos econômicos), mesmo reconhecendo a exploração como um fato.

Por outro lado, como afirma Bernardo (1975, p.158):

para que haja capitalismo, não basta que não se constitua o comunismo e que os gestores da produção sejam autónomos; é necessário que desenvolvam a sua autonomia transformando-se em gestores do próprio processo social e – neste caso através desse mesmo controle do aparelho político – em proprietários dos meios de produção e exploradores do trabalho assalariado.

79 Por exemplo, Lyotard (2000), ex-marxista e ex-colaborador do periódico Socialismo ou Barbárie,

animado por Castoriadis e Lefort.

80 Sobre tal definição, em sua polêmica com Shachtnan e outros membros do Socialist Workers Party

(SWP), nos EUA, nos anos de 1939 e 1940, Trotsky (1987, p.144) afirma que, “em relação à defesa da URSS contra o imperialismo, esta mesma definição era, em 1920, como hoje, inalteravelmente concreta, ao tornar obrigatória para os operários, a defesa do Estado em questão”. Contra a burocracia stalinista, Trotsky defendia a “revolução política”, uma vez que o “sistema da economia planificada, sobre a base da propriedade estatal dos meios de produção, conservou-se, e continua sendo uma conquista colossal da humanidade” (idem, p.146). Triste tarefa deixada ao proletariado soviético.

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A tese do capitalismo de Estado soviético apresenta diversas linhas de análise internas, como a dos “comunistas de conselhos”, tais como Pannekoek (2004), Korsch, Gorter, Mattick (2010), entre outros; a dos maoístas franceses, que tem a obra de Bettelheim (1976, 1983) como marco; e anarquistas como Rocker (2007) que, em 1921 numa obra pioneira, já denunciava a degeneração capitalista-estatal da Revolução Russa. Muitos outros autores compartilham essa caracterização da URSS, nos mais variados matizes teóricos dentro do campo comunista, como Cornelius Castoriadis, Raya Dunayevskaya, Maurice Brinton (1975) e João Bernardo (1975, 2009), apenas para citar alguns81.

Metodologicamente, Bernardo (1975, p.141) afirma a importância de se “estudar o processo inaugurador da revolução para só depois, em função dele, estudar o processo da própria revolução”. Esta investigação deve ocorrer não no nível de desenvolvimento das forças produtivas, mas sobre a

(...) natureza das relações sociais dominantes, isto é, simultaneamente, na

reprodução da divisão capitalista do trabalho e nas relações ideológicas e políticas, as quais são um efeito dessa divisão mas constituem também as

condições sociais dessa reprodução (BETTELHEIM, 1976, p.24-25, itálico no original)82.

De acordo com os teóricos da transição para o comunismo83, este processo deve contemplar o fim da divisão social entre direção e execução da produção e da separação entre trabalho manual e intelectual. Isto é, deve ocorrer “a gestão da economia exercida cada vez mais directamente pelos produtores organizados” (BERNARDO, 1975, p.141-142).

Se nos primeiros anos após a insurreição de Outubro havia uma situação de “transição” ainda colocada, esta logo se esvai, e a história passa a se desenvolver no sentido contrário, pois “os comitês de fábrica vão sendo esvaziados até se chegar à sua

81 Para uma abrangente revisão das diferentes abordagens, no interior do marxismo, sobre a natureza das

relações sociais na URSS, ver Linden (2007).

82 Não estamos igualando aqui as análises de Bettelheim e Bernardo, sobre as contradições da Revolução

Russa e seu processo posterior. São posições muito diferentes, principalmente na análise do papel do Partido Bolchevique. Não há espaço aqui para desenvolver esta questão. A utilização destes autores diz respeito a aspectos que considero complementares, a partir de posições pontuais com as quais concordo. No entanto, em linhas gerais, as conclusões de Bernardo (1975) são mais pertinentes ao enfoque dado nesta tese.

83 Para uma discussão teórica mais ampla sobre a dialética entre relações sociais de produção e as forças produtivas, numa perspectiva de transição para o comunismo, cf. Bernardo (1975, 2006), Naves (2005),

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supressão, enquanto os soviets vão rapidamente perdendo todo o poder real” (NAVES, 2005, p.60). Esse processo é descrito em detalhes por Brinton (1975). Eis o caráter da principal contradição que se observa desde o início do processo revolucionário que, no período aqui representado, se agrava ainda mais. Como afirma Pannekoek (2004, p.258):

Um sistema de capitalismo de Estado tomou corpo definitivamente na Rússia, não desviando-se em relação aos principios estabelecidos por Lênin, em O Estado e a revolução, por exemplo, senão ajustando-se a eles. Havia surgido uma nova clase, a burocracia, que domina e explora o proletariado.84

Consolida-se uma situação pela qual o partido bolchevique, enquanto órgão político vai sendo dominado por sua estrutura burocrático-administrativa85, afastando-se de sua posição inicial de “todo poder aos soviets”. Isto é, “a fusão do partido tecnocrático com as instituições políticas é, pois, um momento da transformação da constituição do novo modo de produção em nova forma de realização do antigo modo de produção capitalista” (BERNARDO, 1975, p.145).

Além disso, ocorre um processo crescente de intensificação do trabalho nas fábricas e no campo; de diminuição de direitos civis por parte dos trabalhadores urbanos e rurais; de estratificação salarial, com larga vantagem para os técnicos e especialistas; de ampliação da divisão hierárquica do processo de trabalho, com premiações por produtividade; de utilização de métodos tayloristas de gestão do processo produtivo86; até se chegar a uma total falta de controle do operário sobre seu próprio trabalho, submetido às vontades do diretor único da unidade fabril. Eis o caráter contraditório que se observa desde o início do processo revolucionário soviético que, no período aqui representado, se agrava ainda mais.

Portanto, a consolidação do capitalismo de Estado integral (BERNARDO, 1975) – situação que vai se dar com a afirmação do stalinismo enquanto linha política majoritária –, marca a ascensão da burguesia de Estado. O longo período de

84

“Un sistema de capitalismo de Estado tomó cuerpo definitivamente en Rusia, no desviándose en

relación con los principios establecidos por Lenin, en El Estado y la revolución, por ejemplo, sino ajustándose a ellos. Había surgido una nueva clase, la burocracia, que domina y explota al proletariado”

(traduzi).

85

“A fusão do partido tecnocrático com as instituições políticas é, pois, um momento da transformação da constituição do novo modo de produção em nova forma de realização do antigo modo de produção capitalista” (BERNARDO, 1975, p.145).

86 Linhart (1983) realiza uma substancial análise sobre a “complexidade da posição ‘tayloriana’” de Lênin

e sua influência na URSS e o chamado “stakhanovismo”. Sobre a influência do taylorismo sobre o construtivismo russo, cf. Miguel (2007).

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planificação econômica aparece como uma mistificação da “substituição” do mercado por relações sociais de tipo “socialista”. Mantêm-se, efetivamente, categorias econômicas capitalistas como salário e preço, por exemplo, enquanto o Estado organiza tanto as trocas mercantis entre as unidades fabris, como a distribuição dos bens de consumo à massa trabalhadora. Em Mattick (2010) encontra-se uma valiosa crítica à Economia Política do capitalismo de Estado. De acordo com o autor, esse sistema econômico

(...) continua a ser um sistema gerador de “mais-valia”, mas já não é um sistema “regulado” pela concorrência de mercado e pela crise. O sobreproduto, para ser realizado enquanto lucro, já não exige a concorrência de mercado; são os organismos responsáveis pela planificação estatal que decidem do seu carácter material específico e da sua repartição (2010, p.372).

O que se percebe, portanto, é a manutenção das categorias econômicas burguesas, sob nova forma jurídica.