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A teoria do design como campo de investigação sociológica

1. DO OBJETO E DOS OBJETIVOS DESTE TRABALHO

1.2 A teoria do design como campo de investigação sociológica

Para tomar a teoria do design como objeto de pesquisa é crucial delimitar sua abrangência e suas fronteiras. Bürdek (2006) cita o teórico da comunicação Sigfried Maser e sua ampla definição de teoria do design:

Tudo o que se pensa, se reconhece e se argumenta sobre o design deve ser compreendido na sequência como teoria do design: questões da substancialidade e sobre a existência do design, a crítica do design, a validade e a fundamentação destas críticas, a criação do design, a história, o passado e o futuro, a compreensão do designer como artesão, artista ou cientista, nas metas e ideais do design, as relações com outras áreas de conhecimento e de atuação, além de muitas outras (MASER apud BÜRDEK, 2006, p.277).

Esta definição serve de ponto de partida, ao menos de uma perspectiva descritiva, para delimitar esta pesquisa sobre a teoria do design. Bomfim (1995) identifica a necessidade de desenvolver a teoria do design a partir do desenvolvimento acadêmico vertical da área, com a constituição de programas de pós-graduação em nível de Mestrado e Doutorado. Uma teoria do design, para o autor, pode ocorrer de forma mais imediata, através de estudos da configuração de objetos e sistemas. Ou, num sentido mais amplo, “a figura e a configuração podem ser tematizadas sob a ótica da filosofia (definição e caracterização do design, fundamentação filosófica da teoria e da práxis: epistemologia), da história (história do design, da técnica e dos objetos), da pedagogia (ensino do design), etc” (1995, p.21). E, portanto, da própria Sociologia, como neste caso.

Bomfim (1995) defende ainda a necessidade de a teoria do design ser interdisciplinar, buscar fundamentos epistemológicos na teoria do conhecimento, na lógica, etc., na articulação entre teoria e prática através da constituição de uma linguagem comum às áreas envolvidas. Há cerca de duas décadas, o autor afirmava: “uma teoria do design ainda não existe, mas o caminho para a sua formulação pode ser vislumbrado através de uma concepção holística entre teoria e práxis” (id. ibid.). Realmente, uma teoria do design não pode existir em uma atividade repleta de contradições e permeada por múltiplos conhecimentos. Apesar de usar aqui o termo no singular, isto é feito apenas para abordar o assunto genericamente. O que ocorre é uma multiplicidade de abordagens diferentes dentro da teoria do design. Mas, isto também

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ocorre em outras áreas do conhecimento, como a Sociologia, por exemplo, guardando- se as devidas proporções.

Gui Bonsiepe, juntamente com Tomás Maldonado, representantes do design

funcionalista, talvez sejam os maiores expoentes daquilo que defino aqui como teoria

do design. Será travado um diálogo crítico com estes autores ao longo de toda esta Tese, especialmente com Bonsiepe8. Mas, como adverte Selle (1973, p.51), “esta crítica

no debe considerarse como una pura interrogación sobre las ideas y concepciones que se han sucedido a lo largo de la história del diseño, sino también como um planteamiento de su transfondo social y su realidade histórica”.

Com o processo de mundialização da economia capitalista, e a respectiva industrialização dos chamados países do “Terceiro Mundo”; pelo agravamento das condições de miséria de uma parte considerável da população mundial; além da emergência da “crise ambiental global”, surgiram variantes teóricas e práticas no

design, que tentaram realizar uma crítica “sistêmica” ao capitalismo. Influenciado pelas

teorias econômicas da CEPAL, a partir de uma perspectiva calcada na ideologia de “desenvolvimento nacional”, Gui Bonsiepe desenvolveu no Brasil um trabalho que marcou o cenário brasileiro de design, na década de 1980. Bonsiepe (1983) postulava a necessidade de uma independência tecnológica dos países de periferia em relação aos países centrais. Tecnologia e design deveriam ter um caráter endógeno, que partisse das potencialidades econômicas e características socioculturais de cada país e região, visando o desenvolvimento da indústria nacional. Apesar de seu teor crítico, essa perspectiva sucumbiu diante da potência do imperialismo internacional que dinamizava a chamada “globalização”, mostrando os limites do nacional-desenvolvimentismo, principalmente pelo seu imperativo de conciliação entre as classes sociais.

A discussão sobre a relação entre teoria e prática permeia praticamente toda a obra escrita deste autor, sintetizada na noção de práxis projetual. Para Bonsiepe

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Em sua ótima resenha da última obra de Bonsiepe (2011a), Arantes (2012, p.01) assim apresenta este importante autor: “Mesmo que seja desnecessário apresentar Gui Bonsiepe, talvez possamos dizer que ele é um defensor de primeira grandeza da ‘boa causa’ do design – entendida como a pesquisa de soluções para as necessidades de massa, a defesa da virtude pedagógica do bom desenho e a tentativa de participar, por meio dos objetos, do processo de transformação da sociedade. Ele é, na América Latina, continente que escolheu quando saiu da Alemanha no fim dos anos 1960, passando pelo Chile de Allende, um dos principais herdeiros do legado do projeto moderno da Bauhaus e da Escola de Ulm, da qual foi aluno. Diante da rarefação crítica do debate em torno do Design, seu novo livro Design, cultura e sociedade (Editora Blucher, 2011) é mais do que bem vindo, é leitura obrigatória para todos aqueles que desconfiam do fetichismo que aprisiona o design no universo fashion do consumo acelerado”.

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(2011a, p.190), “(...) projetar significa intervir na realidade, constituindo-se, portanto, em uma atividade prática. Porém, não se deve contentar-se com isso, pois o tecido da prática está inevitavelmente entremeado com fios teóricos”. A importância da teoria para este designer alemão se dá porque “cada prática profissional se desenvolve frente a um cenário teórico; isso vale também para formas de prática profissional que insistem cegamente em negar qualquer fundamentação teórica” (idem, p.40).

Bonsiepe (idem, p.197) é um dos poucos autores do design ainda preocupados com a constituição de um pensamento crítico, pois a teoria não é uma coadjuvante para “enfeitar a prática”, “ela deve ser considerada como domínio onde se cultiva o ‘pensamento discordante’”. Bonsiepe também rechassa a atitude antiteórica que o pragmatismo projetual reproduz. Essa realidade parece manter uma relação causal com uma “educação orientada à formação de habilidades, que fomenta uma postura anti-intelectual” (idem, p.183). Mas, para o autor a teoria não pode vir descolada da prática de projeto. Afinal, “uma prática sem ‘pensamento discordante’ torna-se flácida. A teoria sem relação com o ‘pensamento operante’ se perde nas elocubrações acadêmicas” (idem, p.196). No entanto, Bonsiepe costuma demonstrar certa resistência a críticas “externas” ao design, por considerar que “o design tem servido hoje como fachada para a crítica à sociedade da mercadoria, para a crítica ao pancapitalismo” (idem, p.235).

A este fenômeno Bonsiepe (idem, p.236) define como “pesquisa projetual exógena”, isto é, “realizada por outras disciplinas que selecionam o projeto como objeto de pesquisa, partindo de suas próprias perspectivas e, abrindo assim, novas abordagens sobre o tema pesquisado”. Apesar de suas possíveis contribuições, para o autor esse tipo de pesquisa corre o risco de “ficar apenas em análises superficiais e genéricas”. Em várias passagens, este designer defende a necessidade de um pensamento crítico na prática projetual, mas o limite é sempre o da crítica ao design. O autor continuamente condena as pesquisas sobre design que não têm uma relação direta com a atividade, pois acredita que podem recair em “especulações parafilosóficas”. Com isso, desconfia das pesquisas acadêmicas supostamente desprovidas de substrato projetual. Para o autor,

O design foi exposto ao perigo de transformar-se em playground para exercícios de uma postura acadêmica completamente alheia à atividade projetual e que procura compensar essa deficiência colocando os seus

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fundamentos sociais, tecnológicos e culturais com um rancor, às vezes, mal dissimulado (idem, p.215).

Portanto, a teoria só deveria ser desenvolvida por profissionais com “experiência prática”, para não ser considerada “(...) passatempo de alguns acadêmicos excêntricos, protegidos contra o duro mundo da prática profissional” (idem, p.40). Apesar dos protestos do autor, em sua tentativa de blindar o design contra “ataques externos”, Bonsiepe acaba caindo em uma série de contradições. Enfatiza o fato de haver, por um lado, um desprezo do “designer prático” pela teoria, já que as teorias, “assim como a produção de poesias, não contribuem para o crescimento do PIB” (idem, p.179). Mesmo lamentando o atual vazio teórico na prática projetual, também vê com certa desconfiança uma postura meramente acadêmica diante do design.

Por considerar que o design se tornou objeto de pesquisa de áreas do conhecimento sem intimidade ou compromisso com o projeto, considera que estas são movidas por “profundos preconceitos arraigados contra os artefatos – objetos de uso e signos da prática cotidiana e suas condições de produção técnico-econômicas” (idem, p.180). Ainda que defenda a necessidade de se cultivar o censo crítico no design, considera que “a competência crítica e a competência projetual ocorrem em diferentes domínios”. Ao separar a capacidade crítica da atividade de projeto, atribui a esta última certa neutralidade técnica.

Quando compara a relação entre teoria e prática no design, com a relação entre a literatura e a crítica literária, Bonsiepe (2011a) considera que o crítico não precisa ser um novelista para desenvolver o seu trabalho. No entanto, “para a teoria do design, precisa-se de um mínimo de familiaridade com o design para evitar a produção de especulações confusas” (idem, p.180). Será possível realizar dal distinção? Não é o que se espera de qualquer estudo sério, “o mínimo de familiaridade” sobre qualquer tema? O design é uma área tão autônoma, tão específica e especial, que apenas profissionais com experiência de projeto (ou seja, de mercado) poderiam desenvolver uma teoria do design, ou pior, seriam os únicos capazes de realizar uma crítica consequente? Em muitos casos, o que ocorre é justamente o contrário. Lembrando que a noção de crítica aqui utilizada não é simplesmente a crítica de uma área do conhecimento sobre outra, mas uma crítica social, portanto, de classe.

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Em tom bastante irônico, o próprio autor afirma que não consegue imaginar um sociólogo projetando um leito de hospital. Parece que, em útima instância a teoria, crítica ou não, deve simplesmente oferecer subsídios para o desenvolvimento da prática de projeto. Neste sentido, Bonsiepe acaba por ignorar o papel da organização empresarial – locus da tão importante “prática de projeto” –, enquanto “aparelho ideológico” (TRAGTEMBERG, 2005). É justamente uma das questões que o terceiro capítulo deste trabalho tenta aclarar. Além disto, a presente Tese é uma realização de alguém com uma dupla formação, em design e Sociologia, o que ajuda a desmistificar possíveis acusações de “exogenia”, ainda que possa se insistir no argumento da “ausência de experiência de mercado” que, no meu caso, foi uma opção consciente.

Assim, na relação entre teoria e prática colocada por Bonsipe (2011a), o que está em jogo é a “prática profissional”. No entanto, a noção aqui utilizada é mais ampla, tomada como prática social, onde a atividade “profissional” aparece como um momento determinado da relação entre classes sociais antagônicas. E o imperativo do “projetar” não pode estar acima desta base material contraditória. Isto explica o preconceito e a resistência no meio do design, em relação a todo conhecimento que não parece imediatamente “aplicável” ao desenvolvimento de produtos. Trata-se de um fenômeno que ocorre em decorrência de uma visão estreita da noção de prática.

Mas, de todos os problemas encontrados neste debate específico, um dos mais notáveis é a afirmação de que a teoria é produzida a “custo zero” (2011a, p.179). Com esta afirmação, o autor acaba por ignorar todo o investimento social na formação acadêmica de alguém que vai da Graduação ao Doutorado, por exemplo. Se isto fosse verdade, não estaria ocorrendo uma verdadeira corrida das empresas para as Universidades e Institutos de Educação, à procura de conhecimento gerado pelas pesquisas acadêmicas nas chamadas “parcerias público-privadas”, através de Fundações, etc, ou criando concursos para a premiação de projetos, de onde recebem centenas de trabalhos de estudantes no auge de sua criatividade. Neste caso, sim, o custo é zero, mas para as empresas, que poupam milhões em pesquisa por meio desta manobra de apropriação privada de um conhecimento gerado com financiamento público.

Quanto à necessidade de um caráter crítico para a teoria do design, o que se vê na prática é o contrário. Os chamados “manuais de design” se apresentam apenas como “guias para o projeto”, negando sua especificidade teórica, na medida em que ali

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se escondem ideologias por trás de uma suposta neutralidade da técnica e do método. Uma antiga obra de Bonsiepe (1978) é uma excessão neste caso, pois propunha uma “manualística crítica” muito bem fundamentada. Aliás, se encontrava na contramão de suas concepções atuais, onde separa crítica e projeto.

O problema da total ausência de crítica ocorre principalmente com os manuais de “gestão do design”, como o de Mozota (2011, p.115-119), por exemplo. Esta autora protagonizou um dos casos mais absurdos, utilizando-se de autores como Debord, Baudrillard, Barthes, Bourdieu, Saussurre, etc, para endossar uma verdadeira apologia ao fetichismo do design aliado ao agressivo marketing contemporâneo. Mesmo depois de afirmar que o design é espetáculo; depois de citar a Crítica à Economia

Política do signo, de Baudrillard, que independente dos problemas teóricos que

apresente é uma obra pioneira na crítica ao design, enquanto instrumento de manipulação para o consumo; Mozota (idem, p.116) afirma, sem enxergar contradições, que “o design é a semiótica da sedução”. E este é o sentido dado ao seu “manual”: um guia sobre como seduzir os “consumidores”, cercando-os em todas as esferas da vida social, por todos os meios possíveis, do ponto de vista racional e emocional, consciente e inconsciente, utilizando conhecimentos psicológicos, sociológicos, antropológicos, cognitivos, semiológicos, etc., numa verdadeira blitzkrieg contra qualquer possibilidade de ação ou pensamento emancipatório. Foram estes, entre tantos outros problemas enfrentados no curso do desenvolvimento desta pesquisa, cujos resultados são aqui apresentados.