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CAPÍTULO I – DESIGN E LUTA DE CLASSES: TEORIA E

1. CONCEPÇÃO X EXECUÇÃO: O CARÁTER SOCIAL DA DIVISÃO DO

1.1 O trabalho na teoria do design

A definição da categoria trabalho pela teoria do design talvez seja uma das suas maiores debilidades. Sempre se esquivando da problemática da exploração, o trabalho acaba por ser definido, assim como ocorre com a própria atividade de projeto, em sua forma genérica, como trabalho em geral, tendo como consequência a diluição das contradições de classe. Por exemplo, em Löbach (2001, p.30), por quem o trabalho é apresentado como o “processo de transformação por meio do qual uma idéia se transforma em objetos de uso para a satisfação de necessidades”. Deixando a teoria das necessidades e o duplo caráter da mercadoria para o capítulo seguinte, o que nos importa aqui é a forma como o autor naturaliza o processo de produção capitalista. O

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trabalho é representado apenas em sua positividade, numa sociedade que tem, supostamente, o mercado como regulador social.

Löbach (2001) representa os sujeitos econômicos através de noções como “o fabricante”, “o comerciante” e “o usuário”, deixando totalmente de fora da análise o proletariado, diluído na vaga e tendenciosa noção de “consumidores”. Esta classe social surge apenas como quem “participa” da fabricação dos produtos, cujo único interesse é “a retribuição do seu trabalho em dinheiro para assim poder adquirir os produtos que satisfazem as suas necessidades pessoais” (idem, p.31). Nesta passagem, a centralidade da força de trabalho no processo produtivo é secundarizada, enquanto os trabalhadores são reduzidos a meros “consumidores”. Como prova da relação direta da teoria do

design com a Economia Política, Mészáros (2002, p.673) afirma que “(...) a ‘ciência

econômica’ não só inventa ‘o Consumidor’ como entidade independente, mas também invoca o capitalista como ‘o Produtor’, reduzindo ficticiamente o papel estratégico do trabalho a um mínimo irrelevante” (itálicos no original).

Bomfim (1995, p.04) incorre no mesmo tipo de erro, ao apresentar o que chama de “cinco fatores do design industrial”: a) o sujeito criador – o designer; b) o sujeito produtor – a Indústria; c) o sujeito consumidor – os usuários; d) a sociedade como instituição – o Estado; e) o produto. Aqui também os trabalhadores simplesmente não são referenciados, senão indiretamente como o “sujeito consumidor” e a figura do “produtor” corresponde ao proprietário dos meios de produção, o burguês.

O recurso teórico que trata por “industriais”, ou “produtores”, todas as classes sociais envolvidas no processo de produção é próprio das correntes tecnocráticas, desde Saint-Simon. A este pensador francês Bernardo (2004) atribui o título de “capitalista científico”, de “teórico do poder empresarial”, ao invés de sua clássica definição como “socialista utópico”. Também em Hegel (1976) aparece o conceito de “classe industrial”. Esta é definida pelo filósofo alemão como parte da “classe substancial” ou “imediata”, composta também pelo campesinato (as outras duas classes seriam a classe “reflexiva” ou “formal”, e a “universal”), ligada naturalmente com a propriedade privada. Numa definição em que cabe tanto a burguesia quanto o proletariado, em sentido marxiano, Hegel (1976, p.184, §204), afirma que a classe industrial se ocupa da

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(...) transformação do produto natural, e seus meios de subsistência vêm-lhe do trabalho, da reflexão, da inteligência e também da mediação das carências e trabalhos dos outros. O que produz e o que consome, deve-o essencialmente a si mesma, à sua própria actividade.

No campo do design, é possível encontrar uma discussão mais refinada entre os funcionalistas, como Maldonado (1977a), para quem a “relação necessidade- trabalho-consumo” deve ser buscada na Economia Política, especificamente em Smith, Ricardo, Hegel e o crítico desta tradição: Marx. Nos breves momentos em que a investigação teórica no design não se resumia a mero apologismo, procurava-se analisar a atividade projetual na sua íntima relação com as determinações da sociedade capitalista. Ainda que com um forte fetiche pela questão tecnológica, aproximando-os do chamado “marxismo das forças produtivas”, desde então praticamente não se realizou mais uma discussão séria neste campo, ao menos não com a mesma densidade. No entanto, foi justamente sobre este ponto, o tecnicismo, que os situacionistas se empenharam em demonstrar o caráter tecnocrático do funcionalismo, especialmente o ulmeano.15

Maldonado (1977a) cita Smith sobre a relação entre o desenvolvimento técnico e a divisão do trabalho, demonstrando a perspectiva positiva do economista político inglês em face à maquinaria, por estas “facilitarem” e “abreviarem” o trabalho.

Evidenciando a contribuição de Marx para elucidar esta problemática, conclui que, “na Economia Política clássica, o vínculo causal entre a máquina e as relações de

produção, apenas se intuía; ao contrário, em Marx nos encontramos frente a uma tomada de consciência precisa dele” (1977a, p.28)16

. Avançando em sua argumentação, o autor afirma que, para Hegel, influenciado pela Economia Política, o trabalho, enquanto “anulação da intuição”, já aparecia como mediação entre o homem e a natureza, onde o desenvolvimento técnico surgia como obra do espírito.

A posição de Hegel (1976) – sobre a qual Maldonado demonstra clara simpatia - encontra-se desenvolvida, principalmente, na sua discussão acerca da “sociedade civil” em Princípios da Filosofia do Direito. Ali, a categoria trabalho surge como a forma com que o homem se apropria da natureza, transformando-a em meio de

15 Sobre o tema, cf. especificamente os artigos do artista holandês Asger Jorn (2011a, 2011b): Against Functionalism, de 1957 e The Situationists and Automation, de 1958.

16 “En la economía política clásica, el vínculo causal entre la máquina e las relaciones de producción, apenas se intuía; en cambio, en Marx nos encontramos frente a una toma de consciencia precisa de ello”

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satisfação das suas carências. Nas palavras de Hegel (1976, p.180, §196), “esta elaboração dá ao meio o seu valor e a sua utilidade; na sua consumação, o que o homem encontra são sobretudo produtos humanos, como o que o utiliza são esforços humanos”.

Cabe destacar o aspecto tecnicista na definição de Maldonado (1977a) acerca do processo de trabalho, enquanto um “sistema de instrumentos, ou de artefatos”. Mesmo referenciando a discussão realizada por Marx (1983) sobre a maquinaria e a grande indústria, problematizando o papel das máquinas na sociedade capitalista enquanto “meio de exploração da força de trabalho” (MALDONADO, 1977a, p.30), esse designer argentino apresenta o trabalho como um mero processo técnico, não como um conjunto de relações sociais onde esta categoria aparece subsumida ao capital, no ato da produção. É sobre isso que trata Bernardo (1977b), quando explica a atração que a classe gestorial tem pela problemática tecnológica, tratando-a como a esfera determinante da sociedade. Estas abordagens partem do “processo produtivo tecnologicamente considerado. Reflectem assim o ponto de vista dos gestores (...)” (1977b, p.61).

Em Marx, o trabalho assume um caráter contraditório, dialético, enquanto afirmação e negação da condição humana (ANTUNES, 2001). Em sua positividade, surge como “uma condição eterna da existência humana” (MARX, S/D, p.64). Trata-se de

(...) um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para a sua própria vida (MARX, 1983, p.149, itálico nosso).

Nesta clássica passagem da obra máxima de Marx, o trabalho assume uma densidade conceitual que logo evidencia a superficialidade com que esta categoria é apresentada na maior parte da literatura de design. Nesse campo teórico, hegemonicamente o que interessa é apenas o seu aspecto operacional, técnico, ligado à produção de artefatos, portanto, à natureza imediata da sua atividade. Assim como a melhor definição da amplitude da capacidade projetual humana não se encontra na teoria do design, mas na famosa parábola em que Marx (1983) compara o trabalho da “melhor abelha” com o do “pior arquiteto” onde, independente da qualidade de suas

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obras, este último “construiu o favo em sua mente, antes de construí-lo em cera” (id. ibid.)17. No entanto, a quase totalidade dos teóricos do design passa ao largo dessa abordagem. Tem-se aqui uma formulação genérica do trabalho de concepção, que ajuda a explicar suas manifestações históricas.

Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos o “jovem” Marx (2004) já trazia, ao referir-se a essa intencionalidade criativa enquanto “atividade vital consciente”, a capacidade projetual manifestada como característica do ser humano genérico, o engendrar prático de um mundo objetivo. No entanto, é nessa obra que Marx começa a delinear a negatividade do trabalho, sob o conceito de estranhamento, ou de trabalho

estranhado18. Conceito que, segundo o próprio Maldonado (1971), ajudou “(...) a compreender sob uma nova luz o elo dialéctico entre a consciência e a realidade social”19

. Em linhas gerais, consiste num processo de não identificação do trabalhador com o produto de seu trabalho, tampouco com sua própria atividade, na medida em que estes são apropriados por outrem, tornando-se estranhos e antagônicos a ele. Sendo a atividade produtiva condição natural de sua existência social, “o trabalho estranhado 1) estranha do homem a natureza, 2) [e o homem] de si mesmo, de sua própria função ativa, de sua atividade vital; ela estranha do homem o gênero [humano]” (MARX, 2004, p.84).

Foge aos objetivos deste trabalho abordar as querelas do eterno debate acadêmico acerca da existência ou não de um “corte epistemológico” na obra de Marx. A este respeito, parecem sensatas e pertinentes as observações de Bernardo (2003). Para este autor português, Marx pôde “identificar a alienação, enquanto perda de si próprio,

17 Muito antes de Marx, Aristóteles já havia utilizado o conceito de ação inteligente, em A Política, ao

afirmar que “a arte consiste de fato na concepção do resultado a ser produzido antes de sua concretização no material” (apud BRAVERMAN, 1987, p.50).

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Existe um amplo debate no interior do marxismo sobre qual o termo mais adequado para designar esse processo descrito por Marx (2004): alienação (Entäusserung), ou estranhamento (Entfremdung), ambos utilizados pelo autor. Ranieri (2004) defende a necessidade de demarcar, com maior precisão, as divergências e complementaridades destes termos. Para os objetivos desta tese, não cabendo aqui um aprofundamento sobre esta questão, utilizaremos a categoria estranhamento tal como interpretada por este último, que afirma que “(...) se estruturam em Marx, graças à descoberta da contradição interna da propriedade privada, todos os desdobramentos do estranhamento do trabalho (...) sob o pressuposto do trabalho subordinado ao capital” (RANIERI, 2004, p.13).

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Em nota, Maldonado (1971, p.114-117) realiza uma abrangente revisão do conceito de alienação (assim como faz em relação a tantos outros temas), mostrando um profundo conhecimento filosófico que, diante da pobreza teórica atual no campo do design, teria hoje grandes dificuldades em ser compreendido. Sua discussão passa por Hegel, Feuerbach, Marx, Lukács, Marcuse, Lefebvre, Fischer e Althusser. Ainda sobre esses autores, Maldonado apresenta um domínio sobre uma grande diversidade de obras, testemunho de sua grande erudição.

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com a exploração, enquanto apropriação alheia do cindido”, sendo este o fundamento filosófico da mais-valia, como categoria que expressa a relação social de antagonismo entre as classes exploradoras (burgueses e gestores) e a explorada. Para este pensador português, o antagonismo capital/trabalho opera assim uma tripla cisão, definida como

alienação (estranhamento), no campo filosófico; mais-valia, no campo econômico; e hetero-organização/auto-organização, no campo político20. Portanto, o conceito de estranhamento aqui utilizado remete à dimensão subjetiva do proletariado, cuja materialidade é definida pela ausência de controle sobre sua atividade sensível, sobre sua organização e seu tempo, sobre o quê e como produz, e para quem. Para os produtores diretos, a desapropriação operada pelo capital é radical, pois estes

(...) não só não influenciam o destino ulterior do produto e a ele permanecem alheios, como também ninguém os consulta quanto ao tipo de bens que convirá fabricar, que características lhes dar, onde procurar matérias-primas e de que qualidade, e assim por diante (BERNARDO, 1979, p.33).

Com isso, podem ser percebidos os primeiros indícios de uma forma de

criatividade estranhada, uma vez que o poder conceptual que projetou o objeto

materializado no processo de trabalho, também é exterior e hostil ao trabalhador. Ou, como veremos, o projeto é em si uma normativa sobre o trabalho de execução. Os engenheiros de produção bem sabem disso.

No entanto, é em sua obra máxima que Marx (1983) delineou a negatividade do trabalho no âmbito do processo de produção e reprodução do capital, no conceito de

trabalho abstrato, fulcral em sua teoria do valor. Em O Capital, este materialista

alemão demonstra que a substância do valor das mercadorias é um quantum de trabalho socialmente necessário medido em unidades de tempo, portanto, desprovido de qualidades, pertencendo estas ao valor de uso. Como afirma Thomas (1994, p.29), trata- se do processo em que o trabalho “perde a sua existência concreta de mediação transparente para se tornar trabalho abstrato e se cristalizar em trabalho morto nas máquinas e no capital, senhor do homem, hostil ao homem”.

20 “O conceito de alienação é um utensílio crítico vocacionado para os campos filosófico, antropológico e

psicológico, permitindo mostrar que a classe trabalhadora e os trabalhadores individualmente considerados geram formas culturais e mentais que, ao mesmo tempo que os exprimem, lhes são hostis. Transportada para o plano econômico, a alienação desdobra-se na mais-valia e desvenda o segredo do crescimento da riqueza, da desigualdade na distribuição dos bens e do exclusivismo na atribuição do controlo social. Ao transferir estes termos para o domínio político concluo que a noção de hetero- organização caracteriza a situação de quem é alienado culturalmente e explorado economicamente” (BERNARDO, 2003, p.26).

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Lembrando que o processo de formação de valor é sempre, e ao mesmo tempo, processo de produção de mais-valia. Este fenômeno, descrito aqui de forma breve e aprofundado no capítulo seguinte, escapa em sua totalidade à teoria do design que vê no trabalho de execução apenas a atividade “natural” de materialização das idéias produzidas no pólo de concepção, encontrando-se aqui, supostamente, o verdadeiro centro produtor de valor, hipótese que se pretende refutar no último capítulo.