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CAPÍTULO I – DESIGN E LUTA DE CLASSES: TEORIA E

3. DESIGN, VANGUARDAS E REVOLUÇÕES SOCIAIS

3.5 A HFG Ulm e o reformismo do design racionalista

3.5.1 Nasce outro mito: a “Nova Bauhaus”

O surgimento da HFG Ulm remonta à criação da Fundação Scholl por Inge Scholl (1917-1998) e seu marido, o designer Otl Aicher (1922-1991), logo após o final da II Guerra. Tratava-se de uma homenagem aos seus irmãos Hans e Sophie Scholl,

planificadores de las necesidades de la burguesía así como los agentes dela explotación y la represión de los trabajadores”.

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então membros do movimento antinazista “Rosa Branca”, executados pela Gestapo, em 1943, devido às suas atividades de resistência. A história da HFG iniciou com o “Centro de Educação para Adultos de Ulm” (Ulm Volkshochschule – UV), um projeto da Fundação criado em 1949, que buscava contribuir com uma reeducação humanista da população alemã, frente às atrocidades levadas a cabo pelo Nacional-Socialismo. A memória dos crimes nazistas era muito recente, e demorariam anos até que se conhecesse toda sua extensão e profundidade. Diante disso, o ex-Diretor da HFG, Tomás Maldonado (1971, p.32) afirmou que

(...) mesmo que no futuro toda a gente esqueça a enormidade deste crime, pelo menos uma ferida não se poderá cicatrizar: a que Auschwitz deixou no próprio corpo da cultura iluminista moderna, quer dizer, a convicção de que a racionalidade pode ser utilizada em função da mais brutal irracionalidade.

Ainda em 1949, Scholl e Aicher entraram em contato com o artista Max Bill, com uma proposta de abrir uma nova escola de política e artes, com a mesma

perspectiva humanista do Centro de Educação. De acordo com Spitz (2002, p.10), “O design, na HfG, era entendido como um meio de influência, i.e., melhoria, do

indivíduo e da sociedade como um todo. O design era considerado um meio – essencialmente pré-político – de realização de metas políticas”.101

De acordo com Pezolet (2008, p.73), autoridades estadunidenses financiaram metade do custo da construção da escola, enquanto a outra metade foi fornecida pela Fundação Scholl e seus muitos doadores na Alemanha Ocidental. Além de empresas alemãs, as principais fontes de receita para o orçamento da HfG incluem, entre agências norte-americanas apoiadoras, a Fundação Rockefeller e a Fundação

Ford. O que já demonstra de partida certas ambiguidades da instituição. Assim, em

1953, inicia a construção do prédio projetado pelo próprio Max Bill. Em 1955, a HFG é inaugurada, sendo Bill nomeado como primeiro Reitor. Em seu discurso de inauguração, Bill apresentava a nova escola como uma “continuação da Bauhaus”. Maldonado (1977a), que sucedeu Bill em 1956 na direção da Escola, considera que a

101 “Design, at the HFG, was understood as a means of influencing, i.e., improving, the individual and society as a whole. Design was considered to be a means – essentially prepolitical – of accomplishing political goals” (Traduzi).

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ambigüidade estética e histórica desse projeto de “continuidade” não tardou em aparecer.

Atribuído à linha teórico-pedagógica e prática que liga a Bauhaus e a HFG Ulm, ambas na Alemanha, o funcionalismo que marcou a HFG está longe de apresentar uma unidade teórica. Autores como Maldonado (1977a) e Bonsiepe (1978), por exemplo, se aproximam da corrente produtivista-funcionalista, muito influenciada pelo construtivismo russo. Esta concepção funcionalista de design tem como característica principal a procura por uma unidade coerente entre a estrutura e a função do produto, portanto, entre sua estrutura interna e sua forma externa.

O funcionalismo de Max Bill era, portanto, mais próximo do formalismo do que das correntes produtivistas, e sua “idéia” da Bauhaus era a cristalização do período anterior à direção de Hannes Meyer, definido criticamente por Maldonado (1977a) como a “morfologia Bauhaus”. Para este ex-diretor da HFG, trata-se de uma complexa síntese entre o De Stijl e o construtivismo russo e húngaro (presente na figura de Moholy-Nagy). Nas palavras do autor, um formalismo neoplasticista reelaborado a

partir do construtivista (1977a, p.67). Em 1948, Bill deu uma série de palestras na Werkbund suíça, com o título “A beleza como função e baseada na função”. Foi nesse

momento que o artista começou a formular as concepções do movimento que viria a ser conhecido como “gute Form” (Boa Forma), posteriormente desenvolvido nos EUA como “good Design” (Bom Design).

Como os estúdios de alguns professores funcionavam no interior da Escola, em “parceria” com empresas privadas, o projeto dos produtos da empresa alemã Braun tornou-se o caso clássico do “Bom Design”, na década de 1950. Foram projetos realizados pelo professor Hans Gugelot (1920-1965), importante designer e arquiteto, e por Dieter Rams (1932-), talvez o nome mais importante do design do pós-II Guerra102. Desde então, para o senso comum a Escola de Ulm, o funcionalismo, a gute Form e o “estilo Braun” tornaram-se sinônimos103

. Na gute Form, certos objetos merecem ser considerados “exemplares” devido à sua “particular qualidade formal” buscando-se com

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O atualmente famoso designer Jonathan Ive, da empresa Apple – campeã em vendas de gadgets que se tornaram “objeto de culto” conjuntamente com a figura de Steve Jobs, CEO da empresa –, admite uma total influência de Dieter Rams e do “estilo Braun” em seu trabalho (DIAZ, 2008; HUSTWIT, 2009).

103 Bürdek (2006) esclarece que, apesar dessa identidade, Dieter Rams nunca estudou nem lecionou em

Ulm. Este tipo de projeto corporativo demonstra um caráter gestorial, de organização do ambiente empresarial e de sua imagem.

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isso, “educar” o gosto de consumidores e produtores (MALDONADO, 1977a). De acordo com o autor, “a gute Form se deixa cooptar facilmente: o ‘estilo Braun’ não é mais que a apropriação indevida do método de Ulm por parte do neocapitalismo alemão” (idem, p.09).104

Bonsiepe (1978) definiu o caráter “sociopedagógico” deste movimento como a “versão espiritual burguesa da atividade projetual” que, numa tentativa elitista de “canonizar” determinadas preferências de setores sociais dominantes, acabou servindo como uma entre outras ferramentas para o “incremento das vendas”. Tratava- se para o autor de uma visão excessivamente “formalista” do valor de uso, caracterizando o “triunfo das exigências visuais sobre as vitais” (BONSIEPE, 1978).

Foi contra essa linha formalista de Bill que Tomás Maldonado iniciou uma oposição, com apoio de Hans Gugelot, Otl Aicher, entre outros. Bill foi substituido como Reitor por Maldonado, em 1956, deixando a Escola em 1957. O projeto didático- organizativo de Maldonado era transformar o ensino intuitivo-formalista, de Bill, por uma plataforma que favorecesse o ensino de disciplinas técnicas e científicas. Mas, principalmente, o estudo e desenvolvimento teórico e prático das metodologias

projetuais. Tudo isso criava uma barreira incontornável, que separaria definitivamente o design da arte e da artesania (MALDONADO, 1977a). Ulm tinha a pretensão de dar ao design uma estrutura e uma base científicas (SPITZ, 2002). Para o novo Reitor da HFG,

(...) projetar a forma significa coordenar, integrar e articular todos aqueles fatores que, de uma forma ou de outra, participam no processo constitutivo da forma do produto. E com ele se alude precisamente tanto aos fatores relativos ao uso, fruição e consumo individual ou social do produto (fatores funcionais, simbólicos ou culturais), como aos que se referem à sua produção (fatores técnico-econômicos, técnico-construtivos, técnico-sistemáticos, técnico-produtivos e técnico-distributivos) (MALDONADO, 1977a, p.13).105

Aparece aqui uma definição de design mais complexa do que uma simples atribuição de forma – embora a ampla repetição do termo “técnico” para definir

104 “(...) la gute Form se deja cooptar fácilmente: el ‘estilo Braun’ no és más que la apropiación indebida del método de Ulm por parte del neocapitalismo alemán” (traduzi).

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“(...) proyectar la forma significa coordinar, integrar y articular todos aquellos factores que, de una

manera o de outra, participan en el processo constitutivo de la forma del producto. Y con ello se alude precisamente tanto a los factores relativos al uso, fruición y consumo individual o social del producto (factores funcionales, simbólicos o culturales), como a los que se refiren a su producción (fatores técnico-económicos, técnico-constructivos, técnico-sistemáticos, técnico-productivos y técnico- distributivos)” (traduzi).

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produção, distribuição e a economia em geral, demonstre o viés tecnicista, tão criticado na HFG. O autor se inspira em Marx, para afirmar que os fatores citados, constituintes da problemática projetual, são determinados pela forma como se manifestam “as forças produtivas e as relações de produção de uma determinada sociedade” (idem, p.14). Assim, tanto Maldonado (1977a, 1977b), quanto Bonsiepe (1978, 1983, 2011a) defendem a necessidade de resolver problemas de relevância social por meio da atividade projetual, onde a forma deveria surgir como expressão de uma estrutura engendrada a partir da complexa conjunção de fatores técnicos, econômicos, políticos, sociais e culturais.

Neste sentido, Spitz (2002) afirma que a HFG não queria de maneira alguma formar profissionais alienados dos “problemas do mundo”. A “responsabilidade social” do designer frente a suas criações era central na filosofia educacional da Escola. A intenção era formar um “competente generalista”, que fosse capaz de compreender amplamente as “conexões sociais”, abrangendo as áreas técnica, industrial, histórica, sociológica e política, num mesmo nível. Além disso, os projetos eram voltados ao valor de uso, à produção de bens duráveis, com o objetivo de evitar o desperdício e a obsolescência programada. Para Bonsiepe (2011a, p.212), Ulm defendia o “modernismo radical”, postulando “a concordância intencional entre a razão projetual e a razão sociopolítica”. Representava, assim, a

(...) corrente racionalista no desenho industrial, ligada ideologicamente a um programa social que defende o valor de uso do produto em função dos interesses de consumidores e usuários. Esse programa por um desenho industrial socialmente relevante era dirigido contra a absorção fácil e acrítica das leis do mercado (BONSIEPE, 1983, p.61, grifado no original).

Em Ulm passa-se a desenvolver projetos para agências estatais, buscando contribuir para a solução de problemas sociais. Aqui vai tomando forma o caráter reformista da HFG, em sua forma mais ampla, contribuindo com a construção do Estado de Bem-Estar Social alemão. A atribuição desse papel “social” ao Estado vai marcar toda a obra posterior de Bonsiepe (1978, 1983, 2011, entre outras) e sua defesa do “design público” (estatal). Para Bonsiepe (2011), este é o ponto de contato entre a HFG e a “vertente socialista do Bauhaus”. Se Max Bill desenvolve suas posições a partir de uma “Bauhaus formalista”, seu sucessor encontra na proposta racionalista de Hannes

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Meyer, e sua “ideologia do social” (DAL CO, 1972), as bases para o seu projeto pedagógico. Por consequência, a inspiração no utilitarismo de produtivistas soviéticos como Arvatov, também aparece como princípio projetual, na busca por “elevar o nível de vida cotidiano”, por meio de produtos altamente funcionais. No entanto, enfrentou grandes dificuldades em realizar este projeto.

Tanto Maldonado quanto Bonsiepe entendem “socialismo” como propriedade estatal dos meios de produção, onde o design cumpriria esse papel “social”. Ignoram o conceito de capitalismo de Estado. Não por acaso, segundo Bürdek (2006, p.103-105), a proposta ulmeana foi melhor aceita na Alemanha Oriental (República Democrática da Alemanha – RDA), do que na Ocidental, onde estava sediada a Escola. O design na RDA tinha três grandes características: recebia forte incentivo estatal; tratava de temas político-sociais; com intensa discussão teórica. Muito dos produtos projetados na RDA eram comercializados no ocidente.

Chama atenção a fundação da AIF, Escritório Estatal para a Configuração

Industrial, em 1972, uma das maiores instituições estatais de design no mundo. Por

esses motivos, em um seminário realizado na RDA em 1982, o funcionalismo foi reconhecido como “o princípio de configuração, que atendia ao máximo as necessidades de vida da sociedade socialista” (BÜRDEK, 2006, p.105), i.e., capitalismo de Estado. Heinz Hirdina, o mais importante designer da RDA, considerava o design pós-moderno antissocial e reacionário; assim como o styling. A moda e a obsolescência eram para ele o “princípio capitalista da estética dos produtos” (id.ibid.).