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Aspectos político-pedagógicos e institucionais do Vkhutemas/Vkhutein

CAPÍTULO I – DESIGN E LUTA DE CLASSES: TEORIA E

3. DESIGN, VANGUARDAS E REVOLUÇÕES SOCIAIS

3.4 Vkhutemas: para além de uma “Bauhaus soviética”

3.4.4 Aspectos político-pedagógicos e institucionais do Vkhutemas/Vkhutein

Como já se sabe, a Bauhaus é considerada um marco histórico para o design moderno, não só pela sua inovação pedagógica – pois “foi o instrumento essencial da didática construtivista” (RODRIGUES, 1975, p.43) –, mas também pela sua cronologia, tendo sido fundada em 1919, enquanto o Vkhutemas surge em 1920. No entanto, o processo que levou ao surgimento da escola soviética iniciou, na realidade, em 1918, com a criação dos SVOMAS (os Ateliês Artísticos Livres Estatais), ligados ao NARKOMPROS, especificamente à sua seção de artes plásticas, o IZO. Tratou-se de uma experiência ímpar na história do ensino artístico, que tinha como objetivo levar a educação estética ao proletariado rural e urbano, e aos camponeses. Dos SVOMAS surge a OBMOKhU, (Sociedade dos Jovens Artistas), um “grupo de agitação” fundado em 1919 que vai contribuir com a renovação e ampliação dos quadros construtivistas. A partir de Khan-Magomedov, Miguel (2006, p.90) afirma que:

As novidades eram muitas, a começar pela não-intervenção estatal no campo das artes, uma das mais importantes contribuições de Lunatcharsky durante esse período inicial da revolução russa. Para os alunos era livre a entrada e a freqüência, não sendo exigidos diplomas, conhecimentos prévios ou serem mebros do partido bolchevique e a idade mínima exigida era de 16 anos. Não havia também provas para a admissão.

O 1º SVOMAS é especialmente importante para o design soviético, pois foi realizado nas instalações da antiga Escola Stroganov de Arte Industrial, cuja produção no final do século XIX obteve reconhecimento em uma série de exposições internacionais. O interessante, em contraposição ao que ocorreu com a Bauhaus e seus mestres-artesãos, foi a utilização da figura do mestre-operário na direção do ateliê

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profissional. Como afirmou Davi Shteremberg, presidente da IZO na época: “Os Primeiros Ateliês Artísticos Livres Estatais representam uma vantagem importante para o desenvolvimento da indúsria artística do país, que somente atingirá um nível elevado com a participação estrita dos próprios operários” (apud MIGUEL, 2006, p.91-92). Shteremberg finaliza com um convite a todos operários, dos mais variados ramos (têxtil, cerâmica, moldadores, pintores, tipógrafos, etc.), a participarem dos ateliês e adquirirem “(...) todos os conhecimentos indispensáveis acerca da arte e de suas realizações concretas” (id. ibid.).

Pelo fato de os SVOMAS terem sido erigidos sobre uma estrutura anterior à revolução, criou-se um ambiente ainda pouco simpático às novas correntes estéticas modernistas, cujos artistas-professores representantes não se sentiam satisfeitos. Além disso, os ateliês sofreram alguns problemas administrativos e muita pressão para que se realizasse um ensino “mais organizado e formal”. Por estes e outros motivos, o NARKOMPROS se viu na situação de criar uma Instituição mais adequada às necessidades das insurgentes vanguardas. Foi então criado em Moscou, em 1920, o Vkhutemas, com a missão de ser uma “instituição central no desenvolvimento das vanguardas russas do século XX” (MIGUEL, 2006, p.93). Esta deveria ainda incorporar as conquistas dos Ateliês Livres. Segundo Miguel (2006), “o Vkhutemas continha todas as esperanças e contradições da vanguarda: orientação para a experimentação artística, exploração da forma, máxima criação subjetiva e individual aliada a uma busca do coletivo (...)”. Sua estrutura curricular continha a Seção Preparatória Experimental e as Faculdades de Pintura, Escultura, Arquitetura, Artes Gráficas, Trabalho em Metal e em Madeira, Cerâmica e Têxtil.

O curso fundamental, que durava dois anos, tinha uma formação abrangente: sociologia e política, física e química, matemática e geometria, desenho, além do estudo dos materiais. Afirma Rodrigues (1975, p.45) que “o ensino político e sociológico alargava também o campo de visão dos estudantes”. Essa informação causa estranheza diante do estreito horizonte da formação atual em design. Com o avanço da perspectiva produtivista na década de 1920, principalmente através da LEF, “a lógica de Tarabukin (maestria produtivista) e a concepção arvatoriana de fusão da arte na vida, tiveram suas aplicações nos ateliês do Vkhutemas, em suas aulas e tarefas – tanto teóricas quanto práticas (...)” (MIGUEL, 2006, p.72).

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O funcionalismo-produtivista insuflado na Bauhaus por Hannes Meyer, quando diretor em Dessau, logo mostra suas origens. Pois, como evidencia Martins (2003, P.62), o produtivismo soviético e sua noção de “construção”, baseia-se na “consideração da inter-relação fundamental e efetiva entre a estrutura da obra, vale dizer, o tratamento dos seus materiais próprios ou o processo de sua produção, e sua forma e função finais”. Dal Co (1972, p.19) demonstra a influência desse debate sobre o

racionalismo de Meyer: “à imagen poética se sobrepõe a consciencia dos procesos reais

da prática arquitetônica, al sentimento estético e deirante sucede a vontade positiva de construir, de fazer”93

. Para Meyer, o construir é um trabalho coletivo voltado a dar forma ao “novo espírito do mundo”, a desenvolver um “campo estrutural de intervenção na sociedade” (idem, p.23).

A Faculdade de Arquitetura do Vkhutemas também foi importantíssima, oferecendo valiosas contribuições tanto teóricas quanto práticas, inclusive na área do urbanismo. É nesse contexto que se dá o debate entre os “urbanistas” e “desurbanistas”, no âmbito da “construção da cidade socialista”, onde se discutia o problema da separação cidade-campo (CECCARELLI, 1972; KOPP, 1974; RODRIGUES,1975; QUILICI, 1978; TAFURI,1985; DE FEO, 2005; MATIAS, 2010).

Outra contribuição foi o desenvolvimento do conceito de condensadores

sociais, que significava a tentativa de transpor para a linguagem projetual conceitos que

fornecessem um conteúdo socialista, desde as moradias operárias, até ordenamentos territoriais de maior amplitude. Neste sentido, os condensadores sociais seriam a materialização dessas novas orientações arquitetônico-urbanísticas, configurando-se novos objetos do cotidiano, moradias, espaços e territórios que possibilitassem um “envolvimento espacial”, que favorecessem o desenvolvimento de “novos modos de vida”, enfim, de novas relações sociais. Entre os principais nomes ligados à OCA e ao “desurbanismo” estão Leonidov, Pasternak, Ohitovitch, Guinzburg, Barsc, Miliutin, entre outros.

Para compreender as mudanças que iniciariam a partir de 1925, com a ascenção de Stálin, é preciso ter em conta que, durante todo esse processo de constituição das vanguardas soviéticas abstracionistas, artistas ligados ao realismo

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“a la imagen poética se superpone la conciencia de los procesos reales de la práctica arquitectónica,

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nunca deixaram de buscar um espaço no cenário artístico-cultural pós-revolucionário. Miguel (2006) discorre sobre a aversão de Lênin pelo modernismo, mostrando sua predileção pela arte pré-moderna russa, especificamente pela estética realista94. Em 1922 surge AkhRR (Associação de Artistas da Rússia Revolucionária), organizada por artistas em torno do conceito de Realismo Heróico. Desde 1923 o partido bolchevique já exercia pressão contrária às vanguardas construtivistas, enquanto os artistas realistas buscavam aumentar sua influência, ao se aproximar das concepções do partido em relação à arte. Afirma Miguel (2003) que,

Os grupos que estarão na ponta-de-lança do chamado Realismo proletário ou heróico são basicamente formados por artistas que criticam as novas formas ou conteúdos em voga pelas vanguardas, mas que também são políticos que querem impor ou implementar uma nova organização cultural e artística na Rússia.

Assim, em 1926, devido à pressão do NARKOMPROS e do partido, apoiados nos grupos de arte realista, iniciou-se uma reestruturação do Vkhutemas. O Instituto tornou-se mais fechado e centralizado, dando maior ênfase ao design, devido às necessidades da industrialização pesada que já se gestava naquela época; “o caminho da vanguarda estava no fim” (MIGUEL, 2006, p.105). O Vkhutemas foi transformado em

Vkhutein (Instituto Superior Estatal Técnico-Artístico), em 1927:

A busca de um estabelecimento mais comprometido com a formação técnica e de quadros de especialistas, um instituto de design mais sintonizado com as mudanças estruturais do estado, se tornava dia-a-dia mais presente e importante (idem, p.110).

As exigências de preparação para o I Plano Quinquenal fizeram com que o curso básico passasse de dois anos para um único semestre, ficando completamente descaracterizado de sua formação inicial, criativa e reflexiva95. No entanto, os

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Sobre esta questão, afirma Bernardo (2012): “Nos seus anos iniciais a revolução russa fundiu a transformação da política e a transformação da estética, mas Lenin rapidamente pôs cobro às experiências construtivistas e abstraccionistas mais ousadas e obrigou ao exílio ou ao esquecimento a vanguarda estética não só russa mas igualmente estrangeira, que pensara encontrar na revolução política um campo fértil para a revolução estética”.

95 O Vkhutein se antecipou em quase oitenta anos, ao criar as bases para o que se conhece hoje no Brasil

como tecnólogo em design de produto, formação dada em cursos como o do IFSC, onde leciona o autor desta Tese. Pois, o Instituto deveria formar “artistas tecnólogos altamente qualificados para a indústria” (KHAN-MAGOMEDOV apud MIGUEL, 2006, p.112). Ainda Miguel (2006, p.127) afirma que “a concepção por trás dessa formulação passa por separar o artista-construtor do artista-pensador (...)”. No

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professores construtivistas continuaram lecionando, como Alexandr Rodchenko, que comandava as Faculdades de trabalho em Madeira e Metal (DERMETFAK). Na concepção deste importante artista, o papel do design era a transformação da sociedade, não a ampliação do consumo. A ênfase era no valor de uso dos produtos. Para Rodchenko,

O objetivo do design é que o aluno seja, não um executor passivo de sua especialidade, mas um engenheiro contemporâneo do objeto, que está sempre pronto para criar uma proposta nova e clara em resposta às demandas, exigências e tarefas do consumidor Soviético, e que sabe como implementar este objeto na produção de massa (apud Miguel, 2006, p.A-67).

A DERMETFAK montada por Rodchenko tinha uma proposta curricular arrojada até para os dias de hoje. Os conceitos de standardização e padronização ali desenvolvidos adiantaram em muitas décadas as atuais noções de modularidade e os princípios de montagem/desmontagem96. Devido a esse arrojamento, muitos projetos ali desenvolvidos eram de difícil produção, elevando os custos produtivos, contraditoriamente a sua proposta de popularização dos objetos de design. O mesmo problema foi enfrentado pela Bauhaus (DROSTE, 2006; MIGUEL, 2006). A formação no curso de Rodchenko inovava também na dupla formação oferecida, tanto técnica quanto humanística, enriquecida com uma “sólida base artística” (MIGUEL, 2006, p.123). Esse tipo de formação ressurgiu apenas no final da década de 1950, com a HFG Ulm, na Alemanha, sendo defendida mais recentemente por Frascara (2000) com um certo “ar de novidade”.

A dissolução do curso básico em 1929 foi o primeiro grande passo para o fechamento do Instituto. No final daquela década, com a Planificação já em curso e o stalinismo totalmente cristalizado como politica oficial do partido, chegou-se a uma burocratização total do Instituto, um controle ideológico crescente, tanto de alunos como dos professores. Por meio das Resoluções de 1930 e 1931 baixadas pelo Comitê Central (URSS, 1972a; 1972b), as quais decretavam o “êxito do socialismo”, transferia- se ao SOVNARKOM (Conselho dos Comissários do Povo) a tarefa de estabelecer critérios para a construção das “novas cidades socialistas” e promulgavam a

entanto, a diferença para as esperiências pedagógicas atuais é gritante, na medida em que se perdeu o princípio do formação integral e crítica, insuflada pelos anos da revolução.

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“industrialização acelerada” da URSS como a única via para “constituir as bases necessária para uma transformação radical do modo de vida” (MATIAS, 2010). Em 1932, o CC publicou uma nova resolução que suprimiu a arte de vanguarda e institui o “Realismo Socialista” como estética estatal única (MIGUEL, 2006, p.83)97

. Com isso, a experiência Vkhutemas/Vkhutein foi encerrada com um só golpe.

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Apesar da riqueza estética (teórica e prática) da experiência construtivista soviética, é importante observar que nela se encontram todas as contradições e ambiguidades da Revolução Russa: são exemplos disso a dificuldade em superar a divisão entre trabalho de concepção e de execução, principalmente pela aceitação acrítica do taylorismo, a idelogia máxima dessa cisão; a aposta no desenvolvimento das forças produtivas e o excessivo “maquinismo”, enquanto crença no papel emancipador da indústria e, portanto, na “neutralidade” tecnológica; a dificuldade em penetrar nas massas; entre outras questões. Rodrigues (1975, p.44) considera que as vanguardas russas deixaram “(...) praticamente passar em silêncio todo o problema global das relações entre a planificação e a produção artística e arquitetônica”. Além disso, o autor considera que o “empirismo produtivista não chegava para estabelecer uma perspectiva política e social, para resolver a questão entre o objecto – casa – cidade e planificação económica e social” (idem, p.44-45).

De um ponto de vista maoísta, como o de Rodrigues (1975), surge a problemática da relação entre as vanguardas e as massas, inclusive no campo da estética. Para o autor, as tentativas dos construtivistas de romper essa barreira acabaram por ser tardias, uma vez que desde o início da década de 1920 inicia a cristalização de relações sociais de produção capitalistas de novo tipo. Com a manutenção dessas novas relações sociais, artistas, arquitetos e designers ficam objetivamente afastados das massas. A planificação era a própria forma econômica do capitalismo de Estado. Logo, “a contradição formal entre os passadistas e iconoclastas não tinha permitido que se

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Aliás, essa designação é uma contradição em termos, na medida em que, a não ser pelo figurativismo, ali o “realismo” inexistia, pois não era mais do que uma distorção da natureza social da URSS, dando um verniz “comunista” ao capitalismo de Estado completamente realizado. Por este mesmo motivo, o termo “Socialista” era apenas o complemento do engodo.

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pusesse o problema de uma real ruptura de classe, de uma crítica política efectiva no seio das massas e no movimento da luta” (idem, p.54).

Neste ponto, passamos a uma divergência com a perspectiva de Tafuri (1985, p.13), para quem “a estreita ligação entre ideologias burguesas e antecipações intelectuais, envolve-se numa estrutura unitária todo o ciclo da arquitectura moderna”. É preciso entender a unidade do período marcada pela internacionalização da luta proletária, pois “numa fase em que o capitalismo era já imperialista, o socialismo só podia ser internacional” (BERNARDO, 2000, p.90). No entanto, foi um processo com distintas resoluções concretas. Enquanto processos históricos, as revoluções alemã e russa – para citar um exemplo, onde surgiram a Bauhaus e o Vkhutemas –, são situações com desdobramentos diferentes: no primeiro caso, uma revolução derrotada, no segundo, vitoriosa (ao menos no primeiro momento de “tomada do poder”). Os próprios construtivistas soviéticos enfatizavam isso, ao diferenciarem-se do “construtivismo ocidental”.

Tafuri (1985) acaba incorrendo no erro de atribuir apenas à burguesia (e seus intelectuais) o papel de sujeito histórico, onde o proletariado aparece passivamente como objeto das “ideologias arquitetônicas progressistas”. O autor identificou essa “função ideológica da arquitetura moderna” com a “ambiguidade burguesa, situada entre objectivos positivos e a desumana auto-exploração da sua redução objectiva a mercadoria” (1985, p.121). Ao invés de uma materialidade contraditória e suas expressões ideológicas, temos o movimento das idéias estéticas do “intelectual burguês” e sua “missão social” de “organizar” a sociedade como um todo, em direção a um “projeto utópico”98

. A prática e a ideologia são burguesas, onde o elemento explicativo é cultural: o aspecto “moderno” se sobrepõe ao processo histórico.

Assim, o autor deixa escapar de sua análise o antagonismo entre as classes, as relações sociais de produção enquanto expressão prática dessa luta. A ação política proletária daquele conturbado período –, momento de pressão sobre a realidade objetiva e subjetiva burguesa, na tentativa de realizar a “inversão da contradição social” (BERNARDO, 1975) –, fica ofuscada por uma espécie de autoreprodutibilidade do capital, sem contradições, na exposição deste agudo crítico marxista italiano. Portanto,

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Para Tafuri (1985, p.121), a “ideologia do projeto” é “essencial à integração do capitalismo moderno em todas as estruturas e superestruturas da existência humana”.

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Tafuri (1985) deixa de apreender a riqueza histórica dos momentos de ruptura social e política, bem como sua influência sobre a formação ideológica das vanguardas artísticas européias, das primeiras décadas do século XX. O que fizeram os construtivistas soviéticos foi tentar, não sem contradições, apresentar uma resposta estética coerente com sua leitura acerca das tarefas revolucionárias da arte, ou melhor, pensaram “(...) encontrar na revolução política um campo fértil para a revolução estética” (BERNARDO, 2012).

Tafuri (1985) identifica perfeitamente a posição gestora presente na “ideologia do plano”, mas não percebe sua natureza de classe; ao menos não como uma classe diferenciada da burguesia tradicional. Para este, tratava-se do movimento superestrutural de um capitalismo em degenerescência, ao menos no que concerne à sua capacidade de alimentar “utopias sociais”, e a forma como estas influenciaram a estética modernista e os seus diferentes movimentos, os quais apresentavam uma função histórica específica.