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A natureza complexa do ato educativo transporta consigo a natureza igualmente complexa da profissão docente, a qual é simultaneamente uma atividade intelectual, técnica, moral e relacional (Formosinho, 2009). Atualmente esta complexidade assume novas dimensões decorrentes das diferentes necessidades dos alunos, da diversidade de motivações e de interesses face à heterogeneidade que os carateriza. Por sua vez, esta heterogeneidade arrasta consigo a diferenciação curricular e pedagógica tendo em vista o combate ao insucesso escolar.Esta realidade exige dos docentes uma qualificação adequada que lhes permita responder de forma eficaz aos desafios da diferenciação, conseguindo as melhores respostas para as necessidades dos seus alunos.

É atribuído à educação um lugar central não só em termos pedagógicos, mas também enquanto objeto de políticas sociais.Perante a revalorização do papel da educação surge, obrigatoriamente, uma reconceptualização do papel da escola assente numa maior autonomia e no estabelecimento de um compromisso com os atores educativos, proporcionando o desenvolvimento curricular e a inovação. Esta perspetiva vem valorizar a formação e profissionalização dos professores como forma de os ajudar a assumir uma nova postura que valorize o enriquecimento pedagógico, a atualização científica e o desenvolvimento de novas competências pessoais e profissionais.

Na realidade, urge facilitar o desenvolvimento de competências nos professores não só a nível de saberes académicos e saberes especializados, mas também dos saberes decorrentes da experiência (Perrenoud, 2002), conseguindo resolver os problemas com que se defrontam. Efetivamente os docentes enfrentam desafios que os conduzem à necessidade de introduzirem mudanças na sua própria cultura, nos valores e nas suas práticas escolares. Neste contexto de mudança educativa assume particular importância a formação de professores, quer inicial, quer contínua. Contudo, é oportuno referir a importância do conceito de formação ao longo da vida com um cariz de formação permanente e de

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continuidade, indiciando o desenho de um percurso e caminho a percorrer. Questiona-se, assim, a ideia da existência de um período de formação que antecede o início da carreira, seguido do exercício de funções, propriamente ditas, onde o profissional colocará em prática os conhecimentos e competências desenvolvidos ao longo da formação. Estes conhecimentos e competências, embora válidos, rapidamente se revelarão desatualizados face às mudanças que naturalmente se irão operar no próprio sujeito, bem como na permanente evolução dos contextos. Assim, reconhecida a limitada margem “de validade” dos conhecimentos e competências desenvolvidos na formação inicial, perante a impossibilidade de encontrar nela soluções para enfrentar as incertezas do futuro e a singularidade de cada contexto, sublinhamos a seguir as duas dimensões paradigmáticas referidas por Sá-Chaves (2007) que nos trazem novas abordagens sobre a problemática da formação.

Em primeiro lugar a autora vem reconhecer o “princípio de inacabamento” subjacente à produção universal de conhecimento e à reconstrução pessoal de saberes. Sublinha, neste âmbito, a importância da abertura ao novo como via para a atualização, de forma a garantir a reconstrução de saberes e de competências. Em segundo lugar reconhece “o princípio de continuidade” quer nos mecanismos intrínsecos ao sujeito, quer nos processos extrínsecos, remetendo para a ideia de formação ao longo da vida em oposição aos princípios do paradigma da racionalidade técnica.

A autora sublinha com particular ênfase a dialética existente entre os factores intrínsecos e extrínsecos ao sujeito com a finalidade de evidenciar o caráter redutor da formação centrada na transmissão de informação, sem que sejam criadas condições para a sua apropriação refletida, consciente e crítica, pelos formandos.

A abordagem da autora remete-nos para a oportunidade de revermos as diferentes perspetivas teóricas a que correspondem diferentes conceções de professor. Assim, recorremos ao esboço traçado por Estrela (2010), o qual retrata a evolução da profissão docente, referindo-se a vários tipos de professores que pressupõem diferentes ideais profissionais e diferentes atitudes.Começa por

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identificar o professor carismático, o professor técnico e o professor recurso, apoiando-se na opinião de Giles Ferry (1973). A autora identifica também o professor investigador e o prático reflexivo, que terão surgido a partir dos anos 80, e ainda uma imagem mais recente do professor como educador europeu e transnacional.

O professor carismático

Ao considerar o professor carismático, a profissão seria vista como uma missão pressupondo uma vocação que se traduzia num dom que só alguns possuiam. Esta perspetiva está associada ao caráter sacerdotal da profissão e o carisma do professor confere-lhe um lugar de destaque na sociedade.

Recorrendo à expressão de Durkheim mencionado por Estrela (2010, p.11) o professor seria considerado como “o intérprete dos ideais morais do seu tempo”. A disciplina, os conteúdos ensinados e o exemplo dado pelo professor assumiam uma importância fundamental para a formação do caráter. Nesta perspetiva, a afetividade existia de forma controlada respeitando o estatuto e os papéis do professor e do aluno, contudo, suavizava o clima austero da sala de aula e a distância entre eles.

A identidade profissional assentava no reconhecimento dos saberes ensinados e no sentido ético da função que constituíam uma enorme satisfação e alegria interior para os professores, sendo simultanemante para eles, motivo de orgulho.

O professor técnico

Na opinião de Estrela (2010) este tipo de professor surgiu ao longo do século passado na sequência da democratização do ensino, onde se exigia um tipo de professor dotado de competências específicas, especialista do desenvolvimento do aluno e da organização da aprendizagem, tentando desta forma responder ao insucesso escolar dos alunos. Embora se falasse em objetivos de caráter afetivo e se valorizasse a avaliação das atitudes, as aprendizagens escolares eram essencialmente cognitivas. O perfil do profissional como técnico relaciona-se com

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a aplicação rigorosa das normas e técnicas que têm origem no conhecimento científico para atingir determinados fins predefinidos. Esta situação traduz-se na resolução instrumental de problemas, mediante a aplicação de um determinado conhecimento teórico e técnico produzido anteriormente. Nesta perspetiva, é fundamental identificar os meios que melhor se adequam aos fins a atingir, traduzindo-se o ato educativo numa mera aplicação de regras e técnicas resultantes de um conhecimento especializado do professor.

Neste âmbito desenvolveram-se sistemas de formação de professores, articulados com a investigação de forma que fosse possível um melhor conhecimento dos processos de ensino aprendizagem. Daqui resultou uma nova identidade profissional muito ligada à sala de aula e ao saber ensinar, por vezes em detrimento dos conteúdos de ensino.

O professor recurso

O conceito de professor como recurso surgiu sob a influência das teorias de Carl Rogers com forte implementação nos finais dos anos 60. O autor preconizava que a função do professor era promover a autonomia do aluno de forma que fosse o próprio a gerir a sua aprendizagem. Na sua obra “Tornar-se Pessoa” (1970) decorrente da obra com o título original “On Becoming a Person” (1961), define a empatia, a autenticidade e a aceitação incondicional do aluno como requisitos fundamentais do professor. A afetividade ocupa um lugar de destaque, tratando-se, segundo Estrela (2010), de um movimento que coexiste com o professor técnico, realidade existente em algumas escolas europeias. Contudo, a autora refere outras orientações, as quais sem afastarem a autoridade e intervenção do professor, salientam o seu papel enquanto recurso, como é o caso das correntes sob a influência de Vygotsky (1978), de cariz metacognitivo, que estimulam a auto-regulação da aprendizagem pelo aluno, bem como a conquista da sua autonomia.

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No âmbito dos vários tipos de professores, Estrela (2010) inclui ainda o professor investigador e o prático reflexivo. Antes de nos debruçarmos sobre esta conceção, consideramos ser oportuno abordar, em primeiro lugar, o conceito de reflexão e seguidamente o conceito de prática reflexiva e de prático reflexivo, recorrendo para tal ao contributo de vários autores.

Segundo Alarcão, citando Dewey (1993), a reflexão “Implica uma prescrutação activa, voluntária, persistente e rigorosa daquilo em que se julga acreditar ou daquilo que habitualmente se pratica, evidencia os motivos que justificam as nossas acções ou convicções e ilumina as consequências a que elas conduzem” (1996, p.175). O conceito de reflexão transporta consigo, assim, a riqueza da epistemologia da prática, bem como a capacidade do profissional saber agir em situação (Alarcão, 2000).

De acordo com Perrenoud (2002, p.13), “uma prática reflexiva pressupõe uma postura, uma forma de identidade um habitus”, na sua perspetiva a dimensão reflexiva está no centro de todas as competências profissionais, uma vez que ela constitui o seu funcionamento e o seu desenvolvimento. Alarcão, por sua vez, considera que “ser-se reflexivo é ter a capacidade de utilizar o pensamento como atribuidor de sentido” (1996, p.175).

Na opinião de Morgado (2005) grande parte do conhecimento emerge da ação prática, constituindo-se a partir de continuados processos de reflexão num contexto em que existe uma relação dialética entre a teoria e a prática. Desta forma, afasta-se do fracasso das abordagens de formação de caráter tecnicista e instrumental que anulam a reflexão e assentam na homogeneidade e estabilidade das situações (Alarcão, 2006; Sá-Chaves, 2007). Face ao fracasso das formações que defendiam um modelo subordinado ao conhecimento técnico e científico, existe atualmente uma revalorização dos processos cognitivos e uma aposta na formação de profissionais autónomos que consigam tomar decisões e refletir sobre as suas práticas.

Sá-Chaves (2007) considera que os modelos de formação enquadrados numa abordagem reflexiva das práticas educativas reconhecem e valorizam a

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capacidade crítica dos sujeitos em formação, bem como a intervenção criativa e a natureza incerta e instável das situações educativas, razão pela qual se constitui como elemento fundamental para a qualidade das experiências educativas a proporcionar em contexto de formação. A preocupação central de formar profissionais reflexivos é válida tanto para a formação inicial como para a formação contínua (Perrenoud, 2002), ajudando o sujeito em formação, seja aluno ou professor, a construir o seu saber, a exercer a sua capacidade de análise, de metacognição e de metacomunicação.

Perrenoud (2002, p.103) sugere a diversificação das formas de pesquisa, achando que se deve privilegiar o que estiver mais próximo de uma prática reflexiva, valorizando-se cada vez mais os “modos de produção” em detrimento da excessiva valorização dos produtos. Considera também que a formação de professores deve ser orientada para uma prática reflexiva, valorizando os saberes decorrentes da experiência desenvolvida numa situação em que se promove uma forte articulação entre a teoria e a prática e uma autêntica profissionalização. Este autor vem, contudo, afirmar que a prática reflexiva não é uma metodologia de pesquisa, considerando existirem grandes diferenças entre ambas. Segundo a sua opinião, a investigação visa os saberes os quais podem ser integrados em teorias, enquanto a reflexão se limita à tomada de consciência e aos saberes da experiência. A primeira exige “um método e um controle intersubjetivo, enquanto o valor da prática reflexiva depende da qualidade das regulações que ela permite realizar e de sua eficácia na identificação e na resolução de problemas profissionais” (Perrenoud, 2002, p. 205).

Segundo Estrela (2010, p.14), “a metáfora do professor investigador cruza-se com a de prático reflexivo”, expressão que se tornou conhecida após a obra de Donald Shön que vem criticar a formação universitária marcadamente teórica e desligada dos problemas reais que os profissionais enfrentam na prática, imbuída de uma racionalidade eminentemente técnica. Para Shön (1983), o ensino é uma atividade artística, devendo aprender-se com profissionais experimentados que deem o exemplo da reflexão que deve existir antes, durante e após a ação.

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Assim, a reflexão implica uma atitude investigativa que implica, por sua vez, reflexão.

Segundo Day (2001) o conceito de professor como investigador das suas práticas foi sugerido por Lawrence Stenhouse, autor ligado à renovação das conceções curriculares nos finais dos anos setenta e oitenta. Para este autor cada sala de aula era vista como um laboratório e cada professor um membro da sociedade científica.

De acordo com Morgado (2005) Stenhouse foi objeto de críticas dado que se centrou na sala de aula sem que tivesse sido dada a devida atenção ao contexto social. Desta forma, não terá tido em atenção a influência da realidade social no pensamento e ações dos professores, tendo sido, no entanto, reconhecido o interesse emancipatório e formativo da investigação. Day (2001) reconhece que, apesar das críticas apontadas, os professores que desejem melhorar as suas práticas não devem desistir de se empenharem na investigação de forma sistemática, alertando, contudo, que o conhecimento explícito sobre a prática se pode tornar implícito, imerso na própria prática.

Estrela (2010) vem acrescentar que a atividade do “professor como investigador” terá surgido antes de Stenhouse, uma vez que já Paulo Freire considerava que a indagação, a busca e a pesquisa fazem parte da natureza da prática do docente. É igualmente esta autora que refere como exemplo da prática de pesquisa no contexto português, o Movimento da Escola Moderna que caraterizou a ação de muitos professores considerados como mais empenhados e criativos. Contudo, sublinha que, embora predomine atualmente o discurso do prático reflexivo, muito do que se faz nas escolas de formação de professores visa ainda a formação do profissional técnico. No mesmo contexto, dá ainda conta de um trabalho de investigação da sua autoria que vem mostrar a “natureza híbrida” dos saberes profissionais, incluindo saberes científicos, técnicos e experienciais. A autora considera ainda que o excesso de tarefas burocráticas e administrativas existentes nas escolas, as quais sobrecarregam os docentes, limitam as oportunidades ao profissional reflexivo de uma contrução colegial de saberes. Day (2001) reforça esta ideia afirmando que a capacidade de reflexão

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dos docentes é afectada por constrangimentos situacionais, onde se inclui também o excesso de trabalho, as limitações pessoais e o bem-estar emocional.

Dado que investigar implica que os professores assumam uma atitude crítica face à educação, tomando a partir daí as suas opções, Vieira alerta para a necessidade de clarificar sobre de que educação se fala quando nos referimos a investigação educacional. Sublinha que não é possível dissociar a investigação educacional do conceito de educação que a sustenta, pelo que a formação neste âmbito deverá integrar a discussão sobre as diferentes visões de educação dos diferentes intervenientes. Desta forma, recusa uma visão única de investigação, relativamente ao que se investiga e à forma como se investiga, dependendo do posicionamento ideológico daquele que investiga. Contudo, considera que é importante “explorar uma pedagogia de investigação que contribua para que a investigação dos professores desafie e transgrida ordens estabelecidas e práticas dominantes” (2010, p. 210).

O professor como educador europeu e transnacional

Segundo Estrela, atualmente muitos professores estão empenhados em promover uma educação que fortaleça “o sentido e a identidade europeia dos seus alunos” (2010, p. 16). Este facto justifica o envolvimento em vários projetos de intercâmbio de alunos e professores favorecidos pelas oportunidades oferecidas pela inserção de Portugal na Comunidade Europeia. Neste âmbito, são ainda oferecidas condições para a criação de redes internacionais de cooperação e de investigação que abrangem professores de várias nacionalidades, explorando as potencialidades das novas tecnologias. Esta realidade poderá ter contribuído para a construção de uma nova identidade e de um novo profissionalismo dos professores, atualmente mais sensíveis às diferenças e especificidades.

Por sua vez, a escola deve responder aos desafios que se lhe colocam, conseguindo viver e transmitir uma visão de futuro e responder às exigências da sociedade e do mundo do trabalho, bem como às necessidades de aprendizagem dos seus alunos (Day, 2001). Esta realidade exige que os professores se

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adaptem à mudança, conseguindo fazer uso de atitudes de reflexão e de questionamento, de forma a enfrentar as mudanças e a complexidade crescente que carateriza o mundo atual. O professor deverá possuir um espírito de abertura, estando disponível para participar ativamente em projetos de cidadania democrática. Exige-se que os docentes não sejam apenas “intermediários de conhecimento, mas também conselheiros da aprendizagem” (Day, 2001, p.307) em contextos onde a distinção entre o papel do aluno e do professor se torna cada vez mais ténue. Os professores devem assim assumir-se como facilitadores das aprendizagens, recorrendo a processos de ensino e de aprendizagem facilitadores de atitudes de diálogo, de respeito e de aceitação do outro, ajudando a desenvolver, simultaneamente, nos seus alunos uma postura de participação ativa na sociedade.

A realidade da escola do século XXI exige, necessariamente, a opção por um maior número de abordagens de ensino de forma a irem ao encontro da diversidade que carateriza os diferentes contextos educativos, o que justifica um reforço das capacidades dos professores. Estas irão depender de oportunidades de desenvolvimento profissional, decorrentes da vivência de experiências de aprendizagem variadas que encorajem os professores a refletir e a investigar as práticas através da interação com os seus pares. Surge, assim, de acordo com Estrela (2010, p. 17-18), “o movimento de afirmação de autonomia do professor como prático reflexivo e construtor dos seus saberes profissionais”, contudo perante o aumento do tempo de trabalho a que se assiste, essa autonomia, segundo a autora, fica condicionada, bem como o desenvolvimento da identidade profissional.

Em síntese, as transformações observadas a nível social e a emergência de novos valores exigem da parte dos professores o desempenho de papéis cada vez mais diversificados. Desta forma, perspetiva-se uma evolução da função docente, associada a um aperfeiçoamento contínuo a nível profissional, decorrente da reflexão na prática, pela prática e sobre a prática. Contudo, é importante considerar as tensões que existem na profissão docente devido a

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factores de ordem política, social e económica, os quais podem influenciar a identidade dos professores, bem como o seu exercício profissional.