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2 A INADMISSIBILIDADE DAS PROVAS ILÍCITAS NO ORDENAMENTO

2.3 A PROVA ILÍCITA COMO PROVA INADMISSÍVEL NO DIREITO BRASILEIRO

2.4.6 A garantia como regra de exclusão de função epistêmica

É necessário analisar um último fundamento arguido com relação à vedação, a fim de evitarem-se equívocos quanto à qualificação de uma prova tida como ilícita. Trata-se do argumento de que a inadmissibilidade da prova obtida por meios ilícitos no processo é medida necessária em decorrência da baixa confiabilidade de seu conteúdo.

Trata-se de um argumento que, caso assimilado, estaria conferindo um viés epistemológico à vedação constitucional e, segundo Isabel Alexandre, resume-se à ideia de que uma prova só deve ser excluída quando “o modo como ela foi obtida gera dúvidas acerca da sua credibilidade e, nesta medida, ela deve ser rejeitada, sob pena de desacerto da apreciação do juiz.” 129

A perspectiva, portanto, não se lança necessariamente sobre a ocorrência de um comportamento antijurídico em si, mas sim nos possíveis reflexos negativos que sua realização pode ter sobre a confiabilidade da prova, tornando-a um instrumento excessivamente contingente para que sua admissão no processo e submissão ao juízo de valoração do magistrado possa ser aceita.130

129

ALEXANDRE, Isabel. Provas ilícitas em processo civil. Coimbra: Almedina, 1998. p. 140. A obra citada por Isabel Alexandre é: PETERS, Egbert. Die Verwertbarkeit rechtswidrig erlangter Beweise und Beweismittel im Zivilprozess.

130

Nesse sentido parece ser a opinião de Jordi Nieva Fenoll, quem, ao referir-se à inadmissibilidade das provas ilícitas aduz que “no fundo de tudo se espera que, se a tarefa desenvolvida pela polícia for praticada de acordo com o que estabelecem os direitos fundamentais, será muito mais complicado introduzir provas falsas no processo, o qual favorecerá, sem dúvida, o direito de defesa. No processo civil ocorre algo parecido. Sem violar os direitos fundamentais é mais difícil que ingressem no processo provas falsas, o que favorece, ao menos desde este ponto de vista, a averiguação da verdade.” (FENOLL, Jordi Nieva. La valoración de la prueba. Madrid: Marcial Pons, 2010. p. 190.)

Os defensores dessa postura entendem que comportamentos que violam a intimidade, a integridade física, ou a livre manifestação do indivíduo, só teriam como consequência a exclusão da prova por eles formada, porquanto prejudicial a seu conteúdo. Referem, por exemplo, que a tortura e a narcoanálise são inapropriadas para obterem-se declarações das partes e de testemunhas, porque o conteúdo de suas declarações seria prejudicado por tais métodos, ou então, que a gravação de uma conversa não revelada ao interlocutor poderia ser prejudicial ao conteúdo da prova, pois, no momento em que a declaração é registrada, o interlocutor não tem necessariamente o dever de dizer a verdade.

Doutrinador brasileiro representante dessa linha é Hemenergildo de Souza Rego, para quem não é o próprio cometimento de uma violação a direitos que implica a não admissibilidade da prova. Segundo ele, não deveria existir uma regra geral de inadmissibilidade para os casos de ilicitude na obtenção da prova, mas, tão somente, para aqueles casos em que o emprego de um meio ilícito de obtenção implique necessariamente prejuízo à busca da verdade:

É claro que uma confissão, p.ex., obtida mediante tortura, não deve reproduzir efeitos no processo. Mas isso não decorre da reprovabilidade em si, do meio utilizado, e, sim, da falta de confiabilidade da própria prova que resultou da utilização de tal meio. Mas se a prova é, p. ex., um documento de cuja autenticidade não se tem qualquer dúvida, afigura impossível pretender que ao juiz seja vedado colocar tal documento à base de sua convicção, porque para obtê-lo foram utilizados meios criminosos ou inconstitucionais. Ora, contra a prática do crime, ou a infração à constituição, terá o ordenamento jurídico suas sanções próprias. Atuem-se tais sanções, mas sem pretender que, além delas, e a pretexto de desestimular a prática de infrações, deixe o processo de atingir suas finalidades. [...] Estimule-se, por todos os meios, a observância das leis e o respeito aos direitos individuais – mas sem desnecessárias repercussões no campo do processo, e principalmente sem se impedir que ele atinja suas finalidades.131

Chega a causar estranheza o fato de Hemenergildo de Souza Rego mencionar o disposto no artigo 233 do Código de Processo Penal Brasileiro132 para demonstrar seu ponto de vista. Esse dispositivo legal se refere à comunicação epistolar, expressamente consignando a inadmissibilidade das cartas particulares

131

REGO, Hemenergildo de Souza. Natureza das normas sobre prova. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. p. 115.

132 Refere o caput artigo 233 do Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941: “Art. 233. As cartas particulares, interceptadas ou obtidas por meios criminosos, não serão admitidas em juízo.

“interceptadas ou obtidas por meios criminosos”. Entretanto, é de se salientar que a mera interceptação ou subtração de uma carta particular, de forma alguma, afeta o seu conteúdo enquanto prova, sendo nítido o propósito do instituto de preservar a segurança e a expectativa de privacidade quanto ao uso desse meio de comunicação e não de impedir que o juiz tenha diante de si um documento de conteúdo duvidoso.

A afirmação do fundamento de preservação da busca da verdade, sobretudo, demonstra uma preocupação com a qualidade do material probatório destinado à apreciação do magistrado e, mais especificamente, das implicações que isso pode ter na possibilidade da descoberta da verdade.

É até curioso que a busca da verdade, enquanto um dos maiores argumentos contrários à adoção de uma regra de exclusão, também seja arguido como um dos seus possíveis fundamentos.

Entretanto, dois argumentos são essencialmente importantes para fazer cair por terra o ponto de vista defendido por esta corrente.

O primeiro consiste na afirmação de que toda prova possui um grau de credibilidade relativo; e o segundo refere-se ao fato de que é incoerente assimilar uma proibição de prova desse quilate em virtude de uma preocupação com o processo decisório inserido em um sistema da persuasão racional.

Assim, de um lado, não se exclui a possibilidade de que o conteúdo da prova ilícita seja distorcido em maior ou menor grau através do método empregado na sua obtenção. Porém, deve-se sempre considerar que a afetação do conteúdo da prova é uma característica contingente – não necessária – à violação de direitos na obtenção da prova.

Nesse sentido, a possibilidade de provas falsas aportarem no processo é uma constante, independentemente de ter havido, ou não, violação de direitos durante sua obtenção, não havendo razão para estabelecer-se um tratamento discriminatório em relação à prova ilícita tão somente em razão da possível ou provável deturpação de seu conteúdo em razão da conduta empreendida para sua obtenção ou formação.

Sobre isso, refere Isabel Alexandre que “todos os meios de prova oferecem o mesmo perigo”,133 exemplificando que “a própria lei (com algumas limitações

133

embora) considera a prova testemunhal como um meio de prova perfeitamente admissível e, no entanto, a possibilidade de falsos depoimentos é uma evidência”.134

De outra perspectiva, o sistema da persuasão racional também surge como um argumento relevante para não assimilar como fundamento a distorção da eficácia da prova, já que “é ao tribunal que, salvo disposição de lei em contrário, compete analisar se um meio de prova é credível ou não”.135

Ou seja, o grau de correspondência entre a proposição inferível da prova e a realidade empírica é tarefa reservada para a fase de valoração da prova, empreendida pelo magistrado em etapa posterior a de admissibilidade.

Sobre isso, aliás, cabe salientar que precedentes do Supremo Tribunal Federal colocam com precisão que não é a idoneidade da prova a motivação essencial para que seja vedada a admissibilidade e utilização de provas obtidas por meios ilícitos. Exemplo disso é a manifestação do Ministro Gilmar Mendes no voto vencedor do HC 91.613/MG, em trecho da decisão em que analisa argumento do impetrante do Habeas Corpus requerendo a exclusão de gravações de conversas telefônicas, porquanto presentes indícios de “cortes” nas gravações. O Ministro afastou as alegações de ilicitude e inadmissibilidade da prova referindo que “o corte indubitavelmente não se confunde com o meio de prova e sua compatibilidade com o ordenamento jurídico”, já que “eventual vício atinge a idoneidade da prova, enquanto valor probatório, não sua licitude”.

Ou seja, com correção o Supremo Tribunal Federal diferencia o exame de licitude e credibilidade do meio de prova, entregando o segundo ao plano de incidência do livre convencimento do magistrado.136

Em suma, a afirmação de que “o problema das provas ilícitas (...) não concerne a atos ilícitos que se liguem ao problema da veracidade da prova”137

134

ALEXANDRE, Isabel. Provas ilícitas em processo civil. Coimbra: Almedina, 1998. p. 188. 135

ALEXANDRE, Isabel. Provas ilícitas em processo civil. Coimbra: Almedina, 1998. p. 187. 136

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. HC 91613. Relator: Min. Gilmar Mendes. Julgado em: 15 maio 2012. Acórdão Eletrônico DJe-182. Divulg 14 set. 2012. Public 17 set. 2012. Especificamente sobre a questão encerrar-se no juízo de valoração da prova, referiu Gilmar Mendes: “Quanto ao valor probante do resultado da gravação, cabe ao órgão jurisdicional, destinatário da prova, averiguar se houve ou não violação de sua integridade, a fim de, tecendo juízo crítico do material colhido, atestar o que é ou não pertinente ser mantido no processo ou qual seu valor.”

137

GRINOVER, Ada Pellegrini, Liberdades públicas e processo penal: as interceptações telefônicas. 2. ed. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p. 100. No mesmo sentido, afirmam Marinoni e Arenhart que “não é correto imaginar que a proibição da prova ilícita surgiu da necessidade de se garantir a descoberta da verdade no processo [...]” (MARINONI, Luiz Guilherme;

parece ser adequada quando nos referimos ao conteúdo da regra constitucional de exclusão de provas, mantendo-se a opinião de que o instituto tem, antes de qualquer outro objetivo, a missão de conferir proteção a direitos e garantias expressos na Constituição e no ordenamento jurídico em geral.

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