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2 A INADMISSIBILIDADE DAS PROVAS ILÍCITAS NO ORDENAMENTO

2.6 O SUPORTE FÁTICO DA NORMA FRENTE AO ESCOPO DE PROTEGER

2.6.2 A tutela normativa dos bens jurídicos e a atividade probatória

Conforme já salientado, uma vez que a conduta empreendida para obtenção, formação ou utilização da prova seja considerada em conformidade com o direito, nenhuma razão haverá para determinar-se a exclusão da prova.

Para ilustrar o quanto é aqui afirmado, cuide-se, por exemplo, do tratamento que é conferido às provas obtidas através de busca e apreensão domiciliar e interceptações telefônicas, ambas medidas que, acaso tomadas em respeito às disposições contidas no Artigo 5º, incisos XI,143 – que trata da inviolabilidade de domicílio – e do Artigo 5º, inciso XII,144 – que tem por objeto, entre outros direitos, o sigilo das comunicações telefônicas – ambos da Constituição Federal, não terão como resultado uma prova ilícita.

Não se pode negar que a realização de uma diligência de busca e apreensão e de uma interceptação telefônica repercutem, inevitavelmente, em violação ao asilo sagrado e ao sigilo das comunicações, porém, apesar disso, a realização dessas diligências não se reflete em comportamento antijurídico dos agentes estatais encarregados de seu cumprimento, desde que devidamente autorizados pelos órgãos do poder judiciário, em vista do disposto no próprio texto constitucional.

Ou seja, em que pese a privacidade do indivíduo seja invadida, é reconhecida a juridicidade desses atos em situações em que estão autorizados pela autoridade investida de poderes para tanto, por incidência do disposto nos incisos XI e XII do Artigo 5º da Constituição Federal, que contém expressamente essa ressalva.

A juridicidade de tais atos decorre, sem dúvida alguma, da necessidade de ponderar sobre o interesse em protegerem-se esses direitos com a necessidade de colocá-los em segundo plano em determinadas situações.

Assim, é possível conceberem-se direitos invioláveis a que correspondem condutas inadmissíveis em qualquer caso – como a integridade física frente à prática da tortura, por exemplo – e condutas que, apesar de violarem determinados bens jurídicos, ainda que fundamentais, mostram-se aceitáveis, desde que observados os requisitos idôneos para conferir-lhes juridicidade.145

143 BRASIL. Constituição Federal. Art. 5º, inciso XI: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.”

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BRASIL. Constituição Federal. Art. 5º, inciso XII: “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.”

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Sobre isso, em anotação ao Artigo 32 (8) da Constituição da República Portuguesa, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira asseveram que “A interdição é absoluta no caso de ofensa à integridade pessoal; e, relativa, no restante dos casos, devendo ter-se por abusiva a intromissão quando efectuada fora dos casos previstos na lei e sem intervenção judicial [...], quando desnecessária ou desproporcionada ou quando aniquiladora dos próprios direitos” (CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada. Coimbra: Coimbra, 2007. p. 524.)

Não havendo que se falar em conduta antijurídica, a prova obtida por meio da conduta empreendida, nesses casos, é considerada admissível;146 contudo, se o requisito da prévia autorização judicial não for atendido, haverá necessariamente que reconhecer a ilicitude da prova.147

Além dessas hipóteses de prévia autorização do poder judiciário, a juridicidade de uma conduta lesiva de bens jurídicos pode ocorrer em razão de uma “legitimação pelas circunstâncias”, como, por exemplo, nas situações de flagrante

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Para exemplificar, é possível fazer menção à ementa da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do Habeas Corpus n. 87.543, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski: EMENTA: “PENAL. PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. PROVA ILÍCITA. PRINCÍPIO DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA. ART. 5º, LVI, DA CF/88. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA A BUSCA E APREENSÃO. AFIRMAÇÃO EXPRESSAMENTE CONTRADITADA NA DECISÃO ATACADA. ALEGAÇÕES DA DEFESA NÃO EXAMINADAS. INOCORRÊNCIA. ORDEM DENEGADA. I - As alegações formuladas conflitam, expressamente, com o que foi consignado na decisão atacada. II - Diante da autorização judicial para a busca e apreensão, não existe ilegalidade a ser sanada. III - Teses da defesa devidamente rechaçadas na sentença. IV - Ordem denegada.” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. HC 87543. Relator: Min. Ricardo Lewandowski. Julgado em: 13 fev. 2007. DJ 09 mar. 2007. p. 00042. Ement vol-02267-02 p. 00278)

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Nesse sentido, leia-se a primeira parte da ementa do julgamento do Recurso em Habeas Corpus n. 90.376, de relatoria do Ministro Celso de Mello: “E M E N T A: PROVA PENAL - BANIMENTO CONSTITUCIONAL DAS PROVAS ILÍCITAS (CF, ART. 5º, LVI) - ILICITUDE (ORIGINÁRIA E POR DERIVAÇÃO) - INADMISSIBILDADE - BUSCA E APREENSÃO DE MATERIAIS E EQUIPAMENTOS REALIZADA, SEM MANDADO JUDICIAL, EM QUARTO DE HOTEL AINDA OCUPADO - IMPOSSIBLIDADE - QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DESSE ESPAÇO PRIVADO (QUARTO DE HOTEL, DESDE QUE OCUPADO) COMO "CASA", PARA EFEITO DA TUTELA CONSTITUCIONAL DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR - GARANTIA QUE TRADUZ LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL AO PODER DO ESTADO EM TEMA DE PERSECUÇÃO PENAL, MESMO EM SUA FASE PRÉ-PROCESSUAL - CONCEITO DE "CASA" PARA EFEITO DA PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 5º, XI E CP, ART. 150, § 4º, II) - AMPLITUDE DESSA NOÇÃO CONCEITUAL, QUE TAMBÉM COMPREENDE OS APOSENTOS DE HABITAÇÃO COLETIVA (COMO, POR EXEMPLO, OS QUARTOS DE HOTEL, PENSÃO, MOTEL E HOSPEDARIA, DESDE QUE OCUPADOS): NECESSIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL (CF, ART. 5º, XI). IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, DE PROVA OBTIDA COM TRANSGRESSÃO À GARANTIA DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR - PROVA ILÍCITA - INIDONEIDADE JURÍDICA - RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO. BUSCA E APREENSÃO EM APOSENTOS OCUPADOS DE HABITAÇÃO COLETIVA (COMO QUARTOS DE HOTEL) - SUBSUNÇÃO DESSE ESPAÇO PRIVADO, DESDE QUE OCUPADO, AO CONCEITO DE "CASA" - CONSEQÜENTE NECESSIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL, RESSALVADAS AS EXCEÇÕES PREVISTAS NO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL. - Para os fins da proteção jurídica a que se refere o art. 5º, XI, da Constituição da República, o conceito normativo de "casa" revela-se abrangente e, por estender-se a qualquer aposento de habitação coletiva, desde que ocupado (CP, art. 150, § 4º, II), compreende, observada essa específica limitação espacial, os quartos de hotel. Doutrina. Precedentes. - Sem que ocorra qualquer das situações excepcionais taxativamente previstas no texto constitucional (art. 5º, XI), nenhum agente público poderá, contra a vontade de quem de direito ("invito domino"), ingressar, durante o dia, sem mandado judicial, em aposento ocupado de habitação coletiva, sob pena de a prova resultante dessa diligência de busca e apreensão reputar-se inadmissível, porque impregnada de ilicitude originária. Doutrina. Precedentes (STF).” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. RHC 90376, Relato: Min. Celso de Mello. Julgado em: 03 abr. 2007. DJe-018. Divulg 17 maio 2007. Public 18 maio 2007. DJ 18 maio 2007. p. 00113. Ement vol-02276-02. p.00321. RTJ vol-00202-02 p. 00764. RT v. 96, n. 864, 2007, p. 510-525 RCJ v. 21, n. 136, 2007, p. 145-147)

delito, desastre e prestação de socorro que, conforme o artigo 5º, inciso XI, da Carta Constitucional, autorizam a violação do asilo impenetrável.

Sobre a situação de flagrante delito, é necessário esclarecer-se que dispensa a autorização judicial para ingresso no domicílio sem consentimento expresso do morador, mas isso, tão somente, se o flagrante delito for o próprio motivo pelo qual o agente ali ingressa. Caso a conduta de invasão ao domicílio seja iniciada sem espeque em qualquer das hipóteses que relativizam o artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal, mesmo que os moradores e demais ocupantes da residência se encontrem na prática de flagrante delito, não se poderá falar em relativização do direito fundamental, e a prova deverá ser considerada ilícita.148

Por meio dessas colocações, espera-se ter por esclarecido que, em determinadas situações, mesmo que a obtenção, formação ou utilização de um meio de prova repercuta em lesão a um bem jurídico, a conduta deflagrada pode estar dotada de juridicidade, e, em razão disso, a prova não será considerada ilícita.

Ressalte-se, entretanto, que afora essas situações específicas, bem retratadas por normas expressamente positivadas, deve-se ter em consideração que, mesmo na ausência de norma relativizadora da proteção de um dado bem jurídico (como com relação àqueles direitos ditos invioláveis), ainda é possível falar- se em juridicidade da conduta que afronta tais direitos por incidência dos chamados preceitos permissivos.

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Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso em Habeas Corpus n. 8.753, de relatoria do Ministro Vicente Leal, em razão de policiais militares terem adentrado em uma residência, sem um mandado, por suspeitarem que ali estava sendo mantida uma motocicleta furtada. Ao entrar no domicílio, flagraram o morador e outras duas pessoas consumindo substâncias entorpecentes e, através de busca complementar, encontraram ainda uma arma de fogo não registrada. Assim sendo, foi reconhecida a ilicitude da prova: “CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS-CORPUS. PRISÃO EM FLAGRANTE. AÇÃO PENAL. PROVA ILÍCITA, VIOLAÇÃO A DOMICÍLIO. TRANCAMENTO.- A Constituição da República, no capítulo relativo às franquias democráticas, inscreveu o princípio da inviolabilidade do domicílio, sendo, de conseqüência, vedado , aos agentes policiais ingressarem, sem ordem judicial, em residência particular e ali realizar prisão em flagrante e fazer apreensões. - São desprovidas de validade jurídica o auto de prisão em flagrante e a subseqüente ação penal fundados em provas ilícitas, obtidas por meio de operação policial realizada com vulneração ao princípio constitucional da inviolabilidade do domicílio.- Recurso ordinário provido.- Habeas-corpus concedido.” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Sexta Turma. RHC 8.753/SP. Relator: Min. Vicente Leal. Julgado em: 05 out. 1999. DJ 11 dez. 2000. p. 244)

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