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2 A INADMISSIBILIDADE DAS PROVAS ILÍCITAS NO ORDENAMENTO

2.5 A INADMISSIBILIDADE DA PROVA ILÍCITA EM SI MESMA

Neste ponto cumpre fazer um parêntese para sanar uma questão deixada em aberto supra.

Por ocasião da abordagem daquilo que, com base nos ensinamentos de Isabel Alexandre, designou-se por hipóteses típicas de ilicitude, ficou postergada a análise acerca da vedação da chamada prova ilícita em si mesma pelo Artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal, razão por que a análise da (in)admissibilidade dessa prova no ordenamento jurídico brasileiro será objeto de algumas considerações.

Uma vez determinados o fundamento e a finalidade da regra constitucional de exclusão de provas, é possível estabelecer se, no ordenamento jurídico brasileiro, também a prova ilícita em si mesma pode ser considerada verdadeira prova inadmissível e os fundamentos com que essa base pode ser sustentada.

A prova Ilícita em si mesma não é aquela propriamente obtida ou formada através de uma conduta antijurídica, mas sim aquela cujos atos materiais de utilização em juízo podem acarretar em verdadeira violação a direitos fundamentais. O texto do artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal Brasileira, não permite interpretar que estão impossibilitadas as partes e o juiz de fazer uso desse tipo de prova, do que decorrem interpretações como a de Sérgio Gilberto Porto e Daniel Ustárroz, para quem “a redação da Constituição Federal [...] não deixa dúvidas de que o momento precípuo a ser focalizado é o da obtenção.”138

ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 387-388).

138

PORTO, Sérgio Gilberto; USTÁRROZ, Daniel. Lições de direitos fundamentais no processo

civil: o conteúdo processual da Constituição Federal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p.

81. Saliente-se que, Isabel Alexandre, ao versar sobre as situações não abrangidas pelo art. 32º, nº 8, da Constituição da República Portuguesa, critica o rol taxativo de violações de direitos fundamentais que conduzem a inadmissibilidade da prova assim obtida, referindo que o preceito, além de não contemplar todas as possíveis situações de ilicitude na obtenção das provas, também

Uma análise das peculiaridades que cercam essa modalidade de prova ilícita, entretanto, parece recomendável antes que seja excluída a possibilidade de inadmiti-la em atendimento ao mesmo escopo da garantia constitucional.

Percebe-se que é a intimidade o bem jurídico que, por excelência, vai afetado pela utilização dessas provas, sendo que sua violação pode ocorrer no próprio ato de verificação da admissibilidade do meio de prova, em virtude de o próprio magistrado entrar em contato com o conteúdo de foro íntimo, ofensa que pode agravar-se ainda mais com a própria admissão da prova e “divulgação” que é inerente ao próprio exercício do contraditório e à publicidade do processo, permitindo contato com o meio de prova por pessoas alheias à lide.

Reconhece-se que a apreciação de determinado meio de comprovação pelo juiz, bem como sua divulgação, “pode constituir uma inadmissível ofensa ao direito de personalidade do seu autor”, pelo que parece sensato exigir das partes que não apresentem provas desse tipo em juízo e, mais ainda, que o magistrado não as admita a fim de evitar que a ofensa à intimidade, já ocorrida pela simples apreciação do conteúdo do documento, venha a se agravar.

Nessa esteira, parece útil e necessário que, caso requerida a admissão de uma prova ilícita em si mesma, seja ela inadmitida ou excluída do processo.

Conforme o mecanismo protetivo do efeito profilático, a imposição da medida implicaria tanto coibir as partes que dispõem dessas provas de requerer sua admissão, quanto à própria conduta do juiz excessivamente interessado na busca da verdade, em admiti-las e, assim, divulgá-las.

Tem-se com clareza, portanto, que a aplicação da regra de exclusão nesses casos constitui medida benéfica à proteção dos direitos fundamentais, razão por que deveria ser adotada pelo constituinte também em relação à prova ilícita em si mesma.

E se o recurso aos elementos textuais do Artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal, não permite interpretação no sentido de que a prova ilícita em si mesma também é inadmissível no processo, talvez seja o caso de pensar na incidência da medida por outro enfoque, partindo da compatibilização do escopo de proteção de bens jurídicos como o atual estágio dos desenvolvimentos teóricos acerca da eficácia dos direitos fundamentais.

não prescreve a inadmissibilidade das chamadas provas ilícitas em si mesmas. (ALEXANDRE, Isabel. Provas ilícitas em processo civil. Coimbra: Almedina, 1998. p. 272-274).

Para tanto, é necessário partir da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, ou, mais precisamente, do chamado dever de proteção, que caracteriza como incumbência comum a todos os órgãos do Estado, seja do poder executivo, do legislativo, ou do judiciário, a promoção de uma proteção eficiente dos direitos fundamentais.139

Conforme assevera Ingo Wolfgang Sarlet, esses “deveres de proteção podem ser e são violados quando o titular do dever nada faz para proteger determinado direito fundamental ou, ao fazer algo, falha por atuar de modo insuficiente”.140

Assim, “o Estado, antes de tudo, tem o dever de proteger os direitos fundamentais mediante normas de direito” 141

, ou seja, tem o dever de promover uma tutela normativa dos direitos através da atividade legiferante, entretanto, “no caso em que o legislador se omite diante do seu dever de proteção normativa, o juiz deve supri-la, admitindo a incidência direta do direito fundamental sobre o caso conflitivo”142

.

Para melhor explicar aquilo que é aqui afirmado, note-se que essa ideia pode ser reconduzida, por exemplo, para os casos alemão e italiano. Uma vez considerando a inexistência de uma vedação expressa da utilização de gravadores ou da leitura de diários, tal poderia ser interpretado como uma omissão, ou um déficit de proteção normativa aos direitos fundamentais por parte do legislador, mas que poderia ser suprido através da atuação do poder judiciário, inadmitindo-se a prova tida como inconstitucional em exercício de seu dever de proteção.

139 Conforme leciona Ingo Wolfgang Sarlet, “função que tem sido reconduzida à dimensão objetiva está vinculada ao reconhecimento de que os direitos fundamentais implicam deveres de proteção do Estado, impondo aos órgãos estatais a obrigação permanente de, inclusive preventivamente, zelar pela proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos, não somente contra os poderes públicos, mas também contra agressões por parte de particulares e até mesmo por parte de outros Estados. [...] “Tais deveres de proteção, parte dos quais expressamente previstos nas constituições, podem ser também reconduzidos ao princípio do Estado de Direito, na medida em que o Estado é o detentor do monopólio, tanto da aplicação da força, quanto no âmbito da solução de litígios entre os particulares. Por força dos deveres de proteção, aos órgãos estatais incumbe assegurar níveis eficientes de proteção para os diversos bens fundamentais, o que implica [...] a proibição de uma proteção manifestamente insuficiente” (SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 297)

140

SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito

constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 214.

141

MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 6. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 245.

142

Cfr. MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 6. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

Encarar a garantia a partir do dever de proteção parece mais correto do que assimilar uma correspondência automática entre comportamentos incompatíveis com direitos constitucionalmente assegurados e a consequência processual de inadmissibilidade de prova, como fez o Tribunal Constitucional Alemão a fim de superar a discussão entre os defensores da autonomia do processo e os teóricos da unidade do ordenamento jurídico.

No caso da prova ilícita em si mesma, o dever de proteção dos órgãos do poder judiciário fornece dois bons argumentos para que seja inadmitida essa modalidade de prova ilícita.

Quanto ao primeiro argumento, basta salientar que a inexistência de uma vedação expressa nesse sentido revela um ponto em que, tanto o legislador constituinte quanto o ordinário, deixaram de atender ao seu dever de proteção eficiente dos direitos fundamentais, razão por que a criação pretoriana da vedação à prova ilícita em si mesma mostra-se necessária para preencher esse espaço vazio de proteção no campo da atividade probatória.

Por outro aspecto, um segundo argumento dota de força ainda maior a viabilidade de justificar-se a inadmissibilidade dessas provas.

Sendo a divulgação do conteúdo dessas provas um fator determinante para agravarem-se os danos causados à intimidade, quando o magistrado aprecia o requerimento de prova, ainda parece ser possível que ele possa, no caso concreto, garantir uma maior eficácia a esses direitos, impedindo que a violação já caracterizada se agrave ainda mais.

Tanto um quanto outro desses argumentos sugere que seria um tanto quanto incoerente impor a medida de exclusão para as situações em que a prova fosse obtida mediante violação de direitos fundamentais e, ao mesmo tempo, permitir a utilização de provas que, por si só, implicam violação de direitos constitucionalmente previstos aos cidadãos.

Essas as razões pelas quais se entende que, embora o texto constitucional não permita compreender que a vedação das provas ilícitas em si mesmas trata-se de conteúdo do Artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal, não se descarta a possibilidade de que a inadmissibilidade e a exclusão dessas provas devam ocorrer também no direito brasileiro por interpretação extensiva.

Do exposto, parece ser correto referir que são inadmissíveis as provas ilícitas no ordenamento jurídico brasileiro, quaisquer que sejam as hipóteses típicas de ilicitude que as qualificam.

2.6 O SUPORTE FÁTICO DA NORMA FRENTE AO ESCOPO DE PROTEGER

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