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4 ELEMENTOS PARA DENSIFICAÇÃO DOGMÁTICA DA REGRA

4.3 A APLICABILIDADE DA GARANTIA NO PROCESSO PENAL E NO PROCESSO

Outro parâmetro estranho ao suporte fático da regra constitucional de exclusão de provas e que poderia conduzir à relativização de sua aplicação pode ser encontrado na tendência da Suprema Corte – diante de um contexto determinado pelo próprio âmbito de proteção da exclusionary rule – em procurar por argumentos, casuisticamente, para não aplicar a exclusionary rule no âmbito do processo civil, restringindo sua aplicação ao âmbito do processo penal.

Essa tendência de restringir-se a aplicação do instituto ao âmbito do processo penal, entretanto, não é exclusiva do direito norte-americano, podendo, em linha de princípio, ser identificada através da leitura do disposto no Artigo 32 (8) da Constituição da República Portuguesa,380 que assim como a regra do Artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal, caracteriza-se como uma regra de inadmissibilidade de provas expressamente inserida no rol de garantias fundamentais.

As diferenças essenciais entre uma e outra regra, todavia, são que, no direito português, a disposição constitucional vai colocada junto das “garantias de processo criminal”, tendo sido, prima facie, concebida para ser aplicada tão somente ao processo penal e em razão de violações de direitos fundamentais taxativamente especificados.

380 Constituição da República Portuguesa, Artigo 32.º: “Garantias de processo criminal [...] 8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.”

Ou seja, a princípio, o texto legal da Constituição Portuguesa revela convergência com a tendência do direito americano de restringir-se a aplicação do instituto ao âmbito do processo penal, ao passo que o Artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal, não faz qualquer tipo de restrição ao tipo de processo em que pode ser aplicado.

Os fundamentos para a adoção de um entendimento restritivo como esse, entretanto, não estão imunes a críticas.

Na esteira do quanto visto diante da análise dos caracteres essenciais de aplicação da exclusionary rule pela U.S. Supreme Court, sua delimitação ao âmbito dos processos criminais não se sustenta por um único fundamento, mas por argumentos diversos, fornecidos caso a caso e que se escoram em análises de custo benefício que adotam diferentes critérios como premissa.

Contudo, mesmo no que tange aos argumentos proferidos pela U.S. Supreme Court, especificamente nos casos Janis e INS versus Lopez-Mendoza, pode-se dizer que, ao mesmo tempo em que são estranhos à finalidade da regra de exclusão, também não se revelam em razões suficientes para relativizar a capacidade protetiva conferida pela regra.

No caso Janis, por exemplo, considerou-se que a exclusão da prova no procedimento civil subsequente à investigação criminal repercutiria em uma medida extra e desnecessária, porquanto a conduta praticada já teria sido suficientemente repreendida por conta da exclusão da prova no processo criminal, não sendo necessário realizar uma nova repreensão no processo civil.

Ou seja, ignorou-se o fato de que, para manter a eficiência do deterrent effect, é necessário deixar-se claro que nenhum proveito poderá dela ser tirado, ao mesmo tempo que a analise de custo benefício pautou-se sobre uma análise que trata a medida de exclusão como uma reles punição, quando seu real fundamento é a proteção por ela proporcionada.

Da mesma forma, em INS v. Lopez-Mendoza, a U.S. Supreme Court pautou- se por uma série de critérios que minaram a eficácia da regra no que tange aos procedimentos de deportação, visando essencialmente a não comprometer a eficiência do trabalho de seus fiscais de fronteira e ignorando o fato de que deixaram uma verdadeira janela aberta para violações à Quarta Emenda.

No mais, ainda que se considerasse que os argumentos expendidos pela Suprema Corte são suficientes para dar ensejo à superabilidade da regra no caso

concreto, de forma alguma os motivos adotados parecem dar lugar à conclusão de que a medida é aplicável no âmbito do processo penal, mas não no processo civil.

E se esse é o quadro no direito norte-americano, cabe salientar que, mesmo no direito lusitano, há quem defenda a aplicabilidade, por analogia, do Artigo 32 (8) da Constituição Portuguesa aos processos de natureza cível, como Isabel Alexandre, que acaba por fundamentar sua compreensão acerca do tema tendo por base o escopo do instituto – por ela compreendido como a ampliação da eficácia dos direitos fundamentais – concluindo que a regra de exclusão também traz benefícios e é plenamente compatível com o direito processo civil.381

E, de fato, conforme aduz a autora, um bom argumento para que o instituto não tenha sua aplicação restrita à natureza da questão discutida em juízo é que não é possível estabelecer-se como premissa que as ofensas a bens jurídicos são necessariamente mais graves em razão de as questões debatidas dizerem respeito ao processo penal e não ao processo civil.382

Note-se que, nessa linha de argumentação (da gravidade da violação) há um ponto de entrelaçamento com as discussões acerca dos destinatários do efeito profilático. Isso porque é usual associar-se às ideias de que, diante de um processo de natureza penal a prova será obtida, formada ou utilizada por um agente estatal, ao mesmo tempo em que, no processo civil, espera-se que a prova seja obtida, formada ou utilizada por um particular.

Entretanto, nem uma nem outra dessas associações revestem-se de caráter necessário, sendo comum (embora não seja frequente) que o Estado tenha parte na atividade probatória desenvolvida na esfera cível e que o particular tenha participação na atividade probatória desenvolvida na esfera criminal.

Nesses termos, é relevante lembrar que a proteção proporcionada pela regra constitucional de exclusão de provas incide sobre os mesmos bens jurídicos em um ou outro ramo do direito, não sendo sua ofensa mais grave tão somente porque adotada por uma particular ou por um agente estatal.

381

Cfr. ALEXANDRE, Isabel. Provas ilícitas em processo civil. Coimbra: Almedina, 1998. p. 239. 382

Cfr. ALEXANDRE, Isabel. Provas ilícitas em processo civil. Coimbra: Almedina, 1998. p. 239. Aduz Isabel Alexandre que “se se entender que o art. 32º, n. 8 CRP, ao prever a nulidade de certas provas, visa conferir maior eficácia aos direitos fundamentais violados quando da sua obtenção, não existem motivos para restringir o preceito ao âmbito do processo penal, já que a lesão desses direitos não é menor pela circunstância de as provas se destinarem ao processo civil.”

Assim sendo, novamente a gravidade da violação mostra-se um critério inapto para fundamentar limitações à aplicação do Artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal.

De outro lado, no entanto, poder-se-ia afirmar – adaptando-se os argumentos lançados pelo J. Frankfurter para fundamentar a decisão proferida no caso Wolf versus Colorado383– que somente no âmbito do processo penal identifica-se a frequente adoção de condutas que repercutem em graves violações de direitos, sendo isso uma evidência de que é exclusivamente com relação à atividade desenvolvida com vistas à repressão da criminalidade que a tutela normativa do direito material deixa a desejar como forma de coibir a adoção de determinadas condutas, sendo necessária uma proteção complementar, conferida pela inadmissibilidade da prova.

O argumento, aqui, investe-se de um caráter generalizante, passível de vincular a aplicação do instituto somente ao âmbito do processo penal, ou então ao âmbito das condutas praticadas pelos agentes estatais responsáveis pela investigação e repressão criminal – o que, por via oblíqua, acabaria por relativizar, novamente, a questão dos destinatários, relegando-se a segundo plano os próprios fundamentos arguidos pela U.S. Supreme Court nos casos McDowell e Jacobsen, escorados na state action doctrine e dando lugar àquilo que foi consagrado pelo precedente Arizona versus Evans.

Contudo, parece que o caráter endêmico das violações de direitos com vistas a “fazer” prova não deve ser encarado como um verdadeiro requisito para aferir a real necessidade de promover a proteção de direitos através da regra de exclusão, seja no âmbito do processo civil e do processo penal, seja diante da conduta praticada pela polícia, ou pela generalidade dos indivíduos, desempenhando, ou não, atividades de agentes do Estado.

Os casos alemão, italiano e o próprio brasileiro demonstram que essa característica de desapego aos valores humanos pelos órgãos estatais encarregados da persecução criminal – por vezes herança de regimes antidemocráticos – tem serventia para chamar a atenção da opinião pública e dos

383

Lembre-se que, por ocasião do caso Wolf, J. Frankfurter pugnou por deixar a critério dos Estados incorporar, ou não, a exclusionary rule, fornecendo o seguinte argumento: “Não podemos deixar de lado a experiência dos Estados que consideram que a incidência dessas condutas pela polícia muito franzina para requerer um remédio preventivo que não pela via das medidas disciplinares, mas pela derrogação das regras de prova.” Cfr. Wolf v. Colorado, 338 U.S. 25 (1949), p. 31–32.

aplicadores do direito, de forma a atestar, sem sombra de dúvidas, a existência de uma zona deficiente de proteção no campo da atividade probatória, para a qual deve ser criada uma solução específica e adequada, a exclusão de provas.384

Mas, por mais que a violação de direitos para fins de obtenção de provas não seja tão frequente nos processos de natureza cível quanto é na atividade empreendida pelos órgãos de repressão criminal (no processo penal), isso não significa que a aplicação da regra constitucional de exclusão de provas não seja útil e necessária à seara cível.

A frequência das violações não deve ser encarada como critério determinante para revelação do déficit de proteção aos bens jurídicos protegidos pelas normas de direito material, mas sim a vulnerabilidade dos direitos diante das atividades corriqueiramente empreendidas com o fito de obterem-se meios de comprovação.

Sobre isso, cabe referir que, mesmo no que tange às discussões de natureza cível, existe uma inclinação dos litigantes e de terceiros para o emprego de condutas antijurídicas, inclusive lesivas de direitos fundamentais, com o intuito de obter informações e meios de comprovação. É nesse sentido que se toma manifestações como a de José Carlos Barbosa Moreira, que refere que “facilmente se entende que o afã de tornar convincente para o órgão judicial esta ou aquela versão dos fatos possa induzir a parte a exceder as fronteiras do razoável, em detrimento de interesses também juridicamente relevantes.”385

Seguindo essa linha de raciocínio, qual se julga mais apropriada do que aquela proposta pelo J. Frankfurter quando do caso Wolf, pode-se afirmar que a

384

A afirmação de que a assimilação da regra de exclusão se deu em decorrência de fatores similares àqueles que levaram o Bundesgerichtshof e a Corte Costituzionale a aplicar a medida de exclusão justifica-se através da transcrição de um breve trecho do voto do Ministro Sepúlveda Pertence por ocasião dos julgamentos do HC 69.912-0-RS pelo Supremo Tribunal federal. Naquela oportunidade, o ministro associa o ânimo de combater os abusos das autoridades policiais no campo probatório com as violações de direitos dos membros das camadas sociais elitizadas por parte dos organismos de vigilância dos regimes antidemocráticos: “Não é que, nestas bandas, a persecução penal, algum dia, tivesse sido imune à utilização das provas ilícitas. Pelo contrário. A tortura, desde tempos imemoriais, continua sendo a prática rotineira da investigação policial da criminalidade das classes marginalizadas, mas a evidencia da sua realidade geralmente só choca as elites, quando, nos tempos de ditadura, de certo modo se democratiza e violenta os inimigos do regime, sem discriminação de classe. De sua vez, é notório que a escuta telefônica foi amplamente utilizada, sob o regime autoritário, pelos organismos de informação e repressão política”. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. HC 69.912-0-RS. Segundo julgamento. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. Julgado em: 16 dez. 1993. DJ 25 mar. 1994. p. 06012. Ement Vol-01738-01. p. 00112. RTJ vol-00155-02. p. 00508).

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BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A constituição e as provas ilicitamente obtidas. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de direito processual: sexta série. Rio de Janeiro: Saraiva, 1997. p. 108-109.

incorporação do instituto ao processo civil é não só compatível, mas sim exigível para que se promova, tanto no processo civil quanto no processo penal, uma maior proteção aos bens jurídicos protegidos pelo ordenamento, principalmente dos direitos fundamentais.

Além disso, percebe-se que nem sequer uma análise de custo-benefício – conforme o método preconizado pela U.S. Supreme Court em muitos de seus precedentes – parece adequada para determinar zonas de incidência do instituto com base em uma distinção entre o processo civil e o processo penal.

Veja-se que, por um lado, a aplicação da garantia no processo civil agrega um amplo valor educativo no sentido de promover-se o respeito aos direitos fundamentais e ao ordenamento jurídico em geral, além de, é claro, ser determinante para prevenir a ocorrência de violação aos bens jurídicos a eles correspondentes – tudo conforme se espera do efeito profilático; ao mesmo tempo e de outro lado, a medida de exclusão da prova tem aplicação pontual, em casos específicos, não representando um custo para a garantia do direito à prova e à busca da verdade em toda a oportunidade em que provocado o poder judiciário para por fim a um litígio.

Ou seja, tem-se um benefício generalizante – a proteção -, enquanto o custo correspondente – a exclusão da prova – refere-se somente a casos em que a obtenção, formação ou utilização da prova corresponda a uma conduta antijurídica.

Além disso, pode-se afirmar com convicção que nem mesmo esse “custo” é algo certo, já que mesmo nos casos em que a regra de exclusão é aplicada, a comprovação do fato alegado pode ser realizada por outros meios de prova, em nada prejudicando a justiça da decisão do ponto de vista do acertamento fático.

Sendo ainda mais conciso, pode-se dizer que o “custo” de aplicação do instituto no processo civil é irrisório diante do benefício trazido pela aplicação do instituto em matéria de emprestar eficácia aos direitos fundamentais e a exigir comportamentos dotados de juridicidade dos litigantes e de todos aqueles que empenhem esforços para obtenção, formação ou utilização de meios para comprovar alegações em juízo.

Dessa perspectiva, a relação de custo-benefício, relativamente considerada, é a mesma para o processo civil e para o processo penal, ainda que nesta última área, em termos absolutos, se possa dizer que suas vantagens aparecem com maior frequência.

De tudo o que foi dito, conclui-se que, em que pese o texto do Artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal, não traga qualquer restrição quanto à aplicação do instituto em relação ao processo penal, isso não significa que não tenha sido uma opção consciente do constituinte, que com relação a este aspecto da garantia ponderou adequadamente as razões favoráveis e contrárias à sua aplicação no âmbito do processo civil.386

4.4 A LEGITIMIDADE PARA EXIGIR A APLICAÇÃO DA GARANTIA E

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