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Figura 9 Vaticínio.

O OLHAR DA CRIANÇA

No ensaio Guerras e cinema: um encontro no tempo presente, divulgado no site da Universidade Federal Fluminense57, o historiador Francisco Caldas Teixeira da Silva menciona a temática do menino e a guerra presente em Vá e veja (Ex-União Soviética, 1984) como a metáfora representativa do choque da guerra, abrindo um pequeno comentário sobre o emprego

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Sobre o assunto ver ONOFRE, José. Pequeninos centros de luz. Carta Capital, São Paulo, 10 dez. 2008, Calçada da memória, p. 101.

de personagens infantis para tratar do conflito bélico no cinema, que, segundo o autor, representa uma tendência que encontra sua expressão maior nas obras de Louis Malle, Lacombe Lucien (França, 1974) e Adeus, Meninos (França, 1987).

Da internet para as páginas do jornal, a idéia de que não é incomum associar personagens infantis à temática bélica continua presente. Em entrevista à Folha Ilustrada do jornal Folha de S.

Paulo, o poeta, tradutor e jornalista Nelson Ascher lembra títulos literários adaptados para o

cinema nos quais crianças protagonistas representam a busca de uma intermediação imparcial dos acontecimentos (bélicos), sugerindo que essa “escola” (termo usado pelo entrevistado) começou com o livro O diário de Anne Frank, publicado em 1947, gerando diversas adaptações e desdobramentos no cinema. Segundo Ascher, a idéia central é que alguém neutro e inocente, no caso a criança, pode revelar uma verdade que não está no noticiário.58

Como já visto anteriormente, o cinema de guerra reúne os elementos essenciais para constituir um gênero e, como sugerem os artigos acima citados, no interior dele, com relativa freqüência, aparecem exemplares em que personagens infantis são relacionadas ao tema. Ao pensar em criança e guerra, certamente não será necessário um grande esforço de memória do leitor para lembrar um elenco de títulos capaz de demonstrar que não é pequena a produção cinematográfica de todos os tempos e de muitos lugares que gerou obras nas quais uma e outra aparecem como elementos articulados da narrativa.

Nos contornos aqui perseguidos, a idéia é trabalhar com essa intersecção, buscando razões que ajudem a entender, ainda que parcialmente e sempre observando o cinema como narrativa, como e porque a criança é constituída como personagem envolvida com a guerra.

A caminhada para enfrentar esse desafio começa na literatura, a partir das propostas de um historiador.

Ao comentar técnicas e recursos literários capazes de provocar, ou, melhor dizendo, estimular o estranhamento do leitor, no envolvente e saboroso ensaio sobre a distância do olhar, Carlo Ginzburg (2001, p. 16) lembra a tese do crítico russo Viktor Chklovski, “segundo a qual a arte seria um instrumento para reavivar nossas percepções, que o hábito torna inertes”. De acordo com o texto, um modo de “reavivar as percepções” é provocando o estranhamento (do leitor) em relação àquilo para o que o autor quer dirigir a atenção (percepção) do leitor.

58 COUTINHO, João Pereira. Moda Banaliza o horror da guerra. Folha de S. Paulo, São Paulo, 19 mai. 2007,

Conta Ginzburg que um recurso para causar estranhamento é constituir narrativas a partir de diferentes (e em parte inusitados) olhares, relembrando, via Chklovisk, o direito de propriedade visto (e interpretado) por um cavalo, no conto “Kholstomer” de Tolstoi 59.

Grosso modo, a idéia do estranhamento é observar a partir de um ângulo ou viés diferente, capaz de levar a outro modo de entender o objeto de visada, para o qual “o hábito nos tornara inertes”. Por sua vez, o estranhamento pode disparar reflexões sobre o objeto que deixa de ser comum e compreensível e passa a ser estranho e, portanto, provocador da curiosidade.

Um caminho para provocar o estranhamento é recorrer a olhares que Ginzburg (2001) chama de ingênuos, menos no sentido de ausência de sabedoria e mais no campo do abandono da racionalidade. Ao comentar o modo de ver da arte naïf, o historiador italiano escreve sobre o âmago da noção de estranhamento: “Compreender menos, ser ingênuos, espantar-se, são reações que podem nos levar a enxergar mais, a aprender algo mais profundo, mais próximo da natureza.” (GINZBURG, 2001, p. 29)

Na mesma linha de pensamento, Marilena Chauí (1994, p. 314), ao tratar do universo das artes, em Convite à filosofia, inicia o texto reproduzindo uma poesia de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, na qual o mestre lusitano sugere que a compreensão do mundo nasce da capacidade de sempre ver o mesmo, com outro olhar, que o poeta chama de pasmo essencial, comportamento que uma criança teria ao nascer e “reparasse que nascera deveras...”. Dessa forma, completa Caeiro, “Sinto-me nascido a cada momento/Para a eterna novidade do mundo”. Chauí (1994) convida o leitor a reparar na aparente contradição da “eterna novidade” sugerindo que aí reside o modo de ver do artista e da arte. Em outras palavras, trata-se da capacidade de provocar e assumir o estranhamento como possibilidade de (re)ver o mundo.

De modo muito diferente da literatura, no que respeita à forma, por conta das especificidades de linguagem, mas bastante similar no campo das intenções (provocar o estranhamento), o cinema também pode recorrer a “olhares ingênuos” para provocar o espanto que leva o espectador a enxergar mais e aprender com mais profundidade. Na comédia Os deuses

devem estar loucos (Botswana, 1980), o roteirista e também diretor do filme, Jaime Uys, recorre

à figura do boximane (bosquímane) culturalmente afastado e geograficamente distante da sociedade ocidental moderna para construir uma narrativa crítica dessa sociedade. Desconhecedor dos hábitos e valores ocidentais, Xi, o boximane, reúne, por delegação do roteirista e diretor, Uys,

postura e argumentos para criticar um sistema social perfeitamente adequado e conveniente àqueles aí aculturados, mas simplesmente contraditório e, em muitos casos, perverso ou mesmo irracional ao olhar ingênuo do pigmeu kalahariano.

A tese aqui exposta incorpora a idéia de que a criança representa o olhar ingênuo ao qual determinados filmes recorrem para reconstituir, observar e eventualmente pensar criticamente a guerra.

No que se refere à cinematografia ocidental de perfil hollywoodiano, o emprego do olhar infantil para observar a guerra abriga possibilidades narrativas interessantes. O método aqui adotado para analisar/interpretar filmes a partir de um modo de ver diferente destaca três elementos aos quais os realizadores (do filme) podem recorrer para depositar na criança o olhar ingênuo sugerido por Ginzburg, potencialmente capacitado a provocar o estranhamento do espectador que, no caso, tem a guerra como objeto de visada. Os elementos constitutivos desse olhar infantil englobam a posição distante do observador (infantil) em relação ao conflito, a sua condição de vítima e o benefício da inocência, constitutivos de um modo de ver especial, que concede à criança a capacidade de levar o espectador ao estranhamento, a partir do qual podem ser construídas estruturas narrativas cinematográficas com elevado potencial de reflexão sobre a guerra. Ora, apresentar a criança como personagem incapaz de integrar conscientemente o “mundo da guerra” reduz sua participação (nesse mundo da guerra) à condição de agente passivo, aí residindo a potencialidade da personagem ver o conflito com outros olhos, induzindo o espectador ao estranhamento.

O afastamento da personagem infantil pode ser construído a partir de artifícios variados, como a separação pela distância geográfica, quando a narrativa (o roteiro mais precisamente) estabelece alguma forma de influência da guerra sobre a criança, mesmo que ela esteja espacialmente distante dos locais em que acontecem as batalhas, combates e ações bélicas, elementos que formam aquilo que os estudos estratégicos chamam de “teatro de operações”60

. Mas existe também a possibilidade da criança estar fisicamente presente no teatro de operações e,

60 O termo “teatro de operações”, no campo dos estudos estratégicos, assim como no jargão militar, compreende um

determinado cenário de conflito, cuja dimensão espacial e temporal é relativa ao que os estrategistas querem observar. Por exemplo, durante a Segunda Guerra Mundial, toda a região do oceano Atlântico era observada como o teatro de operações das frotas militares e mercantes envolvidas no conflito. Todavia, partes dessa mesma região – o Atlântico Norte, por exemplo – foram classificadas como teatros de operações específicos, por ocasião de determinadas batalhas. O que importa destacar, portanto, é o caráter relativo e o conceito pertinentes ao termo, no âmbito do pensamento estratégico. Sobre a noção de teatro de operações Cf. PROENÇA, 1999. Confronte também o filme Afundem o Bismark (Estados Unidos, 1960).

ainda assim, haver o distanciamento, dado que a personagem infantil não participa ativamente de combates, batalhas e ações, mas sofre passivamente suas conseqüências, estando ausente enquanto agente ativo. Cabe notar que essa é a situação que caracteriza o filme analisado neste trabalho. Por fim, mesmo havendo participação ativa da personagem infantil nas ações bélicas (o que significa, em termos extremos, combater), pode ocorrer o distanciamento, configurado pela condição de agente distanciado (embora não distante), uma vez que o combatente infantil, frente aos valores da sociedade ocidental, é sempre visto como postura circunstancial e, no extremo, não voluntária nem consciente, de modo que sua condição de combatente é resultado de coerção, persuasão ou sedução de agentes adultos, verdadeiros e únicos responsáveis pelas guerras, na relação aqui analisada (adulto/criança). Essa condição em especial pode ser observada, por exemplo, em Diamante de sangue (Estados Unidos, 2006), em relação à personagem Dia Vandy, interpretada por Kagiso Kuypers, um garoto em idade escolar, filho de um pescador. Dia, que no idioma Krio, falado em Serra Leoa, quer dizer caro, no sentido de custar muito, é seqüestrado por guerrilheiros e transformado em combatente-infantil. A partir desses elementos do roteiro, o filme reconstitui uma prática bastante comum em determinados contextos bélicos, em especial nas lutas sectárias e guerras civis na África, representado pelo aliciamento de crianças para participação direta na luta armada. Por conta de ocorrências dessa natureza, a Organização das Nações Unidas mantém um programa permanente de conscientização e repúdio a essa prática.61

A condição de vítima, outro caracterizador da personagem infantil em filmes de guerra, explica-se pela passividade. Na visão do filme que centraliza esta análise e como já mencionado anteriormente, a criança nunca é mostrada como responsável pela situação de guerra, mesmo tomando parte dela. Logo, se não tem responsabilidade pelo que acontece, é sempre vítima do acontecido. Interessante notar que, nos modelos cinematográficos aqui observados, a violência da guerra relacionada à criança assume dimensões mais amplas e incisivas, aumentando, proporcionalmente, as possibilidades da estrutura narrativa explorar, intensamente, pontos como a crítica, o questionamento e a dramatização.

Por sua vez e tal como acontece com os itens anteriores, o benefício da inocência também decorre da situação de agente passivo e confere à personagem infantil possibilidades de reflexão e análise muitas vezes impossíveis ou pelo menos difíceis de serem manifestadas por personagens

61 Sobre o assunto ver Human Rights Watch Child Soldier disponível em http://www.hrw.org/child. Acesso em

adultas. Sob o manto da inocência e, ainda que parcialmente, livre do controle e dos valores sociais, a personagem infantil pode enxergar e admitir elementos e situações impossíveis de serem percebidas por agentes socialmente enquadrados, moldados pela consciência e obediência correspondentes às crenças e condicionantes dos mecanismos de coerção social, como a moral, a ética, a ideologia, a cultura e a história, entre outros. Dessa forma, como escreveu Ginzburg (2001), enquanto o hábito exaure de algumas personagens a capacidade de observar criticamente determinados fatos, acontecimentos e situações, estes parecem inaceitáveis e, portanto, passíveis de questionamento sob ângulos de visada diferentes, orientados pelo olhar das personagens ingênuas. A articulação entre esses extremos cria condições potencialmente promissoras para despertar o estranhamento no espectador.

Ao caracterizar a criança como vítima, inocente e distante, os realizadores do filme podem dotar essa personagem de um modo próprio de olhar (a guerra), permitindo, em contrapartida, um modo próprio de narrar, criando, na ponta da corrente, um modo próprio de fazer o espectador romper as fronteiras do costume e da aceitação automática (leia-se acrítica), para plantar-se no campo oposto, de onde é possível antepor aos olhos a lente do estranhamento e, com esses óculos, embarcar na “leitura” da guerra, de acordo com o que pretendem mostrar roteiristas, diretores, etc.

Os filmes que este trabalho visitou, procurando observar a guerra através do olhar infantil, deixaram transparecer um ponto de vista sob o qual escaramuças, combates e batalhas espelham tanto o heroísmo como a crueldade, procurando revelar a guerra, no mais das vezes, como entidade absurda e intrinsecamente ilegítima, mas em alguns casos justificável porque necessária ou pelo menos inevitável, plasmando uma faceta complexa do comportamento humano (social), potencialmente carregada de dúvidas e contradições sobre as quais vale a pena refletir, seja para entender, seja para posicionar-se em relação ao tema

Nesses termos, personagens infantis nos filmes de guerra acabam por constituir antíteses das personagens jingoístas, procurando levar o espectador a observar o conflito bélico através de outro olhar, marcado pela ingenuidade sugerida por Ginzburg.

A produção cooperada Crianças invisíveis (França/Itália, 2005), reunindo sete curtas metragens, todos tendo a criança como tema e cada um assinado por um diretor de nacionalidade diferente, entre os quais Emir Kusturica, Spike Lee e John Woo, mostra a guerra a partir do olhar infantil na seqüência dirigida pelos britânicos Jordan e Ridley Scott, denominada Jonathan.

A personagem que dá título à seqüência, interpretada por David Thewlis (adulto) e Jake Ritzema (criança) é um fotógrafo em crise de consciência por ter assumido postura passiva ao observar e fotografar vítimas infantis da guerra (fig. 27).

Figura 27. Consciência Figura 28. Regressão.

Passeando pela floresta que cerca sua casa, Jonathan depara com dois garotos que haviam sido seus colegas de infância. Evidentemente intrigado com a visão, passa a perseguir os garotos que correm para o interior da floresta. Na perseguição o próprio Jonathan regride à condição de criança. Já como criança, Jonathan, juntamente com os colegas, cruza a floresta (fig. 28). Na borda oposta o trio observa uma batalha, travada em um vilarejo, cujo cenário sugere a Europa central, provável referência aos conflitos que sucederam a desintegração da federação iugoslava e da Tchecoslováquia, no final do século passado e início deste.

Os garotos avançam na direção da batalha, escondidos entre os escombros, bafejados pelo tiroteio e pelas explosões (fig. 30). Quando cessam os tiros e os combatentes deixam o vilarejo, crianças começam a aparecer, como brotassem dos escombros, aqui uma, ali outras, mais além um grupelho (fig. 31). Não há mais adultos na vila. Jonathan e seus colegas se reúnem às crianças nativas. Trocam apresentações e impressões sobre a batalha. Deixam o vilarejo, caminham por uma estrada férrea (fig. 32) e chegam até um velho vagão graneleiro, que serve de moradia para as crianças vitimadas pelos combates, talvez órfãos, talvez desgarrados da família, talvez abandonados, possivelmente condenados a habitar o vagão para fugir das batalhas ou porque suas casas se transformaram em ruínas. Enfim, a condição de criança abandonada por força da guerra aproxima essas personagens daquela outra vista no filme de referência deste trabalho, Império do

Figura 29. Olhar. Figura 30. Realidade.

Figura 31. Encontro.

O vagão e a área em torno estão imundos e desorganizados, mas há referências ao mundo infantil em cada canto: bonecas aqui, um móbile girando acolá, uma sapatilha pendurada na roda de uma bicicleta pendente. Uma garota usa um capacete militar (fig. 34), enquanto um garoto preferiu colocar um balde plástico sobre a cabeça, como fosse chapéu, a alça circundando o pescoço. Uma bola, arremessada de mão em mão, atravessa o vagão, coberto por uma lona que faz lembrar o circo. As crianças estão sujas, algumas têm cicatrizes e nenhuma fala, mas a maioria sorri sorrisos bonitos, cativantes, sinceros. Naquele circo surrealista, as vítimas são ingênuas, inocentes, infantis.

Assim como começou, sem explicação e aparentemente sem motivo, o interlúdio termina. Jonathan e seus colegas acenam despedidas e deixam o vagão. Retornam à floresta e, na mesma carreira do início do filme, porém em sentido inverso, Jonathan retoma a condição de adulto e os colegas desaparecem na névoa. Ponderando que algumas crianças nunca conheceram a paz, mas encontram força para sobreviver (à guerra) e cuidam umas das outras, o fotógrafo volta para casa, para a máquina fotográfica, para a vida.

Figura 32. Solidariedade.

Uma das possibilidades de interpretação da obra de Jordan e Ridley Scott é a intersecção entre guerra e criança a partir de duas vertentes básicas. A primeira é a apresentação da guerra ao olhar da criança, ou seja, constituir personagens infantis aos quais é dada a oportunidade de observar a guerra. Essa intenção se manifesta quando Jonathan e seus colegas atingem a borda da floresta e observam o combate no vilarejo. Nesse momento a câmera confronta diretamente (em close) o olhar das crianças em direção à guerra (fig. 29). Jonathan maneja uma máquina fotográfica, mas não aponta nem dispara. Os amigos confabulam que aquele é o momento mais difícil, mas que todos estão dispostos (ou predestinados) a cumprir e o trio avança na direção do combate. Agora, a guerra não é mais algo que as crianças vêm, à distância, como fazia o fotógrafo, mas um fato do qual são, ao mesmo tempo, observadores e protagonistas. Por isso mesmo, os diretores providenciam uma cena na qual Jonathan sente o calor e o pavor de uma explosão muito perto de si. A terra arrancada pela granada cai sobre sua cabeça, o barulho ensurdece, a guerra torna-se sensível à audição, ao tato, ao gosto e ao olfato. Para saber da guerra, não há que observar, mas sentir, um pouco no cérebro (para que?), outro tanto no coração (por que?).

Figura 33. Lembrança. Figura 34. Negação.

Todavia, o exercício representativo que faz a personagem infantil aproximar-se do combate é, também, um recurso narrativo que afasta a criança da guerra. Jonathan não é combatente, nem mesmo pertence àquele lugar, portanto não guarda nenhuma relação de causa e efeito com o conflito que observa, a não ser com as vítimas infantis. Essa tensão faz aflorar, na personagem, a condição de vítima, a situação de inocência e a posição distante em relação ao conflito, de resto também características da outras personagens infantis (fig. 33). Nesse sentido, é importante ressaltar que os adultos que aparecem no filme não vêem as crianças, mesmo quando essas se expõem àqueles, não havendo uma única cena do filme na qual ocorra interação entre crianças e adultos.

Não por acaso, a regressão de Jonathan para a infância guarda pelo menos dois aspectos que merecem observação.

O primeiro tem a ver com a dinâmica da cena, marcada por um travelling longo e rápido, focando ora os colegas (crianças) de Jonathan, ora a própria personagem correndo atrás deles, sempre em movimento, a expressão entre a curiosidade, a incerteza e a expectativa. O cruzamento da vegetação, às vezes entre a câmera e a personagem em carreira, outras emoldurando o cenário de fundo sobre o qual se descortina a silhueta de Jonathan, empresta um clima de ansiedade e tensão à seqüência. Uma interpretação possível dessa dinâmica centra-se em uma analogia com a transformação, a mudança resultante de um caminho, na direção de algo, em algum ponto do universo, ou introspectivamente, buscando outro ser dentro de si mesmo. Nesse sentido, o final da caminhada levará a uma criança que não é propriamente a que antecede o adulto, o “pai” do homem freudiano, mas uma criança que sucede a experiência que ela mesma viveu como adulto e, portanto, ciente e consciente de tudo o que o adulto viu, sentiu e sobre o que, agora, reflete. O que resultará dessa metamorfose não é propriamente uma criança, mas uma

personagem infantil, fictícia na existência e no modelo, todavia capaz de assegurar o estranhamento proposto por Ginzburg (fig. 35). Não é por acaso que a metamorfose integra o mergulho de Jonathan nas águas de um lago, antes de reunir-se com os colegas de infância. A purificação pela água (retorno à condição de inocência) representa recurso simbólico muito comum ao cinema, refletindo valores e crenças da herança cristã que marca a sociedade ocidental.

Figura 35. Outro olhar. Figura 36. Estranhamento.

Ainda quanto aos aspectos visuais estéticos da narrativa, o segundo ponto constitutivo da cena a ser destacado, no âmbito da leitura e da interpretação sugeridas, remete à ambientação da seqüência. Trata-se da floresta, mergulhada na penumbra e na indefinição da neblina. Densa, escura, dentro da qual o olhar não alcança mais que alguns metros, isolada do mundo que não vê e não sabe o que ali acontece, essa floresta guarda relações muito fortes com povos de origem silvícola, como os bretões, de quem os diretores do filme são herdeiros culturais. Por esse viés, floresta significa o lugar da magia, o reino dos druidas, das alquimias e do sobrenatural, portanto lugar ideal para a passagem da mente racional própria do adulto, para o universo do sentimento, comum à criança. Além disso, a floresta, tal como vista no filme, lembra o local do (re)nascimento, o útero, fechado, envolto de vida, os capilares sanguíneos da anatomia feminina, ou as ramagens e correntes de seiva da paisagem florestal.

Quando se defronta com o combate, Jonathan já não está mais na floresta. A