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RECORTES DE IMPRENSA

OLHAR O CINEMA PARA (RE)VER O JORNALISMO

A condição de jornalista certamente leva à especialização e um pressuposto dessa condição é que o jornalista tenha um grande conhecimento do jornalismo, enquanto técnica, enquanto atividade social, enquanto profissão, enfim, em todos os seus desdobramentos. No caso do Brasil essa pressuposição é ainda mais evidente frente à exigência do diploma universitário específico como requisito incontornável para o reconhecimento legal, profissional e conseqüentemente social do jornalista enquanto tal. À vista do exposto, legitima-se a afirmação de que o jornalista deve ser um conhecedor profundo, diga-se assim, do jornalismo, dominando cognitivamente os diferentes aspectos constitutivos dessa atividade. Mas o inverso também pode ser verdade.

Para dar explicação e legitimidade a essa aparente contradição entre conhecimento e desconhecimento simultâneo, é necessário voltar ao historiador italiano já convocado a contribuir com este texto, na sua primeira parte, em que foram mencionadas as “funções” narrativas das personagens infantis nos filmes de guerra como provocadoras do estranhamento que emerge de

olhares diferentes deitados sobre objetos pretensamente conhecidos. Naquela parte da tese, apoiado nas considerações de Carlo Ginzburg (2001) em Olhos de madeira, foi sugerido que um olhar diferenciado, configurando outro modo de ver determinado objeto ou situação, pode resultar, também, em outro modo de entender esse objeto ou situação, mesmo quando já eram dados como conhecidos. Por isso, Ginzburg (ibid, p. 22), referindo-se ao escritor russo Leon Tolstoi, afirma:

Tolstoi via as convenções e as instituições humanas com os olhos de um cavalo ou de uma criança: como fenômenos estranhos e opacos, vazios dos significados que lhes são geralmente atribuídos. Ante seu olhar, ao mesmo tempo apaixonado e distante (grifo enfático, não verificado no original), as coisas se revelam (...) “como realmente são”.

Retomando, ainda uma vez, a trilha apontada por Ginzburg, a idéia é sugerir que jornalistas e, em especial, alunos de jornalismo, dados os objetivos aqui perseguidos, executem movimentos de afastamento da narrativa jornalística de guerra, buscando outros modos de olhar essa ordem de objeto para, quem sabe, compreende-la melhor ou, pelo menos, dela tomar outros conhecimentos além daqueles sacramentados pelos “significados que lhes são geralmente atribuídos”, como escreve o historiador ítalo-judeu.

No caso do cinema e conforme a análise procedida na parte inicial, o olhar diferenciador foi representado pela criança, à qual o cineasta recorre para provocar o estranhamento do espectador em relação à guerra, narrando o tema do filme através do olhar infantil, marcado pela posição de distanciamento, condição de vítima e situação de inocência.

No caso das narrativas jornalísticas de guerra, a proposta é repetir a dinâmica da observação diferente e diferenciadora, substituindo o olhar da criança pelo olhar do próprio jornalista, através do cinema.

Recorrendo, portanto, ao mesmo procedimento117 aplicado ao cinema, pretende-se, agora, olhar notícias sobre guerra procurando outros sentidos e outros significados da narrativa além daqueles que transparecerem das recomendações teóricas e técnicas preconizadas pelos estudos formais de comunicação social.

117 Salvo momento de desatenção na redação do texto, procura-se, sempre, evitar o uso do termo método ou

metodologia para indicar as condutas adotadas para analisar as notícias, de certa forma repetindo o que foi praticado na primeira parte. Esse cuidado deve-se, primeiro á consciência de que este trabalho não apresenta nem pretende apresentar um método formalizado de análise. Além disso, tratando-se de narrativas diferentes, restrições metodológicas podem inviabilizar a análise. Assim, a palavra processo, no lugar de método ou metodologia, será a mais recorrente para essa finalidade designativa.

Para entender de modo mais preciso o exercício analítico proposto, vale lembrar a interpretação do filme de Jordan e Ridley Scott, Crianças invisíveis, em que a personagem central, Jonathan, altera o seu modo de ver o objeto e o objetivo de suas fotografias – as crianças em situações de guerra – depois de passar por uma experiência de regressão.

A idéia, agora, não é mais interpretar o filme, mas tomá-lo como exemplo e o próprio jornalista, ou aprendiz de jornalismo, fazer a regressão, no sentido de capacitar-se ao “outro modo” de olhar. Do mesmo modo que acontece no filme, a regressão tem por finalidade colocar o protagonista na condição dual e simultânea de observador e objeto observado (e analisado). Portanto, trata-se de atingir um patamar do qual o jornalista possa analisar a sua própria área de atuação “através” do cinema, buscando um modo diverso, distante e revelador de ver o jornalismo.

Partindo desse “outro modo de olhar”, a proposta de releitura evidentemente busca ampliar as possibilidades de análise crítica dos relatos jornalísticos de guerra, permitindo interpretações diferentes daquelas possíveis (e prováveis) quando esses relatos são vistos como noticiário, no sentido técnico e no emprego usual do termo. A expectativa é que o exercício possa estimular o leitor a ponderar, observar e questionar criticamente alguns quadrantes das representações jornalísticas das guerras.

Antes de ser aplicada na prática, é importante arrolar algumas considerações no sentido de não desvirtuar a proposta, emprestando-lhe ambições e expectativas de resultado diferentes daquelas compatíveis com o procedimento sugerido.

A primeira consideração protocolarmente necessária refere-se à relação entre realidade e cinema. Trata-se de observar, quanto a isso, que não é objeto dessa investigação o noticiário que sugere, afirma ou destaca semelhanças entre a realidade e o cinema. Ou seja, o procedimento proposto não sugere que o jornalista narra a realidade como estivesse fazendo cinema. Isso significa pleno reconhecimento de que são matérias jornalísticas e não arremedos (escritos) de filmes que observamos nas páginas do jornal, respeitadas todas as distinções entre o texto redigido e ilustrado e a imagem em movimento, seja na caracterização da narrativa, seja quanto aos objetivos diretos e imediatos de uma e outra modalidade. Assim, o que será observado é como a referência cinematográfica permite reinterpretar a notícia, localizando pontos para os quais as narrativas convergem e ali se assemelham, sem, no entanto, se confundirem.

Outra consideração prévia tem a ver com a pluralidade e diversidade das peças jornalísticas que serão analisadas, cujo elenco inclui tanto a reportagem no sentido mais tradicional do termo, como outras modalidades do jornalismo, como o editorial, o artigo de fundo, o comentário e por aí vai. A idéia de notícia obviamente perpassa todas as peças analisadas, cabendo ao leitor ter em conta que, para os efeitos desta análise, noticiário e notícia não se resumem a reportagem, embora, conceitualmente, toda reportagem contenha notícia e seja noticiário.

A última consideração é de ordem terminológica. Apesar de não representarem sinônimos, os termos sensacional e espetacular, enquanto categorias de análise, são usados indistintamente nos contornos do trabalho. O emprego de um e outro, como se verá, obedece mais a questões estilísticas que metodológicas. A licença se justifica uma vez que já foram evidenciadas, em citações de pesquisadores da comunicação social anteriormente expressas, a equivalência e a similaridade entre esses dois termos. Mais especificamente, o sensacional pressupõe a exploração da barbárie, da selvageria, das veleidades e pieguices humanas118, enquanto o espetacular, em geral, está ligado à exposição e à transparência119 e, portanto, adere aos aspectos estéticos, atuando mais na formatação (espetacular) do noticiário que na busca de conteúdos (sensacionais). Ao fim, quando o assunto narrado é a guerra, importa reconhecer que o sensacional e o espetacular namoram no cinema e podem andar de mãos dadas entre as notícias do jornal.

Isso posto, as páginas seguintes abrigam interpretações do noticiário impresso sobre guerra, a partir de exemplares recolhidos de jornais e revistas nacionais, de ampla circulação, considerando os recortes metodológicos já apresentados, explicados e legitimados em outros parágrafos da tese.