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RECORTES DE IMPRENSA

O MENINO QUE VIU A GUERRA

Carta Capital, 11 de maio, 2005

Quando se tornou jornalista, Mino Carta já vivia do outro lado do Atlântico, distante da sua Itália natal e a Segunda Guerra Mundial já havia acabado, estando, portanto, muito longe do conflito, no tempo e no espaço. Mas como criança conheceu a guerra, enquanto acompanhava as andanças da família pelo território italiano, de San Remo às aldeias piemontesas, passando por

118 Cf. MARCONDES FILHO, 1989. 119 Cf. AUBENAS e BENASAYAG, 2003.

Gênova, fugindo da conflito que castigava a Europa. Seu relato de lembranças da guerra está na edição de onze de maio de 2005 da Carta Capital, revista que fundou e edita em São Paulo. O artigo abre a seção de opiniões e alinha-se com outras matérias sobre o mesmo conflito, na mesma edição, marcando o sexagésimo aniversário do armistício, comemorado em oito de maio, que pôs fim à maior de todas as guerras.

Apesar de escrever na primeira pessoa, o editorialista opta por um movimento narrativo que alterna o olhar rememorativo da criança com o ponto de vista clínico e interpretativo do jornalista.

Para a criança a guerra é um mosaico de lembranças pontuais, de momentos, pessoas e rotinas. Às vezes as lembranças são assustadoras, outras tão simplórias quanto possam sugerir idéias e comportamentos de um garoto de seis anos.

No extremo oposto, a voz do jornalista é pura racionalidade, que interpreta politicamente contextos a partir de momentos e dá aos fatos organização e conotação históricas. Nesse caminho, a criança não fala por si, mas alinha sua narrativa ao posicionamento do jornalista.

O autor foi apanhado pela guerra quando veraneava em San Remo, na casa da avó. O relato centra-se em um ponto de ruptura, com um telefonema do pai de Mino Carta informando sobre a invasão do corredor polonês, iniciando a blitzkrieg nazista. Descrevendo o rosto sombrio da mãe (lembrança do garoto), o autor remete à gravidade da situação (análise do jornalista), descrevendo a passagem de uma situação de “normalidade” para a “anormalidade” da guerra. Naquele momento, ainda que influenciado pelo semblante carregado da mãe, após o telefonema do pai, a criança não reunia argumentos para avaliar a guerra como acontecimento positivo ou negativo, dado que representava tão somente uma palavra de sentido muito vago para uma criança de seis anos de idade e, portanto, desprovida de conceitos mais sólidos sobre as mazelas da sociedade. Somente as privações futuras, em relação àquele momento, poderiam abastecer a criança de elementos concretamente vividos, sofridos e sentidos de modo suficientemente forte para ela compreender (aceitar, incorporar) e emprestar uma visão valorativa da guerra. Apesar disso, o juízo de valor transparece já no momento do anúncio – a guerra começou e a vida já não é (no lugar de será) como antes. Não se trata de um lapso, evidentemente, mas do esforço do jornalista no sentido de direcionar o olhar do leitor para a “anormalidade” física, simbólica e moral da guerra, valendo-se do olhar da criança.

Para compreender melhor o sentido analítico aqui intentado, valem algumas ponderações sobre as intenções do jornalista. O tema da matéria parece ser a Segunda Guerra Mundial, legitimado pelo gancho da data de assinatura do armistício, realçada pelo “número fechado”, múltiplo de dez (60 anos) e, por isso, considerada emblemática e “mais jornalística” que datas “quebradas” (por exemplo, 58º. aniversário do armistício). Todavia, a narrativa recorre a lembranças pessoais, sugerindo que o jornalista também pretendeu escrever a respeito de si mesmo, o que não é considerado, tradicionalmente, um caminho aconselhável para a prática do “bom” jornalismo, tecnicamente falando. Normalmente, manuais de redação e cartilhas de orientação determinam a precedência do assunto noticiado e das fontes (entrevistados, por exemplo) sobre o jornalista, que deve eclipsar-se, abandonando tratamentos personalizados e personalísticos120. Mas, quase sempre, as regras comportam exceções.

120 Apesar da recomendação, mais e mais a imprensa tem caminhado no sentido inverso, estimulando o jornalismo

participativo, a intervenção pessoal no noticiário e até a idolatria, a exemplo do que fazem certas emissoras de televisão com seus jornalistas, como é o caso da rede Globo aqui no Brasil. Sobre o assunto Cf. AUBENAS, BENASAYAG, 2003.

Pierre Bourdieu (1997), ao comentar “algumas propriedades do campo jornalístico”, observa que a deontologia dessa área de atuação sofre os efeitos da hierarquia, de modo que orientações técnicas e condutas profissionais culturalmente definidas têm pesos diferentes quando relacionadas à posição hierárquica do jornalista, seja na estrutura organizacional do veículo em que atua (a cadeia de comando que articula repórteres, editores, editores-chefes, diretores, etc.), seja pelo prestígio profissional socialmente conquistado. Por isso, mesmo que a personalização não se apresente como conduta recomendável, o editor-chefe pode fazer uso dela e o dono do veículo garantir a publicação. Como Carta resume em si mesmo as três condições, autor do texto, editor e proprietário do veículo, restrições puristas ao seu texto ficam para depois, ou nunca. Liberado para escrever de si mesmo, o editor da Carta Capital contorna ou ameniza os efeitos da licença, reduzindo a exposição do ego pelo exercício criativo de “construir” uma personagem capaz de estabelecer relações de empatia com o leitor e, a partir dessa condição, fazer do menino porta-voz das manifestações do jornalista sobre o assunto da matéria.

Evidentemente as pretensões do jornalista aqui observadas são muito diferentes daquelas manifestadas pelo cineasta analisado anteriormente. Todavia, vale notar que ambos foram buscar a voz e a lembrança de crianças que viram e viveram conflitos militares no passado, para comentar a guerra no presente. Tanto no filme como no artigo, não se trata propriamente de crianças que se manifestam sobre a guerra, mas de personagens infantis que mantêm somente alguns constitutivos da criança, conforme o desejo e as intenções do diretor de cinema e do jornalista. Quanto a isso, é interessante notar que nem o cineasta nem o jornalista são os criadores das personagens em tela. O primeiro foi buscar a personagem criada por Ballard para o romance

Império do sol. O segundo, claro, não foi e nunca poderia ter sido criador de si mesmo. Todavia,

ambos recriam as personagens, que são modificadas e amoldadas aos objetivos narrativos do filme e do artigo.

Observada por esse ângulo, a matéria de Carta não é propriamente uma peça rememorativa, mas uma narrativa peculiar, que, ao desviar-se dos cânones jornalísticos mais tradicionais, trazendo a personagem infantil para o centro da narrativa, permite ao autor desenvolver um plano diferente (e eficiente) de comunicação com o leitor.

Narrada pela criança, a guerra reconstituída por Mino Carta deixa de ser mero e distante desdobramento da diplomacia, observado à distância, na forma de evento histórico marcado por datas e relações impessoais, para tingir-se de realidade dramática que afeta diretamente as

pessoas. Essa forma de relato faz despontar a vítima da guerra e a vítima ganha corpo e mente, tornando-se personagem capaz de falar diretamente ao leitor, de pessoa para pessoa. Assim como a personagem do cinema, a criança da reportagem abriga certa dose de inocência (infantil), que desvia suas interpretações da lógica racional (adulta) e leva a uma compreensão tardia das dimensões catastróficas do conflito. Por conta dessa inocência, o primeiro contato com a guerra é eminentemente passivo. Quando o embate eclode, Mino Carta, criança, continua obedecendo e acatando pai e mãe, como fizera até então. Por isso, arruma as malas quando assim é ordenado e viaja para onde a família decide que deve ir, fica onde a família diz que é para ficar e faz o que a família determina, mantendo, pelo menos por um período, a rotina de sempre (ir à escola, rezar na igreja), longe, por assim dizer, da guerra. Quanto a esse aspecto, a narrativa exarada das linhas escritas por Carta não difere muito daquela desenvolvida por Spielberg com os recursos do cinema. A resultante é que essa leitura à luz da projeção do filme pode ampliar a abrangência do artigo na representação que faz da guerra, possibilidade, esta, por vezes obliterada pelas formas mais ortodoxas de leitura e interpretação de textos jornalísticos, pautadas pela busca da informação objetiva, evidente e explícita.

Mas a narração da revista também demonstra que, para além da inocência infantil, a guerra pressupõe o antagonismo, o conflito e a cisão, levando, obrigatoriamente, à necessidade de posicionamento e adesão. Quanto a isso, o artigo é fatal: em situações de guerra, neutralidade pode ser um desejo, nunca uma possibilidade, aspecto que narrativas cinematográficas também evidenciam, como visto, por exemplo, em relação a Os quatro cavaleiros do Apocalipse e ...e o

vento levou. Todavia, as considerações do artigo não terminam na mera percepção de lados

antagônicos e na opção de posicionamento. Para o autor, o cerne da questão é exatamente a escolha, o julgamento de valor que orienta posicionamento e adesão. De modo um tanto maniqueísta, é verdade, Carta deixa claro, na sua representação da guerra, qual é o lado bom e qual é o lado a ser combatido. Por isso, faz questão de mencionar a prisão do pai pelo governo de Mussolini, a fuga e a decisão de unir-se aos guerrilheiros antifascistas refugiados nas montanhas do Piemonte, para onde o garoto segue com a família, levando torta de abobrinhas e vinho a “guerrilheiros festivos, uns de lenço vermelho e outros, azul.” conforme o autor deixa falar a criança, para evidenciar a interpretação do jornalista sobre a guerra.

Assim, à medida que a narrativa mostra como a criança vai “entendendo” a guerra, paralelamente o jornalista conta ao leitor a sua própria interpretação do que é a guerra, definindo,