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Figura 9 Vaticínio.

GÊNEROS CINEMATOGRÁFICOS

Conforme visto no subtítulo anterior, um dos caminhos para tomar contato com a guerra passa por representações desenvolvidas pelo cinema, configurando modos particulares de ver e interpretar esse objeto, a partir das múltiplas possibilidades descortinadas pela reconstituição cinematográfica.

Evidentemente é através dos seus recursos técnicos (a imagem em movimento, aliada ao som) que o cinema edifica suas narrativas. No entanto, assim como a combinação de sete notas musicais descortina horizontes para a composição de um número praticamente infinito de peças sonoras, a combinação e recombinação dos recursos cinematográficos abrem espaço para uma produção de filmes que também tende ao infinito no que respeita ao quesito variedade.

Ao sugerir técnicas e condutas para interpretar filmes, Ramón Carmona, em Cómo se

comenta un texto fílmico, sugere que as possibilidades narrativas do cinema são tão amplas que

uma história familiar pode ser a metáfora de uma situação social mais ampla, ou que um filme de guerra pode servir de base para observar uma relação amorosa, ou ainda uma questão tecnológica17.

No sentido de deitar algumas ponderações sobre essa proposta, considerem-se alguns exemplos da narrativa cinematográfica de guerra, conforme apresentados a seguir.

Acomodado na poltrona do cinema, na frente da televisão, ou conectado ao computador, o espectador contempla, na tela, o céu carregado de nuvens densas e o mar revolto da manhã de seis de junho de 1944, na costa da Normandia, norte da França. Pontilham no horizonte 4.126 lanchas de desembarque18 à frente da silhueta de mais de dois mil navios, como se o espectador estivesse em terra, olhando para o mar. À medida que cenas e planos vão se sucedendo, o espectador pode ver, também, casamatas monstruosas a cavaleiro das falésias e a movimentação de soldados ao redor delas, como se, agora, estivesse no interior das barcaças, olhando para a terra. Outras tomadas colocam o observador a bordo de aviões de transporte C47, de onde pode acompanhar o salto de milhares de pára-quedistas sobre vilarejos franceses.

O observador imaginário referido no parágrafo acima está assistindo ao filme O mais

longo dos dias (Estados Unidos, 1962), cujo enredo é a chamada batalha da Normandia ou dia D,

considerado um dos mais importantes embates da Segunda Guerra Mundial e “a mais difícil e

17 Cf. CARMONA, 1996.

complicada operação (militar) de todos os tempos”, segundo o Primeiro Ministro britânico à época, Wiston B. Churchuill (FELIPE, 2005, p. 360).

A referência do então primeiro ministro britânico ao dia D exprime o significado desse evento no contexto da Segunda Guerra e mesmo em relação a toda a história militar moderna, uma vez que, até a presente data (2008), não foi registrada qualquer outra operação bélica, em nenhum ponto do planeta, concentrando tantos soldados e tamanho volume de equipamentos em uma única batalha. Além disso, a invasão da Normandia é considerada por alguns historiadores militares como um marco histórico da Segunda Guerra Mundial, dado que configurou o refluxo da ofensiva alemã e, por assim dizer, o início do fim daquele conflito. Após aquele momento, exceto em situações específicas e passageiras, os exércitos do Eixo entraram em situação de gradativo recuo, frente ao avanço Aliado19 que, a partir do desembarque na França, passou a pressionar as forças alemãs principalmente a partir de dois pontos, a frente russa, a leste e a frente francesa, a oeste20, até a vitória, em 1945.

São esses elementos de grandiosidade épica e importância histórica da batalha da Normandia que O mais longo dos dias procura destacar, seguindo uma trilha que pode ser enquadrada nas propostas do historiador francês Jacques Le Goff (2003), segundo o qual a memória (aquilo que sobrevive do passado) é resultado de escolhas que se manifestam em duas formas principais, os documentos, expressando a seleção do historiador (marcado pelo procedimento científico) e os monumentos, que Le Goff designa como herança do passado. Nesses termos, Saliba (1993, p. 87) explica:

Vale a pena refletir um pouco sobre a fértil distinção trabalhada pela historiografia recente, entre documento, produzido voluntária ou involuntariamente pela sociedade segundo determinadas relações de força, e o monumento, voluntariamente produzido

pelo poder (grifado no original), sobretudo por quem detém o poder de perpetuação dos

próprios registros, no caso o poder de perpetuação das imagens. O que transforma o documento em monumento é, no fim das contas, a sua utilização pelo poder; não existem, a rigor, documentos ou „registros puros‟ – são as perguntas que fazemos que o transformam em tal condição, ou seja, tudo depende da sua construção, da forma como recortamos nosso objeto. Isto pode ser talvez ainda mais válido no caso do material fílmico, que trabalha com imagens capazes de provocar um efeito de realidade, quem sabe mais ou menos forte, mas certamente desconhecido dos signos verbais.

19 Os termos Eixo e Aliados designam alianças antagônicas de países que lutaram na Segunda Guerra Mundial, a

primeira formada fundamentalmente pela Alemanha, Itália e Japão e a segunda reunindo os países que combateram ao lado da Inglaterra, Estados Unidos e Ex-União Soviética.

20 Cabe mencionar que o avanço Aliado compreendeu, também, a abertura de uma terceira frente, no quadrante sul

Nesses termos, O mais longo dos dias pode ser observado como registro de um acontecimento que a memória coletiva (da sociedade ocidental contemporânea) referencia e reverencia como monumental. Portanto, não é por acaso que tem perfil de monumento esta narrativa fílmica sobre o desembarque Aliado que rompeu a chamada Fortaleza Européia, erguida pelo Eixo na costa oeste daquele continente.

Através dessa linha de interpretação, é possível entender porque as cenas com atores são mescladas com imagens e seqüências captadas durante a batalha, justificando, também, as legendas, no início de determinadas seqüências, que fornecem ao espectador o registro de data horário e local dos acontecimentos encenados, bem como nomes e informações adicionais sobre as personagens (baseadas em figuras reais da história), à medida que entram em cena. Além disso, a observação dos figurinos e adereços do filme mostra apurada semelhança aos referentes originais, enquanto a narrativa carrega na apresentação de informações e dados numéricos sobre a batalha, ao mesmo tempo em que foge da excessiva dramatização, exercício relativamente comum aos filmes de guerra do cinema ficcional21.

Além de aspectos referentes à cenografia e montagem, outros elementos da narrativa também convergem para a “monumentalização” do tema enfocado pelo enredo, como é o caso do conteúdo e do modo como os atores interpretam os textos, marcados pela grandiloqüência e pela exaltação, observadas em vários trechos em que oficiais alemães manifestam-se sobre a batalha, como o major general Gunther Blumentritt: - “Isto é história. Nós estamos vivendo um momento histórico”, ou do marechal de campo Erwin von Rommel (dirigindo-se aos oficiais do seu Estado Maior, responsável pela defesa da Fortaleza Européia) – “Acreditem-me, senhores, as primeiras vinte e quatro horas da invasão serão decisivas para os Aliados e para os alemães. Será o mais longo dos dias... o mais longo dos dias,” ou ainda o major Werner Pluskat, reportando-se ao seu superior, tenente coronel Ocker, a partir de uma casamata de onde observa a frota de invasão cruzando o Canal da Mancha – “Sobre aqueles cinco mil navios que o senhor disse que os Aliados não tinham... bem, eles têm!” O mesmo vale para intervenções do oficialato Aliado, como expressa o comandante de um destróier de escolta engajado na frota de desembarque, dirigindo-se a um subalterno, enquanto contempla a fileira incontável de navios aproando a costa

normanda – “Lembre-se disso. Lembre-se de cada detalhe, porque estamos na véspera de um dia sobre o qual as pessoas continuarão falando muito tempo depois de morrermos.”22

Reunidos, esses exemplos ajudam a corroborar a proposta de que O mais longo dos dias pode ser visto como uma narrativa audiovisual que procura mostrar ao espectador como foi a batalha da Normandia, caracterizada por uma narração grandíloqua, baseada em fatos, datas e personagens historicamente registrados, buscando ressaltar o aspecto memorável daquele evento. Essas características refletem o modo de ver e o modo de descrever aquela batalha próprios dos realizadores do filme (produtores, diretores, roteiristas, etc.).

Mas esse modo de ver o dia D não é único. A literatura sobre cinema revela a existência de diversos outros filmes que tratam do mesmo tema, com níveis variados de abrangência, desde

blockbusters como O resgate do soldado Ryan (Estados Unidos, 1998), até títulos literalmente

“esquecidos”, semelhantes ao estrelado por Robert Taylor, D day, six of june/Dia D, seis de junho (Estados Unidos, 1956), em que dois combatentes aliados, um inglês outro americano, envolvidos com a mesma mulher, participam da operação Overlord, designativo codificado da operação de desembarque na Normandia23 . Além disso, o tema também aparece na literatura, documental e de ficção (vide, por exemplo, o livro de Cornelius Ryan que serviu de base para o roteiro de O

mais longo dos dias), bem como ilustra artigos de jornal e revista.

O que importa dessas considerações todas é a evidência de que são muitas e múltiplas as formas da sociedade tratar o evento ocorrido em seis de junho de 1944, na costa francesa, cada uma representando um modo de descrever e, no caso do cinema, também um modo de reconstituir aquele evento, seja nos seus aspectos materiais, seja no que diz respeito a interpretações, julgamentos de valor e posicionamento crítico.

Nesses termos, ao exibir a reconstituição monumental de uma batalha e dado que, entre outras definições possíveis, guerra pode ser entendida como um elenco de batalhas, O mais longo

dos dias constitui um modo de ver, mostrar e interpretar o conflito armado, ou seja, uma narrativa

cinematográfica de guerra.

Mas, no sentido mais amplo e geral do termo e até mesmo a partir de alguns condicionantes históricos, a mesma guerra mostrada em O mais longo dos dias, pode ser representada de modo

22 Sobre o assunto ver The longest day fun stuff disponível em http://imdb.com/title acesso em 10.03.2008 23 Cf. HALLEWELL, 1979.

diverso ao espectador, como é o caso da narrativa sobre o embate entre o sniper24 soviético Vassili Zaitsev e seu rival alemão, Konig, que compõe o argumento de Círculo de fogo (Estados Unidos, 2001). Contrapondo os dois filmes, é possível observar que, de modo diferente, ambos tratam do mesmo assunto, tanto no atacado (a guerra em geral), como no varejo (a Segunda Guerra Mundial, especificamente).

A leitura que se pretende desenvolver aqui sobre Círculo de fogo toma como princípio que o filme, tanto em termos de roteiro/argumento, como no que respeita à estrutura narrativa, demonstra que é possível interpretar o todo (no caso a guerra) a partir do conhecimento de partes muito reduzidas e específicas desse todo (no caso o combate entre os dois soldados citados).

O caminho do todo para a parte começa com a observação de que o enredo reduz a guerra a um conflito específico, a Segunda Guerra Mundial. Por sua vez e apesar da adjetivação mundial, expressa no próprio nome pelo qual o conflito é conhecido e historicamente classificado, o filme olha para uma região determinada envolvida por esse conflito, a chamada frente russa ou frente leste25 e, nessa região, aplica mais um passo na direção da redução ou concentração, focando especificamente a cidade de Stalingrado, atual Volvogrado.

Por outro lado, além da redução geográfica, verifica-se, também, uma focalização temporal, concentrada no período de vinte e oito de junho de 1942 a dois de fevereiro de 1943, datas que definem o início e o fim da Batalha de Stalingrado, marcada pela resistência das forças soviéticas à tentativa de ocupação da cidade pelo exército alemão26.

Completando a focalização, o filme concentra atenção em dois soldados, apesar da batalha de Stalingrado ter envolvido centenas de milhares de combatentes, sobretudo do Exército Vermelho soviético e da Wermatch e Luftwaf alemãs27.

A partir dessa trilha que concentra e focaliza, é possível ver em Círculo de fogo uma narrativa de guerra bastante específica, sem deixar, contudo, de remeter e/ou referenciar indiretamente a círculos mais abrangentes do tema. Por associação lógica equivale dizer que

Círculo de fogo constitui um modo particular de ver e narrar o conflito, que não deixa de abordar

24 Atirador de escol – soldado de elite, cujo treinamento desenvolve a habilidade de praticar táticas de tocaia e atirar

à distância, com precisão, em alvos selecionados (n. a.).

25 Termos empregados pela história para localizar as ações militares da Segunda Guerra Mundial ocorridas em uma

linha no leste europeu, indo, grosso modo, da Finlândia, ao norte, até o sul da Iugoslávia, atualmente representado pela Macedônia (n. a.).

26

Cf. FELIPE, 2005.

27 Somente do lado alemão, o total de tropas envolvidas nesse evento é calculado em 250 mil efetivos Cf. FELIPE,

a Segunda Guerra Mundial, em termos de referência histórica, mas desde uma perspectiva muito diferente daquela observada no outro filme, no que respeita ao modo de narrar. Assim, enquanto

O mais longo dos dias reconstitui a guerra colocando em cena grandes contingentes militares, Círculo de fogo vai no sentido contrário, organizando a reconstituição (do mesmo fenômeno, a

guerra e do mesmo evento, a Segunda Guerra Mundial) tratando do todo a partir do enfoque de alguns constitutivos muito específicos desse todo, substituindo as grandes concentrações de tropa pelo olhar sobre dois combatentes.

Isto posto e ao menos no que respeita a obras de ficção, a comparação entre os dois filmes demonstra que o cinema é fértil e rico nas suas possibilidades narrativas, que, no mais das vezes, procura entreter e envolver o espectador recorrendo à capacidade de iludir. Essa constatação leva Carmona (1996) a apresentar a linguagem cinematográfica como dispositivo retórico, que nunca tem o objetivo de elucidar a verdade, mas sim de praticar a persuasão.

Na constituição crescente e contínua de formas narrativas variadas, o cinema criou, também, chaves interpretativas, cujo domínio permite ao espectador acompanhar e entender a narrativa, deixando-se envolver pela persuasão mencionada por Carmona (1996). Assim, se de um lado a criatividade e a inventividade permitem classificar a narrativa cinematográfica como variada e diferente, é preciso reconhecer, pari passu, que os filmes agrupam elementos comuns, os quais desenham modelos razoavelmente bem definidos, dotados de chaves básicas de interpretação.

O cinema americano de gênero, originário de Hollywood, corresponde a esse modelo que, sem interferir com a liberdade criativa e as possibilidades de variar as formas de narração, oferece ao espectador elementos decodificadores pré-definidos, os quais dão ao filme determinado formato, designativo do gênero.

Segundo o pesquisador europeu Antonio Costa (1989), a par do sistema empresarial de fazer e comercializar filmes (star and studio systems), gênero é o elemento que responde pela marca mais evidente e diferenciadora do cinema que tem como epicentro histórico e administrativo a região californiana batizada pelo mercado imobiliário como Hollywood. Sobre o assunto, afirma o autor:

Estreitamente integrados no studio system estão, por um lado o star system (...) e, por outro, o sistema de gêneros, ou seja, um instrumento eficaz de diferenciação dos produtos além de um expediente de racionalização do processo produtivo baseado na máxima especialização dos vários componentes do trabalho artístico (COSTA, 1989, p. 66).

Analisando com um pouco mais de profundidade esse tema, o pesquisador indica que, no caso dos filmes hollywoodianos, a etiqueta de gênero orienta o espectador quanto: “à ambientação, estilo e, dentro de certos limites, ideologia”, lembrando que a referência à tipologia dos gêneros permite reproduzir os mecanismos básicos de produção e consumo dos filmes:

Gêneros (...) são o resultado de uma produção de universos figurativos e mecanismos narrativos que devem ser considerados como verdadeiras criações coletivas nas quais se expressa uma visão do mundo e uma filosofia de vida, uma concepção estética e ideológica (ibid, p. 94).

Ao refletir sobre critérios usados para definir e estabelecer gêneros cinematográficos, Tom Gunning resgata o conceito de “ilusão cinemática”, ligado à própria essência do cinema (imagem em movimento), da qual a chamada sétima arte extrai elementos para criar uma narrativa própria, usando recursos próprios para constituir (ou reconstituir) idéias, fatos, elementos da natureza ou da imaginação, vedados a outras formas narrativas, como a literatura, por exemplo.

Embora o exemplo trabalhado no texto em tela seja o filme de horror28, o modelo ali sugerido permite desdobramentos para outros gêneros de filme e, portanto, da constituição (ou reconstituição) de idéias, fatos, elementos da natureza, da sociedade ou da imaginação ligados a outras instâncias, como a guerra, considerando o interesse deste trabalho.

A partir dessa referência, a busca de um conceito relacionando guerra e cinema precisa, antes de tudo, ponderar a questão do gênero, visto aqui como um olhar específico ou modo particular de focar vários elementos, como, por exemplo, amor, humor ou a conquista do oeste estadunidense. Desses olhares surgem os gêneros classificados por Gunning (1995) como gêneros de produção e marketing, que procuram definir como determinado elemento (o amor, o humor, etc.) é visto, reconstruído ou reconstituído pelo cinema, surgindo daí o filme (de gênero) romântico, de aventura, de horror, bem como a comédia e outros. Em termos diferentes, o que se pretende dizer é que o cinema de gênero cria modelos29 próprios de referência. Por sua vez, desses modelos derivam modos mais ou menos padronizados de interpretação, que são incorporados pelas platéias, orientando o modo de “ler” e valorizar os filmes.

28 Cf. GUNNING, 1995.

29 Modelo, no que respeita a este trabalho, remete ao conceito científico do termo, ou seja, constructo capaz de

reproduzir determinado objeto a partir da organização esquemática e tão genérica/abrangente quanto possível, composta pelos elementos que formam o objeto representado (componentes) e pela interação funcional desses elementos (mecânica ou dinâmica). Sobre o assunto Cf. LOPES, 1999.

Como exemplo do modelo próprio, basta lembrar que a filmografia enquadrada no gênero

western acabou por constituir uma referência-padrão do povoamento dos Estados Unidos, não

obrigatoriamente restrito à região oeste, como sugere o termo que designa o gênero. Após a instituição do gênero, o compromisso com a realidade ou com outras formas narrativas foi passando para um plano secundário ou mesmo desprezível, consolidando o modelo cinematográfico gerado pelo gênero, particular e específico, ou seja, dotado de identidade própria. Surge daí a imagem do cowboy, que o imaginário coletivo associa com muita facilidade a determinadas fases da história americana, embora nem sempre essas associações sejam cientificamente comprovadas em termos de comportamento social, indumentária, etc.

O caso da guerra é semelhante. Constituído como gênero, o filme de guerra criou modelos próprios de conflito bélico e imagens próprias de guerreiros ou soldados. Sobre o tema, Paul Virilio lembra que "com o cinema, o reflexo 'fiel' deixa de existir" e, citando Paul Wegener, afirma que tudo passa a depender das imagens que: "depois de terem sido roubadas, retocadas e inovadas, podem ser capturadas, vendidas, transformando-se em objeto atraente de um produtivo tráfico de aparências, além de poderem ser projetadas no espaço e no tempo"30. Com isso, ainda seguindo o pensamento de Virilio, as imagens em movimento substituem os pensamentos. Para justificar a afirmativa de que "o cinema é a guerra", o pensador francês busca apoio em um texto de Gustave LeBon sobre a importância das forças imateriais na formação do imaginário coletivo:

A guerra não atinge somente a vida material dos povos, mas também seus pensamentos... e aqui voltamos a esta noção fundamental: não é o racional que conduz o mundo, mas as forças de origem afetiva, mística ou coletiva, que conduzem os homens, as sugestões arrebatadoras destas fórmulas místicas, cada vez mais potentes, mas ainda vagas... as forças imateriais são as verdadeiras condutoras do combate. (LeBON, 1916 apud VIRILIO, 1993, p. 54).

Evidentemente, a substituição da realidade pelas “forças imateriais” pode ser visto como um exercício que contribui muito para que o contato da sociedade com a guerra ocorra mais intensamente a partir de constructos talhados pela mídia e por ela disseminados. Todavia, parece pertinente, aconselhável e conveniente não perder de vista a guerra também enquanto componente presente em todas as sociedades conhecidas31, a partir da qual emergem as (re)constituições escritas nas páginas da literatura, noticiadas no jornal, mostradas na televisão,

30 Citado em Virilio (1993, p. 54).

imortalizadas na pintura artística, expressas pelos passos e gestos da dança, ou declamadas na poesia32.

Todavia, se, por extensão, as teses sobre gênero tornam possível mencionar que o cinema cria modelos próprios de guerra, cujo compromisso com a realidade, no mais das vezes, é difuso e, quase sempre, diferente de uma para outra reconstituição, também se diferenciando de outros