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A ideologia corporativista

Capítulo I – Caraterização e qualificação jurídica do objeto de estudo

– ENQUADRAMENTO GERAL –

4. A ideologia corporativista

Após o golpe militar de 1926 e, principalmente, com a Constituição de 1933, a influência do Direito Administrativo no direito laboral foi particularmente favorecida pelo corporativismo, tendo esta ideologia do Estado Novo (1926-1974) introduzido no domínio privado os ideais de interesse público e da superioridade dos interesses nacionais sobre os interesses privados13.

Esta expansão ideológica ficou claramente vertida no Estatuto do Trabalho Nacional, promulgado pelo Decreto-Lei 23048, de 23 de setembro de 1933, em que se estabelecia que “a propriedade, o capital e o trabalho desempenham uma função social, em regime de cooperação económica e de solidariedade", sendo o trabalho considerado como um dever de solidariedade social. Acrescia ainda que o “direito ao trabalho e ao salário humanamente suficiente são garantidos sem prejuízo da ordem económica, jurídica e moral da sociedade, considerando-se esse direito efectivado através dos contratos individuais e colectivos”.

Também a liberdade sindical foi afetada, através do Decreto 23050, de 23 de setembro de 1933, dado que os sindicatos, embora pudessem ser criados pelos trabalhadores, estavam dependentes do reconhecimento administrativo por um membro do Governo e eram colocados na dependência do Instituto Nacional de Trabalho e Previdência, sendo obrigados a subordinar a sua atuação aos interesses da economia nacional, em colaboração com o Estado e com os órgãos superiores da produção e do trabalho.

Nesta linha, deu-se um passo atrás no que diz respeito aos direitos coletivos, dos trabalhadores mas também dos empregadores, tendo o Decreto-Lei 23870, de 18 de maio de 1934, estabelecido a punição da greve e do lock-out, com penas que incluíam a multa, a prisão

12 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes - Direito do Trabalho. 3ª ed., Almedina, 2012, p. 32-35. 13 RAMALHO, Maria do Rosário Palma - Tratado de Direito do Trabalho - Parte I…, p. 83-86.

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e o desterro14, ao mesmo tempo que o Estado Liberal foi dando lugar ao Estado Providência15, cabendo a este a função de agente da promoção social, proteção da população, organizador da economia e garante dos serviços públicos, abrangendo diversas áreas, como a saúde, a educação e a segurança social, que demandaram o recrutamento em massa de novos funcionários16.

Em consequência das alterações efetuadas neste período, as relações laborais dos privados passaram a estar sob o controlo público, assumindo igualmente o Estado uma função de tutela dos trabalhadores na empresa, como contrapartida17 pelo facto de lhes serem retirados os instrumentos coletivos de reação contra os empregadores18.

Por força das políticas utilizadas e da prolongada duração no tempo, o corporativismo marca indelevelmente o direito laboral português, sendo expressão dessa marca a influência do Direito Administrativo tanto na estrutura conceptual, como nas fontes dos diversos regimes de trabalho privado que entretanto se sucederam.

Aqui, no que toca à atual configuração da figura da convenção coletiva de trabalho, apesar de se tratar de um acordo de vontades, outorgado por entidades privadas (artigos 2°, 485.º e seguintes, do Código do Trabalho19), em prossecução de interesses privados, é reconhecida pela lei como uma fonte específica do direito laboral (artigos 1.º e 2° do CT 2009) e apresenta diversas características que favorecem a sua assimilação a um ato normativo20, desde logo a sujeição ao formalismo de depósito e publicação (artigos 494.º, n.º 1, e 501.º, n.º 11, ambos do CT 2009), a entrada em vigor apenas com a publicação (artigo 519.º do CT 2009) e a aplicação generalizada, não só a todos os membros das associações outorgantes (artigo 496.º do CT 2009), mas também àqueles que, não sendo membros, escolham ser por elas regulados (artigo 497.º do CT 2009)21.

Estando preenchidos os requisitos de normatividade, heteronomia, imediação e reconhecimento estatal, existe quem defenda22,23 a possibilidade de as convenções coletivas de trabalho serem objeto de controlo da constitucionalidade nos termos gerais, embora a

14 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes - Direito do Trabalho…, p. 39.

15 MARTINS, Alda - A laboralização da função pública e o direito constitucional à segurança no emprego. Julgar, n.º 7. Coimbra Editora. Jan-Abr. 2009, p. 164.

16 PEREIRA, Miriam Halpern - As origens do estado providência em Portugal: as novas fronteiras entre o público e o privado. Ler história, n.º 37. 1999, p. 61 e ss.

17 LEITE, Jorge – Direito do Trabalho, Vol. I. Serviços de Acção Social da Universidade de Coimbra, 1998, p. 46-47, Cit. por LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes - Direito do Trabalho…, p. 39.

18 RAMALHO, Maria do Rosário Palma - Tratado de Direito do Trabalho - Parte I…, p. 85.

19 Doravante apenas CT 2009, publicado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, na redação dada pela Lei n.º 28/2016, de 23 de agosto.

20 Conforme RAMALHO, Maria do Rosário Palma – Intersecção...; e também LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes - Direito do Trabalho…, p. 71.

21 Neste sentido, vide os Acórdãos do STJ no Proc. n.º 00S012, de 07-06-2000, e Proc. n.º 02S565, de 25-09-2002, disponíveis em www.dgsi.pt.

22 CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital - Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I. 4ª ed. revista, Coimbra Editora, 2007, p. 312-314.

23 CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital - Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II. 4ª ed. revista, Coimbra Editora, 2010, p. 899-903.

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jurisprudência do Tribunal Constitucional tenha sido extremamente controvertida24 neste aspeto, acompanhando também a doutrina25 que é contra esta possibilidade.

Outra figura reveladora da ideologia corporativista no direito laboral é a portaria de extensão (artigos 2.º, 514.º e seguintes do CT 2009), considerada um regulamento administrativo pela doutrina26 e assim tratado pela jurisprudência27.

Sendo emanada pelo Governo, a portaria de extensão alarga o âmbito de incidência subjetiva de uma convenção coletiva de trabalho ou de uma deliberação arbitral em vigor a um universo de empregadores e trabalhadores integrados no âmbito do sector de atividade e profissional definido naquele instrumento, sendo a extensão possível mediante ponderação de circunstâncias sociais e económicas que a justifiquem, nomeadamente a identidade ou semelhança económica e social das situações no âmbito da extensão e no do instrumento a que se refere.

A permanência nos dias de hoje deste instrumento provindo do regime corporativista, fundamenta-se no interesse de uniformização do estatuto dos trabalhadores subordinados e da igualdade de tratamento que subjazem à eficácia geral dos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho28, como o princípio do “trabalho igual, salário igual”, já amplamente tratado na jurisprudência29.

Por último, no que toca a fontes, temos o contrato de trabalho, o qual não estabelece normas, mas antes comandos, de onde resultam as vinculações concretas assumidas pelas partes no âmbito da relação laboral30.

Aqui, a influência maior do Direito Administrativo dá-se no tipo de modelo empresarial, que constitui o paradigma do regime jurídico do vínculo laboral no sistema jurídico português31, onde podemos realçar o modelo vertical das empresas, idêntico à estrutura hierárquica dos serviços públicos, e que se evidencia, no que toca ao empregador, tanto no poder diretivo (artigo 128.º, n.º 2, do CT 2009) como no poder regulamentar (artigo 99.º do CT 2009), que se

24 A considerar não ser admissível a fiscalização da constitucionalidade, vide os Acórdãos do TC n.º 172/93, de 10- 02-1993, Ac. n.º 637/98, de 04-11-1998, Ac. n.º 697/98, de 15-12-1998, Ac. n.º 492/00, de 22-11-2000, Ac. n.º 224/2005, de 27-04-2005, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.

Considerando a fiscalização possível com o argumento de que as convenções colectivas produzem normas, vide os Acórdãos do TC n.º 214/94, de 02-03-1994, Ac. n.º 368/97, de 14-05-1997, Ac. n.º 239/98, de 05-03-1998, Ac. n.º 174/08, de 11-03-2008, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.

25 MIRANDA, Jorge – Manual de Direito Constitucional, Tomo IV – Inconstitucionalidade e Garantia da Constituição. Coimbra Editora, 2001, p. 162-164.

26 Ver RAMALHO, Maria do Rosário Palma - Tratado de Direito do Trabalho - Parte I…, p. 260; CORDEIRO, António Menezes - Manual de direito do trabalho…, p.343; LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes - Direito do Trabalho…, p. 73.

27 Por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 294/2014, de 26-03-2014, relatado pelo conselheiro Pedro Machete, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.

28 RAMALHO, Maria do Rosário Palma – Intersecção...

29 Vide os Acórdãos do STJ no Proc. n.º 00S012, de 07-06-2000, e Proc. n.º 02S565, de 25-09-2002, disponíveis em www.dgsi.pt.

30 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes - Direito do Trabalho…, p. 39. 31 RAMALHO, Maria do Rosário Palma – Intersecção...

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consubstanciam no seu poder disciplinar sobre o trabalhador32 (artigos 98.º, 328.º e seguintes, todos do CT 2009).

Nesta matéria, a forma de conceber e regular o poder disciplinar laboral têm claramente como modelo o poder disciplinar administrativo, dele transportando o enunciado das sanções disciplinares (artigo 328.º do CT 2009), a exigência de um processo disciplinar (artigo 329.º do CT 2009) e o direito de reclamação e de impugnação judicial da sanção aplicada (artigo 170.º do Código de Processo do Trabalho33).

Quanto ao trabalhador, a estrutura hierárquica permite também compreender as referências legais ao seu dever de obediência (artigo 128.º, n.º 2, do CT 2009), assim como ao direito de reclamação do trabalhador para o «escalão hierarquicamente superior» (artigo 329.º, n.º 7, do CT 2009).

Também as referências à carreira e o regime legal de tutela da categoria do trabalhador (artigo 129.º, n.º 1, alínea e), e artigo 119.º, ambos do CT 2009) apontam para um modelo empresarial vertical, semelhante ao dos serviços públicos.

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