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O direito à contratação colectiva enquanto concretização do princípio da autonomia colectiva

O ÂMBITO PESSOAL DE APLICAÇÃO DOS ACORDOS COLECTIVOS DE TRABALHO EM FUNÇÕES PÚBLICAS: A SUPERAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FILIAÇÃO

3. O direito à contratação colectiva enquanto concretização do princípio da autonomia colectiva

Um dos traços estruturantes do direito do trabalho é a sua dimensão colectiva que, como esclarece Maria do Rosário Palma Ramalho, se manifesta “na constituição de entes colectivos e de outros grupos laborais e justifica a actuação dos sujeitos laborais colectivamente ou por intermédio de grupos, como forma comum de intervenção no domínio laboral”35. Fala-se, então, em determinação colectiva das condições de trabalho e invoca-se a acção colectiva em substituição do trabalhador isolado, visando participar nessa determinação.

Uma das projecções fundamentais desta dimensão é o conceito de autonomia colectiva, que Monteiro Fernandes define como a “capacidade reconhecida pelo Estado a certos grupos sociais organizados de emitirem, por um processo próprio de expressão do confronto entre os seus interesses colectivos (o negócio colectivo), normas que simultaneamente constituem fórmulas de equilíbrio entre estes interesses e padrões de conduta para os membros dos grupos nas suas relações individuais (isto é, limitações à autonomia privada)”36.

Desta forma, o princípio da autonomia colectiva é historicamente inerente às relações laborais e tem a sua razão de ser na necessidade de equilibrar essas relações, compensando a debilidade contratual do trabalhador isolado. A autonomia colectiva deve, assim, ser entendida como um mecanismo de protecção dos trabalhadores perante a posição de poder do empregador, promovendo a substituição da posição contratual do trabalhador individualmente considerado pelas formas de organização colectiva dos interesses. Entende- se, portanto, que a acção colectiva dos trabalhadores – valorizada em detrimento da autonomia individual – garante uma influência mais determinante na definição das condições de trabalho, permitindo alcançar um equilíbrio nas relações laborais originalmente assimétricas. Acresce que a consagração constitucional da autonomia colectiva (cfr. artigo 56.º, n.º 1, da CRP) consubstancia um reconhecimento “como direito fundamental dos trabalhadores, com a natureza, pelo menos desde a revisão constitucional de 1982, de um direito, liberdade e garantia”3738.

Embora a autonomia colectiva não se reduza ao direito à contratação colectiva, este é a sua expressão mais relevante (cfr. artigo 56.º, n.º 3, da CRP), como é reconhecido por Bernardo da Gama Lobo Xavier, para quem as convenções colectivas “constituem a expressão da sociedade livre, em que se reconhece a autonomia das forças sociais e exprimem uma manifestação de pluralismo jurídico, em que o Estado aceita a criação do Direito pelos grupos interessados. […] são a expressão fundamental da autonomia colectiva […] entendida como um fenómeno de auto-regulação de interesses entre grupos contrapostos, na medida em que se confia aos próprios interessados, organizados nas respectivas associações, a disciplina das relações de

35 RAMALHO, Maria do Rosário Palma – Direito do Trabalho. Parte I. Dogmática Geral, p. 501. 36 FERNANDES, António Monteiro – Direito do Trabalho…, p. 650.

37 LEITE, Jorge – Código do Trabalho – algumas questões de (in)constitucionalidade, p. 249.

38 O princípio da autonomia colectiva pode ainda ser associado à ideia de democracia participativa ínsita no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da CRP (cfr. SOUSA, Nuno J. Vasconcelos Albuquerque Sousa – A Reforma do Emprego Público…, p. 242).

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trabalho”39. Note-se, a propósito, que a CRP declara “a titularidade do direito de contratação colectiva a favor dos trabalhadores enquanto membros de um grupo e não dos sindicatos. Estes apenas têm o monopólio do exercício do direito, mas não são os titulares do direito à contratação colectiva”40.

Por outro lado, procura sublinhar-se que a CRP apenas declara o direito de contratação colectiva a favor dos trabalhadores, e não do empregador – está em causa “o exercício e um direito fundamental dos trabalhadores”41. Nesta perspectiva, do ponto de vista constitucional os sujeitos laborais não estão no mesmo plano: embora não podendo deixar de considerar o empregador como sujeito da convenção colectiva, esta perspectiva entende “que não foi por causa dos interesses do empregador […] que a Constituição consagrou o direito à contratação colectiva e ordenou à lei a sua garantia efectiva”42.

Na linha do que ficou dito sobre o conceito de autonomia colectiva, deve enfatizar-se que o elemento essencial à contratação colectiva é a intervenção, do lado dos trabalhadores, de uma organização sindical, exigência que está na base da constituição de uma relação colectiva de trabalho. Esta característica garante que a contratação colectiva constitua um mecanismo específico de compensação do desequilíbrio original entre as partes na relação de trabalho. O entendimento de que a convenção colectiva reequilibra a relação laboral e coloca empregadores e trabalhadores numa situação de paridade assenta na ideia segundo a qual, no processo negocial, o sindicato se substitui à individualidade de cada trabalhador na determinação das condições de trabalho. É através da contratação colectiva que os trabalhadores, enquanto colectivo, se contrapõem ao empregador, limitando o seu poder, e participam paritariamente na determinação colectiva das condições de trabalho43.

Note-se, assim, que a regulação das relações individuais de trabalho por acordo colectivo, e atendendo a que as cláusulas destes prevalecem sobre as cláusulas dos contractos individuais, “implica uma limitação considerável da autonomia contratual individual e representa a imposição de obrigações a pessoas que […] não intervieram na celebração da convenção”44.

Partindo destas posições, é possível destacar três componentes da dimensão normativa das convenções colectivas. Em primeiro lugar, deve atender-se a que a eficácia jurídica da ACT se produz, à partida, na esfera individual dos trabalhadores e não na das organizações que a celebram (outorgantes), vinculando os indivíduos filiados nas organizações celebrantes e regulando de forma directa e imediata as relações individuais de trabalho. Em articulação próxima com este aspecto, pode destacar-se uma segunda componente: parte significativa do

39 XAVIER, Bernardo da Gama Lobo – Curso de Direito do Trabalho, p. 157.

40 REIS, João – A caducidade e a uniformização das convenções colectivas, a arbitragem obrigatória e a Constituição, p. 187.

41 Idem, p. 188. 42 Ibidem, p. 188.

43 A este propósito, justifica-se referir que o interesse colectivo, prosseguido pelos sindicatos, é qualitativamente distinto dos interesses individuais de cada trabalhador: “O interesse colectivo não se reduz ao mero somatório dos interesses individuais dos membros do grupo: pode, eventualmente, existir uma pretensão coincidente e simultânea a todos eles, mas pode ser também (e será a regra) verificar-se divergência, se não conflito, de interesses individuais no seio da colectividade” (FERNANDES, António Monteiro – Direito do Trabalho…, p. 655). 44 MOURA, J. Barros – A convenção colectiva entre as fontes de direito do Trabalho. Contributo para a teoria da convenção colectiva de trabalho no direito português, p. 93.

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conteúdo da convenção colectiva assume a natureza de comandos jurídicos gerais, abstractos e vinculativos para o conjunto de indivíduos filiados nas organizações celebrantes45. Por último, invoca-se a singularidade da autonomia colectiva e o seu valor como forma específica de garantir a defesa e promoção dos interesses dos trabalhadores, enquanto grupo colectivamente organizado.

Desde a apresentação do anteprojecto que antecedeu a aprovação da LTFP que a ruptura com o princípio da filiação foi assumida como uma inovação a introduzir: “salientam-se como principais inovações: […] Estabelecimento de uma regra específica sobre o âmbito de aplicação pessoal das convenções colectivas (escolha do trabalhador quando não sindicalizado) de forma a não serem necessárias portarias de extensão”46. Como razão de ser desta inovação foi ainda expresso que: “tendo em conta as dúvidas que pode colocar a portaria de extensão no sector público, uma vez que o Estado é, ao mesmo tempo, parte na contratação colectiva e a entidade que emite a portaria (regime do RCTFP), optou-se por dispensar as portarias de extensão, criando uma regra diferente de aplicação pessoal das convenções, sem deixar de respeitar o princípio da liberdade sindical. Assim, a convenção pode ter eficácia geral mas essa eficácia geral é afastável por oposição das associações sindicais ou do próprio trabalhador”47.

Perante esta intenção, e no decurso do processo legislativo, os sindicatos expressaram o receio de que a ruptura com o princípio da filiação abalasse o papel dos sindicatos48. Está efectivamente em causa a extensão da eficácia subjectiva dos IRCT negociais mediante mecanismos não negociais, pelo que importa analisar a sua adequação em particular à luz do princípio da liberdade sindical49.

A este propósito, é de notar que a própria admissibilidade dos regulamentos de extensão fora já controvertida por se entender que podem abalar a liberdade sindical na medida em que torne desnecessária a filiação sindical. Gomes Canotilho e Vital Moreira consideram que “por um lado, quanto à possibilidade de extensão em bloco da eficácia dos contractos colectivos […] existem matérias em que constitucionalmente não pode haver discriminações, devendo as

45 Bem como dos trabalhadores que se filiem nas organizações outorgantes durante o período de vigências da convenção – cfr. artigo 371.º da LTFP.

46 Anteprojecto de Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, Nota Prévia, p. 4, disponível em:

http://www.icjp.pt/sites/default/files/cursos/documentacao/apresentacao_anteprojecto_de_lei_geral_do_trabalh o_em_funcoes_publicas_2.pdf, consultado em 30-12-2016).

47 Idem, p. 9.

48 A título de exemplo, o Sindicato dos Trabalhadores do Município de Lisboa – STML na apreciação pública no decurso do processo legislativo que antecedeu a aprovação da LTFP afirmou que: “a possibilidade de adesão a acordos colectivos de trabalho por trabalhadores não sindicalizados numa violação abjecta (mais uma!) da Constituição e num fomento à dessindicalização mais do que declarado” (Contributo para a Apreciação Pública do Proposta Lei Nº 184/XII, disponível em:

http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c324679626d56304c334e706447567a4 c31684a5355786c5a793944543030764e554e50526b46514c305276593356745a57353062334e4a626d6c6a6157463 061585a685132397461584e7a595738764d545a6b4d6a6b304e5441744e3255774f4330305a4441354c574a6b4f446 37459324a6b4f4755325a5456685954526d4c6e426b5a673d3d&fich=16d29450-7e08-4d09-bd87-

cbd8e6e5aa4f.pdf&Inline=true, consultado em 30-12-2016).

49 A propósito desta questão, relembre-se que, no âmbito das relações de emprego público, a consagração da possibilidade de negociar e celebrar acordos colectivos – cujo direito, embora titulado pelos trabalhadores, é exercido em seu nome pelos sindicatos – veio reforçar o papel das associações sindicais relativamente ao regime anterior, no qual as relações de emprego público eram essencialmente reguladas pela lei. De facto, o leque de competências das associações sindicais em sede de negociação colectiva, que incluíam o direito (constitucional) a participar na elaboração da legislação laboral, é agora alargado passando a incluir o direito à contratação colectiva.

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regalias obtidas nas convenções colectivas ser extensivas a todos os trabalhadores; porém, sendo a actividade sindical e a contratação colectiva suportada somente pelos trabalhadores sindicalizados, merece protecção constitucional o seu interesse em reservar para si as regalias que não sejam obrigatoriamente uniformes, sob pena de premiar o fenómeno do «free rider», ou seja, os trabalhadores que tiram proveito da acção colectiva, sem nela se envolverem e sem suportarem os respectivos encargos”50.

Assim, a extensão da eficácia subjectiva de um ACT a trabalhadores filiados em sindicato não outorgante pode ser entendido como uma violação da autonomia colectiva e da liberdade sindical se levarmos em conta que o sindicato não outorgante não quis negociar um ACT ou, tendo negociado, não chegou a acordo com a entidade empregadora. E quanto aos trabalhadores não sindicalizados, defende Júlio Gomes que a “discricionariedade do Ministério do Trabalho na extensão para além do seu âmbito negocial subjectivo das convenções colectivas através de portarias de extensão pode representar um mecanismo contrário à filiação sindical, na medida em que impede que os sindicatos conservem algumas vantagens do resultado da negociação colectiva para os seus filiados”51.

Nestes termos, a liberdade sindical, que constitui um Direito, Liberdade e Garantia dos trabalhadores – beneficiando, portanto, do regime do art. 18.º da CRP –, manifesta-se, nomeadamente, no exclusivo da legitimidade para a contratação colectiva. Como refere Bernardo Lobo Xavier, as convenções colectivas de trabalho “são, desde sempre, a expressão fundamental da autonomia colectiva, entendida como auto-regulamentação constitucionalmente consagrada de interesses entre grupos contrapostos, na medida em que se aceita que são as organizações dos próprios interessados as entidades competentes para disciplinar as relações de trabalho”52.

Nesta medida, poder-se-á entender que o princípio da autonomia colectiva projecta-se, também, no princípio da filiação, pois, nos termos da CRP, “compete às associações sindicais exercer o direito de contratação colectiva, o qual é garantido nos termos da lei” (artigo 56.º, n.º 3). Decorre deste preceito que a contratação colectiva constitui uma garantia dos trabalhadores “a efectivar pelas associações sindicais, e só por elas”53. Neste sentido, Barros Moura destaca que a norma convencional é produto conjugado do “acordo de vontades entre entidades representativas de grupos sociais contrapostos” com os “requisitos e limites legais”,

50 CANOTILHO, J.J. Gomes, MOREIRA, Vital – Constituição da República Portuguesa…, p. 748. Ainda segundo estes autores, “parece líquido que não existe qualquer violação do direito de contratação colectiva quando a regulamentação administrativa venha colmatar a ausência de sindicato (ou a sua debilidade) ou a recusa ilegítima de contratação por parte das entidades patronais”. Mas, por outro lado, “não é evidente o fundamento constitucional para a regulamentação administrativa como sucedâneo ou complemento da contratação colectiva, limitando-se a constituição a mencionar as convenções colectivas de trabalho e a referir o problema da eficácia das suas normas (n.º 4), mesmo aí sem sugerir a sua extensão por via regulamentar” (idem, p. 745-746).

51 GOMES, Júlio Manuel Vieira – O Código do Trabalho de 2009…, pp. 166-167. Júlio Gomes considera ainda que “a sindicalização não pode comportar apenas custos, mas tem que trazer algumas vantagens para os filiados, vantagens que, no entanto, são quase sistematicamente suprimidas pelo nosso sistema jurídico, porque estendidas aos não filiados” (idem).

52 XAVIER, Bernardo Lobo – As fontes específicas de Direito do Trabalho e a superação do princípio da filiação, p. 117-153

53 FONSECA, Guilherme – Os acordos colectivos de trabalho na administração pública e o princípio da autonomia colectiva, p. 2. No mesmo sentido, Cfr. CANOTILHO, J.J. Gomes; MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa… p. 744.

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significando que, “isoladamente, nem a vontade das partes, nem a vontade do Estado, são aptas a produzir este fenómeno singular do contrato colectivo – fonte de direito”. Para desenvolver a sua posição, o autor procura identificar as razões que levam o Estado a reconhecer a convenção colectiva como fonte de direito: “O que, fundamentalmente, o Estado protege é a aptidão da acção sindical para defender os interesses dos trabalhadores, contrapondo ao maior poderio económico e social dos empregadores a determinação colectiva das condições de trabalho. […] Ao atribuir à convenção colectiva valor de fonte de direito o Estado visa tutelar um poder sindical para auto-disciplinar o interesse colectivo da categoria. Esta parece ser a configuração da negociação colectiva na actual ordem jurídico- constitucional portuguesa caracterizada pela afirmação e garantia de liberdade sindical dos indivíduos e das organizações de trabalhadores face ao Estado […] e pela consagração da «competência» dos sindicatos para defenderem os interesses colectivos dos trabalhadores, nomeadamente, através da disciplina das relações individuais de trabalho por convenção colectiva […] com base no reconhecimento do direito de contratação colectiva, com natureza de direito fundamental, significativamente, apenas aos trabalhadores”54.

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