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O conceito de «Constituição Laboral»

Capítulo I – Caraterização e qualificação jurídica do objeto de estudo

1. O conceito de «Constituição Laboral»

Na senda de outras experiências constitucionais estrangeiras, a Constituição da República Portuguesa de 1976 reflete claramente o fenómeno da «constitucionalização do direito do trabalho»1, ao ter consagrado de uma forma particularmente rica2, um conjunto de preceitos que disciplinam matéria laboral, aplicável quer no contexto das relações laborais privadas, quer no domínio do direito do emprego público.

Esta constatação permite que a maioria da doutrina reconheça a existência, na nossa CRP, de uma «Constituição Laboral» ou «Constituição do Trabalho», entendida em sentido amplo, como o “conjunto de preceitos constitucionais com incidência directa ou indirecta

no domínio laboral”3. Compreendidos neste conceito extremamente heterogéneo, e sem

prejuízo de ulteriores considerações, podemos desde já, divisar:

− Direitos fundamentais dos trabalhadores4 (por regra extensíveis aos sujeitos titulares de relações jurídicas de emprego público5, a menos que a própria Constituição autorize a lei a estabelecer-lhe restrições – artigo 270.º da CRP)6;

− Entre estes direitos fundamentais, parte encontra-se sob a égide dos direitos, liberdades e garantias – quer de natureza pessoal (artigo 47.º da CRP), quer dos

1 Cfr. Martinez, Pedro Romano, Direito do Trabalho, Coimbra: Almedina, 2015 (7.ª ed.), nota de rodapé n.º 277, p. 162; e Caupers, João, Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, Coimbra, 1985, pp. 73 e 74. 2 Cfr. Bernardo Xavier, “A Constituição Portuguesa como fonte de direito do trabalho” in Estudos de Direito do Trabalho em Homenagem ao Prof. Manuel Alonso Olea, Coimbra: Almedina, Março 2004, pp. 163-203. p. 164. 3 Cfr., por todos, Palma Ramalho, Maria do Rosário, Tratado de Direito do Trabalho, Parte I – Dogmática Geral, Coimbra: Almedina, 2015 (4.ª ed.), p. 175.

4 A interpretação do conceito constitucional de «trabalhador(es)» está longe de ser unívoca. No entanto, a maioria dos Autores tende a concordar com João Caupers, para quem “o conceito constitucional de trabalhador, enquanto titular de direitos, corresponde à noção de trabalhador subordinado” ou trabalhador por conta de outrem. Cfr. Caupers, João, ob. cit., p. 80. No mesmo sentido, cfr. Madeira de Brito, Pedro, “O Contrato de Trabalho da Administração Pública e Sistema de Fontes”, Tese de Doutoramento em Ciências Jurídicas, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; [s.n.], 2010, pp. 199 e 200.

5 Cfr. Palma Ramalho, Maria do Rosário, ob. cit., p.

6 Cfr. Caupers, João, ob. cit., p. 90 e ss.; e Sousa, Nuno J. Vasconcelos Albuquerque, “A reforma do emprego público em Portugal” in Para Jorge Leite - Escritos Jurídico-Laborais, Vol. I, [coord.] Reis, João, Amado, Leal [et. al.], Coimbra Editora: 2014 (1.ª ed.), (pp. 999-1033), pp. 1000 e 1001.

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trabalhadores (artigos 53.º a 57.º da CRP) –, ao passo que outros surgem positivados como direitos económicos, sociais e culturais, também designados por direitos sociais – artigos 58.º e 59.º da CRP (sem prejuízo de alguns dos seus preceitos assumirem uma natureza análoga a direitos, liberdades e garantias7);

− De entre todos, encontram-se direitos que tutelam posições jurídicas individuais, pese embora a grande maioria apresente “um caráter essencialmente coletivo ou organizativo”8.

Em maior ou menor medida, procuraremos que todos sejam alvo da nossa atenção.

De salientar, porém, que a autonomização do conceito «Constituição Laboral» não reúne o consenso generalizado da doutrina. Efetivamente, o constitucionalista Gomes Canotilho defende que “A Constituição não dedica qualquer capítulo especial a uma constituição do

trabalho”. O A. considera que os conceitos de «constituição do trabalho», assim como

«constituição económica» ou «constituição financeira», apenas têm um valor

“essencialmente heurístico e operativo”, não se devendo através dos mesmos isolar

realidades autónomas, visto que a interpretação constitucional deverá sempre ter em conta o “contexto global da constituição”9.

Embora sejamos recetivos à advertência deste Ilustre Constitucionalista para a necessidade de interpretação da CRP enquanto um todo/uma unidade de sentido10, não nos parece que o conceito de Constituição Laboral seja de repudiar por esta razão. Primeiro porque reúne já uma certa tradição na doutrina (nacional e estrangeira) e, além disso, tem o particular préstimo de delimitar o objeto do nosso estudo, servindo o propósito de clarificar que vamos incidir a nossa análise sobre as normas constitucionais que titulam posições jurídicas próprias dos trabalhadores11.

1.1. Razões subjacentes à sua proeminência constitucional e posições críticas

Os motivos avançados para a especial importância conferida pela nossa Lei Fundamental ao fenómeno laboral prendem-se com razões de natureza económico- social, e com o próprio contexto histórico e político pós-revolucionário em que a Constituição de 1976 foi aprovada. Palma Ramalho aponta, assim, quanto às primeiras razões, a relevância do trabalho enquanto fator de produtividade crucial para a organização económica do Estado, e

7 Cfr. Miranda, Jorge, “Os Direitos dos Trabalhadores na Constituição Portuguesa” in Estudos Vários sobre Direitos Fundamentais, Princípia Editora: Outubro de 2006 (1.ª ed.), (pp. 503-507), pp. 504 e 505.

8 Cfr. Lopes, Sónia Kietzmann, “Direitos de Personalidade do Trabalhador à luz do Código do Trabalho”, in Direitos Fundamentais e de Personalidade do Trabalhador, E-book do Centro de Estudos Judiciários (2.ª ed.), [coord.] Reis, João Pena dos, Coleção de Formação Inicial, p. 17. Mais adiante teremos oportunidade de fazer uma distinção mais rigorosa entre direitos de exercício coletivo e «direitos fundamentais coletivos». Cfr. ponto 2.1 do presente capítulo.

9 Cfr. Gomes Canotilho, J.J., Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra: Almedina, 2003 (7.ª ed), p. 346.

10 Advertência aliás repetida por outros Autores. Cfr. neste sentido, Martinez, Pedro Romano, ob. cit., p. 162 e Bernardo Xavier, ob. cit., p. 165.

11 Isto é “direitos que só a eles são reconhecidos”. Cfr. Abrantes, José João, O Direito do Trabalho e a Constituição, Associação Académica da Faculdade de Lisboa, 1990, p. 13.

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relativamente às segundas, a necessidade de afirmação dos direitos fundamentais dos trabalhadores, particularmente os que tinham sido erradicados pela ordem corporativista (maxime o direito à greve), sentindo-se em relação a outros, a necessidade de os

“reconstruir em termos conformes com a nova ordem jurídico-constitucional (assim, a autonomia coletiva, o direito de contratação coletiva e o associativismo sindical)”12.

Subjacente ao bloco normativo-constitucional dedicado à matéria laboral, encontramos portanto um tom proclamatório típico do período pós-revolucionário e uma ideologia de emancipação das classes trabalhadoras, cujos direitos tinham sido fortemente cerceados pelo regime ditatorial vigente até 25 de Abril de 197413.

Embora cientes deste particular contexto de elaboração da Constituição em 1976, diversos Autores não se coíbem, no entanto, de apontar ao legislador constitucional um certo excesso ou prolixidade na previsão de certos direitos fundamentais dos trabalhadores, designadamente em matéria de direito coletivo (v. artigos 54.º, 55.º e 56.º da CRP). Em sua opinião, estes preceitos não apresentam dignidade constitucional suficiente14 para figurar no catálogo dos direitos fundamentais, possuindo um “pendor quase regulamentar”15.

Sem prejuízo de, mais adiante, nos debruçarmos mais detidamente sobre o enquadramento dogmático dos direitos fundamentais dos trabalhadores16, Vieira de Andrade considera – a propósito da quase totalidade das normas supra indicadas17 – que não estamos perante autênticos direitos fundamentais em sentido material, isto é, “posições subjectivas

individuais fundamentais”, na medida em que não se tratam de direitos políticos dos

cidadãos, nem concretizações do direito de participação na vida pública (previsto no art. 48.º da CRP), nem são tão-pouco direitos dos trabalhadores exercidos por intermédio dos seus representantes (como é o caso do direito à contratação coletiva do art. 56.º, n.º 3 da CRP)18. Não obstante, o A. considera que se tratam de “garantias institucionais dos direitos fundamentais dos trabalhadores”, que devendo ser objeto de uma interpretação

atualista, não podem deixar de ser encarados como “parte integrante da «matéria» dos

direitos fundamentais”19.

Por nossa parte, partilhamos da opinião de Gomes Canotilho, que alerta para o perigo de uma potencial leitura restritiva do catálogo de direitos fundamentais (in casu, dos trabalhadores), no sentido de nele se identificarem direitos fundamentais meramente formais, em face de outros que seriam materiais (e formalmente) constitucionais. Desde

12 Cfr. Palma Ramalho, Maria do Rosário, ob. cit., p. 176.

13 Bernardo Xavier diz-nos que “[Os trabalhadores] necessitavam – no momento histórico – da definição e da titularidade de direitos irreversíveis”. Cfr. Bernardo Xavier, ob. cit., p. 170.

14 Cfr. Martinez, Pedro Romano, ob. cit., p. 169. 15 Cfr. Palma Ramalho, Maria do Rosário, ob. cit., p. 177. 16 Cfr. ponto 2 do presente capítulo.

17 Apenas isenta desta crítica o art. 56.º, n.º 3 da CRP, com o fundamento que a seguir se explica no corpo do texto. 18 Para o A. estão em causa “poderes concedidos a certas entidades com o objetivo imediato de concretizar opções de organização económico-social (da empresa: art. 54.º, n.º 5, alíneas b), e) e f)), administrativa (artigo 56.º, n.ºs 2, als. b) e c)) ou política (artigos 54, n.º 5, al. d) e 56.º, n.º 2, al. a))”. Cfr. Vieira de Andrade, J. C., Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra: Almedina, 2012 (5.ª ed.), pp. 88 e 89.

19 Cfr. Vieira de Andrade, J. C., ob. cit., p. 90.

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logo porque esta classificação não encontra acolhimento positivo ao nível do texto constitucional, e além disso é destituída de relevância prática, uma vez que a Constituição consagrou, “com o mesmo título e a mesma dignidade” os dois tipos direitos20.

Por outro lado, não podemos deixar de concordar com a proposta supra enunciada de Vieira de Andrade quanto à necessidade de uma leitura atualista de muitos dos preceitos constitucionais, designadamente em matéria de direitos fundamentais dos trabalhadores21, sob pena de os mesmos terem caducado, ou pelo menos, se terem esvaziado de sentido normativo no atual contexto globalizado e flexível do mercado laboral.

1.2. Consequências jurídicas decorrentes da sua consagração

Ocupando o lugar cimeiro na pirâmide hierárquico-normativa de direito interno, o facto de a nossa Constituição contemplar um bloco normativo relativamente denso sobre matéria jus-laboral, acarreta três importantes consequências jurídicas, quer para o direito do trabalho, quer para o direito do emprego público.

Primeiro, condiciona a produção normativa infraconstitucional22, impondo “valorações axiológicas significativas”23 a que o legislador terá necessariamente de atender, sob pena

de inconstitucionalidade.

Segundo, determina que se proceda a uma interpretação da legislação ordinária conforme à Constituição24. De acordo com Gomes Canotilho, o princípio da interpretação conforme com a Constituição “é um instrumento hermenêutico de conhecimento das normas

constitucionais que impõe o recurso a estas para determinar e apreciar o conteúdo intrínseco da lei”25. Para este A., não se trata de um mero “princípio de conservação de

normas”, que usualmente é interpretado apenas no sentido do favor legis, ou seja, uma lei

só deverá ser declarada inconstitucional quando não puder ser declarada conforme a Constituição, sendo verdadeiramente um “princípio de prevalência normativo-vertical” ou de

“integração hierárquico-normativa”26.

Por fim, “os direitos dos trabalhadores, das comissões de trabalhadores e das associações

sindicais”, terão de ser respeitados pelas leis de revisão constitucional, constituindo

assim, um dos limites materiais de revisão constitucional expressamente previstos no art. 288.º, al. e), da CRP27. Por se entender que estas matérias integram o “cerne material da

20 Cfr. Gomes Canotilho, J.J., Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, (7.ª ed.), pp. 406 e 407. 21 Alertando também para a necessidade de evitar “uma leitura cristalizada na história dos tópicos constitucionais” cfr. Bernardo Xavier, ob. cit., p. 173.

22 Cfr. Palma Ramalho, Maria do Rosário, ob. cit., p. 177. 23 Cfr. Palma Ramalho, Maria do Rosário, ob. cit., p. 181.

24 Cfr. Martinez, Pedro Romano, ob. cit., p. 173; e Palma Ramalho, Maria do Rosário, ob. cit., p. 181. 25 Cfr. Gomes Canotilho, J.J., ob. cit., p. 1310.

26 Cfr. Gomes Canotilho, J.J., ob. cit., p. 1310.

27 Cfr. Bernardo Xavier, ob. cit., p. 191; Martinez, Pedro Romano, ob. cit., p. 172.

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ordem constitucional”, são furtadas pela própria Constituição à disponibilidade do poder

de revisão do legislador constitucional28.

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