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“Le verbe LIRE, comme le verbe AIMER, ne supporte pas l’impératif.» Daniel Pennac (1993: 11)

Retomando uma ideia presente e sujeita a reflexão anteriormente, sobre a abrangência do ato de ler, podemos reiterar que ler surge de muitas formas sendo com muitas finalidades, é uma condição já defendida por Ávila (2008), ao atribuir importância vital à leitura para integração social e profissional do indivíduo. Por conseguinte, um leitor experimentado e proficiente cria competências multifacetadas, tornando-se num ser ativo e capaz de intervir com préstimo na sociedade, “o leitor compreende e valoriza o que lê em função de conhecimentos prévios, de experiências vividas, sendo capaz de tomar decisões quanto às hipóteses a considerar nos caminhos da compreensão” (Sequeira, 1999: 407). A aprendizagem da leitura (e também da escrita) está condicionada por diversos fatores, que poderão contribuir para um bom ou mau desempenho, nas suas aprendizagens e, para o consequente desenvolvimento eficaz da linguagem escrita, deste modo a leitura deve ultrapassar a simples representação gráfica e descodificação de símbolos, como já referimos, é antes de tudo, a compreensão e entendimento da expressão escrita. Ler, muitas vezes, proporciona prazeres múltiplos e as razões porque decidimos fazê-lo são extensas. Morais (1997: 12) refere que “Lemos para saber, para compreender, para refletir; lemos também pela beleza da linguagem, para nos comovermos, para nos inquietarmos. Lemos para partilhar. Lemos para sonhar e para aprender a sonhar”. Mas, será que compreendemos, sempre, o texto lido? Partilhando da opinião de Sardinha (2005:73), “A problemática da compreensão da leitura está, obviamente, ligada ao analfabetismo funcional. Não há leitura sem compreensão”. Saber ler é, desde logo, saber compreender o texto escrito, sendo que sem compreensão não existe processo de leitura, logo não temos leitores críticos capazes de formar juízos.

A partir de meados do século XIX, na Europa, a questão da leitura passou a assumir-se como um problema social, pois até aí leitura era encarada como um entretenimento, uma forma de ociosidade, para as mulheres, e como uma extensão de ofício, para os homens; Portugal, não acompanhou os índices de letramento do resto da Europa, como, aliás, já aludimos no capítulo anterior. Com Salazar, saber ler, escrever e contar era suficiente para a população portuguesa, que não devia ambicionar mais do que isso. Resultados preliminares dos censos realizados à população portuguesa, em 2011, constatam que, apesar dos esforços, ainda há uma grande parte da população que não tem qualquer grau de ensino o que será

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sinónimo de não saber ler, nem escrever, sendo analfabetos ou iletrados73. Na sociedade hodierna, a leitura passou a ser um problema social, já que ela condiciona o desenvolvimento económico e o desempenho profissional e social dos indivíduos que compõem a sociedade. Há que ler e aperfeiçoar as técnicas, para responder às constantes exigências da sociedade, apostar no reforço da leitura, não só de jovens, onde é necessário (re)educar a disciplina da leitura, como também nos mais velhos, sobretudo nos adultos, promovendo uma “reciclagem eventual (…) exigir um nível de leitura que nunca possuíram ou já não possuem” (Morais, 1997: 20).

A passagem do tempo levou a uma mudança de atitude na forma de encarar e aceitar a leitura, vista como um ato meramente recetivo, ao invés do pretendido ato interpretativo, que envolve texto, autor e leitor. Desta forma, atribuímos competências extensas ao leitor, passando a ter um papel essencial na receção da mensagem do texto. Para que um leitor se possa assumir com autoridade literária, deverá demostrar competências que abarquem várias dimensões, que Mialaret (1997) atribui à capacidade de transformação de um conteúdo em algo com sentido, “"saber ler é ser capaz de transformar uma mensagem escrita numa mensagem sonora segundo leis bem precisas; é compreender o conteúdo da mensagem escrita, e de julgar e apreciar o seu valor estético". Por seu lado, Bonboir (1970) defende que o ato de ler remete para a capacidade de inferência textual, "é ser capaz de extrair as inferências por um texto e de lhe dar alma; é recriar ou criar o significado de uma mensagem até aí implícita" (Viana & Teixeira, 2002, p. 13).

Sardinha (2007) acrescenta que o leitor é tanto mais competente quanto desenvolver hábitos de leitura para a vida, na medida em que as leituras continuadas permitem o desenvolvimento das suas estruturas linguísticas, cognitivas e culturais, sendo que o processo de leitura deverá ter um treino, uma continuidade, fatores essenciais para o desenvolvimento da competência da leitura linguística, imprescindível para a descodificação da mensagem do texto literário. Mas, nesta perspetiva, qual a relação estabelecida entre a componente linguística (comunicativa), que equivale ao conhecimento que o sujeito falante tem da língua, da sua estrutura fonológica, morfossintática e semântica e entre a competência literária, que revela o grau de conhecimentos acerca do texto literário para se poder apreender o sentido? À partida, qualquer falante deve ser detentor da competência linguística74, condição que lhe confere competências para poder ‘ler’ um texto literário. É esta competência/ performance

73 Relativamente a este termo – iletrado – a UNESCO (Revised Recommendation Concerning the

International Standardization of Educational Statistics. Paris) considera iletrado todo o indivíduo que

não revela capacidades necessárias para se envolver em atividade de leitura, escrita ou cálculo adequadas para o desenvolvimento da sua comunidade. Consideramos, porém, que a expressão apresenta alguma ambiguidade, pois muitas vezes tende-se a simplesmente analisar estatísticas sem nos demorarmos com a faixa etária. As dificuldades sentidas na leitura, pelos mais velhos, é muitas vezes compreensível pela falta de treino destes para com o ato de ler.

74 Conceito criado a partir do conceito de Noam Chomsky, onde teoriza: “a necessidade de a teoria

linguística geral explicar as capacidades mentais que possibilitam a aquisição da linguagem e que originam a criatividade linguística observável nos falantes de qualquer língua” (Aguiar e Silva, 1977: 38). Esta teoria preconizava que esta competência, com base na chamada gramática generativa, a competência literária não pode ser adquirida tal como o é a língua, porque podemos comunicar verbalmente sem termos sido formalmente ensinados. Para isso, existe na natureza dogmática, ao invés da competência literária.

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linguística, que é comum a todos os falantes de uma determinada língua, mas que não habilita a analisar criticamente um texto literário, ou a apreender o sentido. De facto, a competência linguística está para Chomsky, como a competência literária está para Teun Van Dijk, no entender de Aguiar e Silva (1977: 124), “o conceito de competência literária proposto por van Dijk apresenta uma inovação relevante: trata-se de uma competência

textual, isto é, de um saber que permite produzir e compreender textos”. Van Dijk atribui

aos falantes nativos a competência literária textual que lhes atribui numa dupla noção: a de emissores do texto e a de recetores.

Quando portador de competências que lhe permitam ler e inferir acerca do sentido textual, será tal como Cerrillo (2006: 34) caracteriza o bom leitor “aquele que lê livremente diversos tipos de textos, em situações diversas, sendo capaz de discriminar, refletir e opinar acerca dos conteúdos que leu”, seleciona, ambiciona a ler, escolhe temas e critica, isoladamente, aquilo que leu Sloan (1991) considera que para se ser um bom leitor não é só necessário ler, mas, principalmente, gostar de o fazer, com vontade e com prazer. Para Sim- Sim & Viana (2007: 58) “a compreensão da leitura, qualquer que seja o tipo de texto, implica a mobilização de estratégias que permitam desenvolver e interpretar o significado de frases, parágrafos e palavras em sentido literal ou figurado, facultando o uso adequado da informação obtida na construção do sentido total ou parcial do texto”. O leitor competente deverá ler, inferir, analisar, “resumir, questionar, clarificar e predizer” (Sardinha, 2007: 2). Em continuação, a mesma autora defende ainda que a continuidade dos hábitos de leitura aumenta a proficiência, além de desenvolver estruturas linguísticas, cognitivas e culturais. Podemos, então, criar um leitor modelo, partindo das palavras de Eco (1985: 77) como tendo “uma série de comportamentos interpretativos que os leitores provavelmente manifestarão nos processos de interação com o texto; esta teoria, também chamada de cooperação interpretativa, parte do princípio que qualquer texto é um mecanismo económico repleto de “espaços em branco” e “elementos não ditos”, competirá ao leitor, com base na sua competência enciclopédica e, à luz da relação de diálogo que estabelece com o texto, completar.”. Neste sentido, o autor entende que o leitor modelo deve usar todas as competências que tem ao seu dispor, para se envolver com a leitura e com o texto, capaz de beber-lhe o sentido, expor opiniões, tendo na leitura um ponto de partida para entender o mundo que o rodeia e, enquanto ser pensante e detentor de uma posição, analisar a sociedade, construir uma identidade pessoal e fruir da liberdade de escolha de leituras.

“A leitura é antes de mais uma janela para um tempo e para um espaço aberto ao infinito, mas se nos olvidarmos de como se abre a janela corremos o risco de encalhar no ferrolho e de deixar para sempre manietado o prazer de abraçar as palavras escritas.” (Sim- Sim, Ramos & Santos, 2006: 74). Assim sendo, há que dar continuidade a esta ação, caso contrário perder-se-á prazer, competências e atualizações de termos, autores, enredos e contextos; o leitor possuidor de estruturas e competências linguísticas e literárias apodera-se do sentido do texto, identifica a estrutura textual, a intenção semântica do autor,

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contextualiza o assunto do texto e entende-o partindo das suas informações enquanto leitor, claramente influenciado pelos fatores sociais e culturais75.

Figura 2 - Modelo contemporâneo de compreensão na leitura (Giasson, 1993: 21)

Partindo do esquema acima, referimo-nos à autora (Giasson, 1993) que considera uma interceção triádica entre os intervenientes do processo comunicativo; na leitura o leitor utiliza as estruturas ao seu dispor para apreender o significado do texto, mas, influenciado pelo contexto, ele compreende os elementos que não fazem parte do texto, e, simultaneamente, apropria-se deles, influenciado pelo contexto, quer ele seja psicológico, social ou físico. Por seu lado, para Carvajal e Ramos (2001a: 19), ler significa não só

compreender, mas também interpretar, na medida em que “a compreensão é relativa e é

possível mais de um significado interpretativo”. Na interação do leitor com o texto, o primeiro assume um papel ativo na interpretação de cada texto e na atribuição de significado, recorrendo às suas vivências e referências para a (re)construção do sentido textual. “Ler implica uma personalização da leitura, na medida em que o sujeito leitor atribui um significado pessoal aos textos, o que lhe permite compreender melhor o mundo que o rodeia” (Pereira, 2011: 31).Saber ler torna-se, assim, numa ferramenta preciosa que permite ao leitor aperfeiçoar o sistema linguístico e comunicativo abrindo-lhe portas para uma série infindável de experiências e aprendizagens, sendo o veículo, provavelmente, mais válido, fidedigno e célere de consolidar conhecimentos, centrando no leitor toda a sua vitalidade e compromisso, para com o texto. Bakhtin (1996) argumenta que só há compreensão da língua dentro da qualidade contextual, pois só o contexto real de enunciação torna possível a concretização da palavra. O sentido do texto é, pois, determinado pelo contexto, havendo tantas significações possíveis quantos forem os contextos possíveis e quanta maior for a proficiência do leitor.

Porém, a competência da leitura não se adquire de forma espontânea, ao invés da competência linguística, impondo um ensino durativo que não termina no domínio do grafema-fonema, que se inicia no decorrer do ensino formal e prolonga-se pela vida fora,

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através da apropriação do livro e do texto; logo, a ação de aprender a ler exige prática e sistematização, por ser uma capacidade que se aprende, tal como defendem Sim-Sim, Duarte e Ferraz (1997:27): “ao contrário da compreensão oral a leitura não é nem uma atividade natural, nem de aquisição espontânea e universal. O seu domínio exige um ensino direto que não se esgota na aprendizagem ainda que imprescindível, da tradução da letra som, mas que se prolonga e aprofunda ao longo da vida do sujeito”.

Ler, é, então, decifrar algo, ter competências para o fazer, chegando ao estado de capacidade de uma leitura fluente. Se lemos bem, consequentemente, compreendemos melhor a realidade à nossa volta. Esta leitura fluente resulta da interação de todas estas operações, o que a torna numa atividade psicológica particularmente complexa (Viana & Teixeira, 2002). As autoras vão mais longe e particularizam três fases da leitura: a leitura mecânica, a leitura compreensiva e a leitura crítica. A primeira refere-se a um simples decifrar e interpretar de sinais e signos, de maneira quase automática: é o início, mas não o fim, pois o domínio das práticas de leitura exige uma apropriação maior e mais abrangente; a segunda, já implica o ato mental de captação da mensagem que esses sinais encerram, sendo uma fase em que ninguém se pode considerar bom leitor, havendo que dominar técnicas, métodos de decifração que vão para além do entendimento do sinal; a terceira fase supõe a formulação de um juízo, relativamente ao enunciado lido, decifrado e criticado, por parte do leitor. Sem uma posição crítica perante uma mensagem, o intelecto humano seria um autómato comandado, sem vontade própria, ou sem razão (Rodrigues, 1991). O leitor ao alcançar estas três etapas tem, em seu poder, um meio de compreensão e expressão idóneo para a sua educação integral, sendo este o propósito da leitura ao permitir abrir horizontes e relacionar a comunicação humana e a linguagem oral, capacidade inata do ser humano, para entender o mundo exterior em toda a sua dimensão e a capacidade comunicativa.

Muitos são os autores e teorias subjacentes ao uso da leitura e também da escrita, pelo indivíduo, portador de competências e, consequentes implicações pedagógicas, que este comportamento envolve. Sublinhamos apenas dois, por considerarmos serem os condutores e criadores de toda uma rede de teorias, daí adjacentes – Piaget e Vigotsky76; o primeiro conduzindo as suas teorias para um campo geneticista, postula a sua premissa de que a criança é ativa, na construção do seu conhecimento, assumindo-se como o centro da sua aprendizagem, pois ela é o resultado da ação; o segundo, teorizador, baseia o seu estudo na pedagogia, já que só o ser humano tem capacidade de transformar o meio para o seu próprio fim, acreditando que é na escola que se constroem a maioria dos conhecimentos e

76 Várias são as teorias subjacentes ao desenvolvimento intelectual da criança. Além de Piaget e

Vigostsky, salientamos a de Downing e Leong (1982), criada a partir dos estudos de Piaget, sendo também chamada de teoria da clareza cognitiva, apresentando, depois três fases de apreensão de qualquer aprendizagem: fase cognitiva, fase do domínio e fase da automatização. Alves-Martins & Niza (1998) também consideram que na aprendizagem da leitura subsistem estas fases, a primeira como sendo a fase cognitiva, isto é qual a utilidade de saber ler e escrever e como se relaciona com o oral; fase do domínio, treino das operações necessárias à leitura e fase da automatização, as estratégias são utilizadas de forma inconsciente, não nos apercebemos que da sua atualização. Existem ainda as perspetivas psicogenéticas, de uma forma bastante genérica, entende-se que no ato da escrita está a génese do saber ler/escrever.

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significações sociais, assumindo que a sociedade é o ponto crucial para a aprendizagem sendo esta o produto final da integração dos fatores pessoal e social. A partir desta realidade, a criança aprende a realidade, desenvolvendo as capacidades: neste caso, a linguagem oral é desenvolvida por imitação, numa primeira fase, e só mais tarde consegue aprender a linguagem escrita. Uma vez que tanto uma, como a outra, diferem na estrutura e no funcionamento, a linguagem escrita exige um nível de abstração grande. Mas, para que as práticas de leitura se tornem profícuas têm de ser adequadas ao público-alvo visto que “pode afetar positiva ou negativamente os interesses da criança e o processo da literacia emergente, dependendo do grau de prazer que se venha a gerar na situação de leitura e do carácter efetivo, ou não, que emana da interação entre o adulto e a criança nesse ato conjunto de leitura “ (Pinto, 2010)

A consciencialização, por parte de entidades competentes da importância da leitura, da sua promoção ativa e da criação da competência leitora competente veio confirmada, após divulgação dos resultados dos vários relatórios PISA 77, onde se concluiu que a situação média

dos alunos portugueses, ao nível da literacia na leitura, é preocupante. O valor da média portuguesa situa-se muito abaixo da média da OCDE e muito distanciado dos valores dos países que obtiveram melhores classificações médias (OCDE, 2001). Ciclicamente, a OCDE recolhe informações acerca das competências dos alunos dos países participantes, tendo como único objetivo avaliar o conhecimento, as competências e as atitudes que podem revelar as mudanças em curso nos currículos dos vários países, indo além da abordagem escolar para a utilização dos conhecimentos em tarefas quotidianas (GAVE, 2010).

Realizou-se, em 2000, o estudo em literacia de leitura. Em 2003, foi a vez da literacia de matemática; em 2006, literacia científica e em 2009, foi, novamente, a vez da leitura, registando-se uma aumento de competências, relativamente a 2000. Portugal aproxima-se, assim, dos países com maior percentagem de desempenho de nível 3.

77 Designa-se por PISA- Programme for International Students Assessment o estudo internacional,

promovido pela OCDE em 1997, para aferir a capacidade dos jovens de 15 anos usarem conhecimentos na vida real e acerca da vida real comparando resultados entre vários países industrializados. No PISA, (2000) a tónica do estudo centrou-se no domínio da leitura.

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