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A liquidação como predadora da eficiência: alguns casos concretos

CAPÍTULO 1 – O PARADOXO DA EXECUÇÃO

1.5. A liquidação como predadora da eficiência: alguns casos concretos

Este não é um libelo contra a liquidação, muito embora, conforme demonstrado, ela possa ser um obstáculo à duração razoável do processo. Aliás, existe até quem imagina o desaparecimento desse instituto. Nesse sentido, Olavo de Oliveira Neto:

Embora não seja possível prever o que será de um determinado instituto jurídico no futuro, não passando qualquer afirmação peremptória de um mero exercício de adivinhação, o estudo das sucessivas legislações que o disciplinam pode indicar ao estudioso qual é a tendência para o seu futuro perfil. Quando se observa a redução do âmbito da aplicação do instituto sua tendência é a

49 NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil.

Novo CPC. Lei 13.105/2015. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1249.

50 Em razão da informatização do Poder Judiciário, todas as informações relativas aos casos descritos neste

item podem ser obtidas junto aos sites do respectivo tribunal, sendo suficiente para a pesquisa o número do processo.

eliminação. Mas se há uma ampliação do seu âmbito de aplicação, então a possibilidade da sua permanência e bastante provável. Empregando essa técnica já arriscamos afirmar que no futuro o sistema processual não contará mais com a possibilidade da sentença ilíquida e, por consequência, dar-se-á o desparecimento da liquidação de sentença [...].51

Sem prejuízo disso, fato é que em algumas situações ela pode ser necessária. Todavia, a experiência demonstra que o seu uso tem sido feito de forma desvirtuada, na medida em que, não raramente, muitas das discussões que são travadas na liquidação poderiam ter sido realizadas na fase de conhecimento. As discussões, então, não giram em torno do quantum debeatur ou do fato novo, mas de circunstâncias que deveriam ter sido debatidas e solucionadas na fase de conhecimento.

Sem identificação adequada, por exemplo, do dano, o processo acaba se arrastando de forma indevida nos “escaninhos” do Judiciário. A liquidação, na maioria das vezes, transforma-se em uma fase na qual o debate gira em torno da compreensão da própria condenação. Pior: muitas vezes, em razão da dubiedade da decisão judicial, a qual opta por uma decisão ilíquida, os valores acabam chegando a números estratosféricos.

Foi o que ocorreu, por exemplo, no Processo nº 0024182- 55.2017.8.19.0000, que tramitou na Comarca de Niterói (RJ). Na origem, tratava-se de uma simples ação de exibição de documentos cumulada com pedido de indenização por danos materiais e morais. A ação foi proposta em 2008 e o trânsito em julgado da fase de conhecimento ocorreu em 2012. Ou seja, passaram-se quatro anos de processo e mesmo assim o Estado-Juiz não foi capaz em prolatar uma sentença líquida.

A fase de liquidação se iniciou em 2012 e, passados sete anos, ainda não chegou a seu termo, pois pende decisão do Superior Tribunal de Justiça. A fase de “provas” (entendendo-se a liquidação como postergação da perícia) já demora mais tempo se comparado à fase de conhecimento. Há ainda um agravante: a disparidade de números, uma vez que o credor diz ter direito a R$ 140 milhões de reais e o devedor afirma ser a liquidação igual a zero. Nas instâncias ordinárias, o devedor foi vencedor nas

51OLIVEIRA NETO, Olavo. Poder geral de coerção. Tese (Livre docência em direito processual civil).

suas alegações, reconhecendo-se que nada era devido, o que só demonstra que a sentença de procedência da fase de conhecimento foi prolatada com deficiência, pois se não houve dano, consoante a alegação do réu e decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, o pedido indenizatório não deveria ter sido acolhido.

No Processo nº 1004557-14.2014.8.26.0037, em trâmite na Comarca de Araraquara (SP), a situação não foi muito diferente. O autor ajuizou ação pleiteando reparação por perdas e danos em razão do encerramento indevido da sua conta corrente. O pedido foi julgado procedente, mas com sentença ilíquida, remetendo-se a uma posterior liquidação por artigos, conforme a dicção do Código de Processo Civil vigente à época da prolação da sentença. A ação foi ajuizada em 2014 e transitada no mesmo ano. Portanto, foi uma tramitação rápida, pois houve revelia. A fase de liquidação teve início em 2014 e ainda não se encerrou. Aliás, a liquidação propriamente dita ainda não foi deflagrada, porquanto aguarda decisão do Superior Tribunal de Justiça para definir a sua forma: arbitramento ou pelo procedimento comum.

Nessa ação, o autor diz ser credor de valor superior a R$ 100 mil reais. O réu, por sua vez, alegou não ser devedor de nada. Portanto, defende uma liquidação igual a zero. O Juízo em primeira instância não acolheu em definitivo a defesa do réu, mas mandou o credor demonstrar a origem do prejuízo; já o credor preferiu discutir aspectos processuais e não juntou documento comprobatório do alegado. Novamente, será um processo que ficará por longos anos no Judiciário. De nada adiantou a sentença da fase de conhecimento, prolatada em menos de um ano.

Em Pernambuco, Comarca de Santa Cruz do Capibaribe, Processo nº 000059.13.1999.8.17.1250, ocorreram os mesmos inconvenientes. Trata-se de ação revisional de contratos com alegação de cobrança abusiva de juros. A ação foi ajuizada em 1999 e a sentença transitou em julgado em 2016. Dezessete anos de tramitação e o Estado-Juiz não teve condições para prolatar sentença com valor certo, determinado.

A execução se iniciou em 2016 pelo valor de R$ 77 milhões. Dado o vulto, o juiz determinou fosse realizada liquidação por arbitramento. O credor se insurgiu e a questão está pendente de julgamento pelo Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco. Três anos já se passaram e nada de definição. Uma curiosidade: após alguns meses, o

credor passou a defender ter direito a R$ 140 milhões de reais. Provavelmente, haja vista o importe envolvido, este será mais um processo com longos anos no Judiciário. Esses longos anos poderiam ter sido vencidos, caso o Estado-Juiz tivesse determinado a realização de perícia ainda na fase de conhecimento.

Muitos exemplos poderiam ser citados, mas isso seria contraproducente. Há, entretanto, dois casos emblemáticos. O primeiro tramitou no Rio de Janeiro, Processo nº 0055639-50.1990.8.19.0001: trata-se de ação de reintegração de posse ajuizada em razão do não pagamento dos valores devidos na aquisição de determinado imóvel. O pedido foi julgado procedente, mas determinou-se, em razão de outra ação ajuizada pelo devedor, que 30% do preço pago fosse a ele devolvido. Os processos foram julgados em conjunto, mas a sentença não especificou o valor.

A inicial foi distribuída em 1975 e a fase de conhecimento se encerrou em 1999. Vinte quatro anos e uma prolação de sentença ilíquida. A fase de liquidação, por sua vez, teve início em 1999. Foram idas e vindas: em 2005, o credor entendeu que a liquidação deveria ser direcionada contra a empresa que adquiriu parte dos ativos da companhia devedora; em 2018, o Superior Tribunal de Justiça (Recurso Especial nº 1.635.572-RJ, Relator Ministro Marco Buzzi) entendeu que essa empresa era parte ilegítima para responder aos termos da ação. O credor tencionava receber mais de R$ 100 milhões de reais. Sem prejuízo da questão processual deduzida (ilegitimidade), fato é que vinte e quatro anos é tempo suficiente para a prolação de uma sentença líquida, com valor especificado.

O segundo processo causa perplexidade pelo valor envolvido que o autor afirma ser credor: R$ 7 bilhões. Chegou-se, inclusive, a falar-se em trilhões, mas o credor acabou desistindo dessa pretensão. Trata-se do Processo nº 0003056-02.2003.8.26.0272, que tramitou na 2.ª Vara da comarca de Itapira (SP).

Discutiu-se nesses autos a revisão de alguns contratos de mútuo. Após regular desenvolvimento do processo, o Estado-Juiz decidiu que algumas taxas de juros e o método de sua apropriação (capitalização ou linear) estavam em desconformidade com a legislação aplicável e, por consequência, condenou o réu a revisar os contratos, mas prolatou sentença sem valor certo, ilíquida.

A fase de conhecimento se iniciou em 2003 e transitou em 2007. Em cinco anos, era perfeitamente possível uma sentença líquida, mas o Estado-Juiz assim não entendeu. A liquidação, por sua vez, iniciou-se em 2008 e, em 2019, ainda não chegou ao seu termo e, haja vista o valor envolvido, provavelmente demorará mais alguns anos para se encerrar, pois enquanto o autor sustenta ser credor de uma quantia bilionária, o réu entende que nada é devido, pois nem mesmo o capital mutuado teria sido devolvido. Por certo, tivesse havido adequada perícia na fase de conhecimento, uma sentença líquida seria prolatada e as partes não estariam nesse debate por um período que já ultrapassa uma década.

Esses exemplos, embora oriundos de processos individuais, demonstram a importância da prolação de uma sentença líquida. De nada adianta ganhar tempo na fase de conhecimento e perdê-lo no período mais importante do processo: o da satisfação material do direito da parte que o aproveita.

O processo coletivo não difere dessa dinâmica. Mais ainda: essa complexidade se avulta em se tratando de tutela jurisdicional coletiva, porquanto havendo múltiplos cumprimentos individuais de sentença coletiva, razoável imaginar diversas interpretações acerca do título executivo, gerando, por consequência, insegurança jurídica para todos envolvidos, credor e devedor, e desprestígio da função jurisdicional.

Na ação civil pública, Processo nº 0705843-43.1993.8.26.0100, prolatou- se sentença nos seguintes termos:

Diante do exposto, julgo procedente a ação para condenar o réu a pagar as diferenças existentes entre o rendimento de 71,13% apurado em janeiro de 1989 (inflação de 70,28% mais juros de 0,5%) e o índice creditado nas cadernetas de poupança (22,97%), isto é, 48,16% aplicável ao saldo existente em janeiro de 1989, computados juros e correção monetária, devendo o valor ser pago a cada um dos titulares, conforme ficar apurada em liquidação, a se processar segundo o disposto nos arts. 95 a 100 do Código de Proteção e Defesa do Consumidor.

Ajuizados os cumprimentos individuais de sentença, iniciou-se debate acerca do período de incidência dos juros remuneratórios. Para o devedor, estes deveriam ficar limitados ao mês de janeiro de 1989; para os credores, muito embora o dispositivo não fosse expresso acerca dessa verba, essa limitação não existiria, não obstante a literalidade do dispositivo da sentença.

No cumprimento individual de sentença coletiva, Processo nº 1008449- 53.2017.8.26.0609, que tramitou na 2ª Vara Cível da Comarca de Taboão da Serra (SP), decidiu-se pelo pagamento dos juros remuneratórios, pois eles “são necessários à plena recomposição do saldo em caderneta de poupança e devem ser computados nos termos da avença celebrada (contrato de depósito), à razão de 0,5% ao mês, capitalizados, desde fevereiro de 1989, quando o crédito deixou de ser efetuado pelo Banco”.

Já no cumprimento individual de sentença, Processo nº 1002881- 97.2018.8.26.0002, que tramitou na 10ª Vara Cível do Foro Regional II da Comarca de São Paulo (SP), cujo fundamento era a sentença prolatada na mesma ação civil pública, a decisão foi pela sua não inclusão: “Finalmente, razão assiste ao banco impugnante quando se insurge contra a cobrança de juros remuneratórios, pois a certidão de objeto e pé de fls. 16/19 nada menciona quanto à condenação do executado nesse sentido, devendo a execução ficar adstrita ao que constou explicitamente do título executivo”. O mesmo título judicial, porém, com interpretações diversas.

Não se desconhece a natureza equívoca das palavras, não raramente dotadas de vagueza e ambiguidade. Todavia, ao menos nessa ação civil pública, essa dubiedade poderia ter sido eliminada. Para tanto, suficiente o desenvolvimento de uma fórmula matemática ou até mesmo um exemplo de cálculo, que poderia ser debatido entre as partes na fase de conhecimento, ajudaria na definição da certeza do título judicial.

É nessa perspectiva que se sustenta ser a liquidação – especialmente aquela que não depende de fatos novos, compreendidos estes como sendo aqueles efetivamente desconhecidos pelas partes – predadora do tempo, porquanto se instaura um conflito sobre uma questão que seria evitável. Em todos os exemplos acima citados, as liquidações, ao menos nos termos nas quais elas foram deduzidas, eram dispensáveis. Poderia até mesmo ter havido a improcedência das pretensões.

Afirmar-se-á, talvez, ser impossível fugir da liquidação em se tratando de processo coletivo, especialmente na hipótese de direitos individuais homogêneos, uma vez que será necessário identificar objetivamente o beneficiário da sentença coletiva. Isso, entretanto, é um falso problema, pois o devedor, mais do que qualquer outro, sabe quem pode ou não ser beneficiado pela sentença coletiva.

Nesse contexto, não há necessidade da instauração de um processo judicial (ação de cumprimento individual de sentença coletiva) para investigar quem seja o beneficiário da sentença coletiva, salvo naquelas situações nas quais exista uma verdadeira dúvida objetiva. Essas situações, contudo, dada a forma como os negócios são firmados na atualidade, são raras. Para ilustrar: hoje, qualquer compra é facilmente identificável, seja porque ela foi realizada via internet, seja porque realizada por meio de cartões, de débito ou crédito.