• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 – O PARADOXO DA INTIMAÇÃO

2.2. Irmãos siameses: o conflito e o interesse processual

Ao tempo da vigência do Código de Processo Civil de 1973, três eram as

condições da ação: possibilidade jurídica do pedido59, legitimação para a causa e interesse

processual. Com o advento do novo Código de Processo Civil, a possibilidade jurídica do pedido foi excluída no que toca ao regular exercício do direito de ação. Ela agora é mérito, haja vista o disposto no artigo 485, II, da norma processual.

Acerca das condições da ação, em virtude do vigente Código de Processo Civil, há interessante debate doutrinário. Para alguns, teria havido uma fusão entre as condições da ação e os pressupostos processuais e tudo seria, na realidade, pressupostos

processuais;60 para outros, haja vista o campo de aplicação de uma e outra categoria, essa

unificação não teria ocorrido, porquanto os pressupostos estariam ligados à validade do

processo e as condições no plano da eficácia do processo.61

59 Enquanto em vigor o Código de Processo Civil de 1973, muito se debateu acerca da possibilidade jurídica

do pedido como condição da ação, haja vista o abandono dessa espécie pelo seu autor, Enrico Tullio Liebman (Manual de Direito Processual Civil. Volume I. Tradução e notas: Cândido Rangel Dinamarco. 3ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 204). Críticas à parte, o fato é que ela era expressamente prevista na lei e isso, de per si, à época, era suficiente para considerá-la como condição.

60 DIDIER JR, Fredie. Será o fim da categoria “condição da ação”? Um elogio ao projeto do novo Código

de Processo Civil. Revista de Processo. Volume 197. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, 259.

61 CÂMARA, Alexandre Freitas. Será o fim da categoria “condição da ação”? Uma resposta a Fredie

Sem prejuízo das opiniões contrárias, mas considerando o texto processual vigente, parece acertado afirmar que o Código de Processo Civil continua fiel à doutrina de Liebman, na medida em que, não obstante a literalidade do artigo 17 do Código de Processo Civil, havendo falta de interesse processual ou ilegitimidade ativa ou passiva, o processo será resolvido sem mérito (artigo 485, VI), não estando, pois, essas categorias

inseridas no objeto litigioso.62

Dito isso, possível afirmar com apoio em Liebman que as condições da ação são “condições de admissibilidade do julgamento da demanda, ou seja, como condições essenciais para o exercício da função jurisdicional com referência à situação

concreta [concreta fattispecie] deduzida em juízo”.63

Quanto à legitimação, o artigo 18 do Código de Processo Civil é explícito: ninguém poderá pleitear direito alheio em nome próprio, salvo quando autorizado pelo ordenamento jurídico.

O interesse processual, por sua vez, não decorre, à exceção do disposto no artigo 17, de norma processual específica, mas em razão de ser da própria função jurisdicional, uma vez que é da sua essência o caráter substitutivo.

Ao exercer a jurisdição, o Estado-Juiz substitui as partes no conflito

trazido ao juízo.64 Vale dizer: as partes, impossibilitadas de encontrarem uma solução

extrajudicial para o conflito havido entre elas, transferem ao Estado-Juiz a responsabilidade e o poder para solução desse conflito.

Ressalte-se que a função jurisdicional pressupõe um conflito concreto. Não há sentido jurídico, político ou lógico em se provocar o Judiciário para solução de

62 NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil.

Novo CPC. Lei 13.105/2015. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1.112.

63 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Volume I. Tradução e notas: Cândido

Rangel Dinamarco. 3ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 203.

64 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. Teoria geral do direito

um conflito em abstrato65, compreendido este como algo que ainda não aconteceu ou que, em tese, poderia acontecer. Admitir essa possibilidade abstrata significa desprestigiar a ideia de eficiência, porquanto uma função estatal foi provocada para resolver uma disputa que nunca existiu. No ponto, a lição direta e objetiva de Humberto Theodoro Júnior:

Contudo, a prestação jurisdicional realizada por meio do processo e em resposta à ação não é dispensada à parte como simples assessoramento consultivo ou acadêmico; pressupõe ao contrário, uma situação concreta litigiosa a dirimir em que o manejador do direito de ação tenha

realmente interesse tutelável.66

Nesse contexto, afirma-se a ideia segundo a qual o conflito e o interesse processual são “irmãos siameses”, pois este depende daquele. De fato, como já asseverou José Frederico Marques, “inexistindo litígio, não há sequer interesse em instaurar-se a

relação processual”.67 Para que haja litígio, conforme as palavras de Francesco Carnelutti,

faz-se necessária a ocorrência de “un conflitto (intersubbiettivo) d’interessi qualificado da una pretensa resistita (contrastata)”.68 No mesmo sentido, Enrico Tullio Liebman:

Em segundo lugar, como o direito de agir é concedido para a tutela de um direito ou interesse legítimo, é claro que existe apenas quando há necessidade dessa tutela, ou seja, quando o direito ou interesse legítimo não foi satisfeito como era devido, ou quando foi contestado, reduzido à

incerteza ou gravemente ameaçado.69

65 Ao se falar em conflito abstrato, não está a se referir ao controle abstrato de constitucionalidade, processo

objetivo, cuja legitimidade deferida ao Judiciário decorre do texto constitucional (art. 102, I, a), tudo conforme lecionam Nelson Nery Junior e Georges Abboud: “Trata-se de controle abstrato porque seu objeto é um ato normativo ainda que não tenha produzido efeitos jurídicos, poderá a lei até mesmo ser questionada durante a sua vacatio legis.” Direito constitucional brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 651.

66 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. Teoria geral do direito processual

civil. Processo de conhecimento e procedimento comum. Volume I. 57ª edição revista, atualizada e

ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 159.

67 MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. Volume 1. São Paulo: Saraiva, 1974, p.

123.

68Tradução livre: Um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida. Carnelutti, Francesco.

Istituzioni del nuovo processo civile italiano. Volume Primo. I. 4ª edição emmendata e aggiornata.

Roma: Soc. Ed. Del Foro Italiano, 1951, p. 7.

69 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Volume I. Tradução e notas: Cândido

Verificada a resistência, surge para o interessado a possibilidade de provocar o Estado-Juiz para que este, diante do caso concreto, exerça o seu poder e entregue a tutela jurisdicional adequada e, por conseguinte, pacifique o conflito.

Em razão disso, afirma-se que o interesse processual se caracteriza pelo

trinômio: utilidade, necessidade e adequação.70 Diz-se útil porque, ao provocar o Estado-

Juiz para solucionar o caso concreto, a parte deve requerer um provimento que lhe traga algum proveito. Não faz sentido demandar pelo simples desejo de demandar, ou seja, não faz sentido ir a juízo reclamar determinado bem da vida quando a parte demandada já entregou esse bem ao demandante. Não há benefício moral ou econômico em favor do autor.

Por necessidade, entende-se que o demandante não pode obter o bem da vida sem a intercessão do Estado-Juiz, haja vista a vedação à autotutela. Imagine-se, pois, o credor de um determinado título: vencido, não quitado e sendo defeso ao credor apossar- se dos bens do devedor, resta ao credor provocar o Judiciário.

A adequação está relacionada ao provimento jurisdicional concretamente solicitado. Assim, por exemplo, quem alega em juízo o não pagamento de aluguéis não pode pleitear reintegração de posse, mas despejo por falta de pagamento.

Relativamente a esse último elemento, tem-se que ele não deve ser considerado propriamente um componente do interesse processual, uma vez que, no processo civil moderno, a forma deve ceder à substância. Logo, o Estado-Juiz, diante de uma circunstância como esta, não deve extinguir o processo sem mérito, salvo se, intimado o autor, este não corrigir o vício. No ponto, Cassio Scarpinella Bueno:

A adequação no sentido de “modo de apresentação do pedido de tutela jurisdicional ao Estado-juiz, tal qual concebido previamente pelo legislador”, deve ser entendido muito mais como um indicativo do que, propriamente,

como imposição.71

70 ALVIM, Eduardo Arruda. Direito Processual Civil. 2ª edição reformada, atualizada e ampliada. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 155.

71 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. Teoria geral do direito

Nessa perspectiva, a literalidade do art. 523 do Código de Processo Civil infirma o caráter substitutivo da jurisdição e ocasiona provocação da atividade estatal sem necessidade, bem como trata com benevolência aquele que foi condenado no processo, pois concede a esse o direito de ser intimado para cumprir com a obrigação definida na sentença e somente após 15 dias dessa intimação impõe uma penalidade: multa de 10% (dez por cento).

O caráter substitutivo da jurisdição resta mitigado, porquanto, a rigor, não há um conflito concreto relativamente ao cumprimento da obrigação definida na decisão transitada em julgado, pois, se intimado, o devedor cumprir, no prazo de 15 dias, o comando, a intervenção judicial, caracterizada pela intimação, mostrou-se desnecessária.

Na hipótese de não cumprimento no prazo de 15 dias, a resistência já era, na origem, existente e para a sua demonstração a intimação era absolutamente desnecessária, haja vista que bastaria, por exemplo, ao credor, extrajudicialmente, procurar o devedor para este cumprir o comando judicial. Não cumprido, a intervenção judicial se mostraria necessária.

Esse problema se avulta quando se trata de direitos coletivos, em especial o individual homogêneo, pois apesar de o conflito ter sido resolvido por meio de apenas um processo, uma ação coletiva, ainda serão necessárias dezenas, centenas ou milhares de ações, processos, para se proceder à liquidação da sentença coletiva. Entretanto, o pressuposto dessas liquidações é uma situação em abstrato: resistência do condenado em cumprir com o comando judicial.

O mais adequado seria fazer constar na sentença o estabelecimento de critérios próprios para o devedor cumprir com o comando judicial. Esses critérios poderiam ser discutidos na fase de conhecimento. Assim, poderia restar definido na sentença o espaço temporal (exemplo: pessoas que adquiriram o produto naquele intervalo de tempo); o meio utilizado para a pessoa comprovar ser beneficiada pela sentença (exemplo: cópia do imposto de renda; cópia do extrato da conta corrente; cópia da nota fiscal); os critérios para o cálculo da indenização (exemplo: o valor constante da nota fiscal, corrigido desde a data nela constante e acrescidos de juros de mora desde a

data da citação na ação civil pública). Enfim, são várias as possibilidades e apenas o caso concreto poderá indicar o melhor mecanismo.

Sendo objetiva a sentença a respeito dos critérios para liquidar a obrigação nela definida, a resistência do vencido para cumpri-la não terá lugar ou ao menos não estará ancorada na boa-fé. Nessas circunstâncias, havendo resistência, legitima-se a provocação da jurisdição, apenando-se o devedor, pois resistiu injustificadamente ao comando judicial que, aprioristicamente, ele tinha conhecimento. Ou seja, além de suportar o comando judicial, o devedor também deveria sofrer uma outra espécie de sanção, uma multa, por exemplo, pois ocorreu inadvertida provocação judicial.