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Uma experiência interna: o acordo de planos econômicos

CAPÍTULO 5 – A DESJUDICIALIZAÇÃO DA EXECUÇÃO NO PROCESSO

5.6. Uma experiência interna: o acordo de planos econômicos

No Brasil, infelizmente, os acordos, em ações individuais ou coletivas, não são incentivados. Não há uma cultura na qual as partes, em conjunto, deliberam para

construir uma solução para o caso concreto.389 Em regra, as partes, em um dado litígio,

acabam se valendo da ineficiência do Judiciário, seja esta caracterizada pela demora ou pela ausência de respeito às decisões pacificadas nos tribunais, ordinários ou

extraordinários.390

É fato, porém, que o atual Código de Processo Civil, artigo 3o, § § 2o e 3o,

positivou a ideia de que o Estado deve promover a solução consensual dos conflitos e que a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual deverão ser

388 Disponível em: www.stj.jus.br. Data do julgamento: 15.12.2009. Acórdão publicado em 24.08.2010. 389 ROQUE, Andre Vasconcelos. Class actions. Ações coletivas nos Estados Unidos: o que podemos

aprender com eles? Salvador: Jus Podium, 2013, p. 602/605.

390 ROVER, Tadeu. Maioria dos juízes entende que não deve seguir jurisprudência, diz pesquisa.

Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-fev-11/juizes-entendem-nao-seguir-jurisprudencia- pesquisa>. Acesso em: 12.02.2019.

estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.

No âmbito do processo coletivo, porém, esse estímulo não é de todo evidente, em especial pelo fato de que parte da doutrina sustenta ser impossível a transação nos litígios coletivos. Para essa doutrina, a transação no âmbito coletivo está circunscrita apenas aos aspectos formais do acordo, como, por exemplo, prazos de cumprimento, não podendo a transação abranger aspectos materiais do direito, tais como valores a serem recebidos. No ponto, a opinião de Ricardo Barros Leonel:

Assim, em princípio não podem os legitimados públicos, autorizados a agir em juízo, efetuar composições em que haja afastamento da tutela integral ao interesse, com renúncia, ainda que parcial, ao direito material.

Mesmo quando caracterizados interesses patrimoniais, ao ganharem dimensão coletiva adquirem conotação social, tornando-se indisponíveis processualmente, não obstante o lesado individualmente dispor de sua parcela. Ademais, os legitimados também não podem deles dispor, por não serem titulares de tais interesses.

[...]

Daí a possibilidade de formação do compromisso só quanto à forma de observância da obrigação, carreada ao autor da lesão ao interesse tutelado. A disponibilidade é processual, quanto aos prazos para a realização das medidas adotadas, técnicas adequadas a serem utilizadas etc. Deve haver

previsão da reparação integral do bem lesado. 391

Essa doutrina encontra eco no poder público. Assim, o Conselho Nacional do Ministério Público, com objetivo de regulamentar a tomada do compromisso de ajustamento de conduta, editou a Resolução 179/2017 que, em síntese, não permite disposição de direitos. Confira-se o artigo 1º, § 1º: “Não sendo o titular dos direitos concretizados no compromisso de ajustamento de conduta, não pode o órgão do Ministério Público fazer concessões que impliquem renúncia aos direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, cingindo-se a negociação à interpretação do direito para o caso concreto, à especificação das obrigações adequadas e necessárias, em

391 LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. 4ª edição, revista, ampliada e atualizada.

especial o modo, tempo e lugar de cumprimento, bem como à mitigação, à compensação e à indenização dos danos que não possam ser recuperados”.

O Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 1.656.874-SP, Relatora Ministra Nancy Andrighi, confirmando o entendimento contrário, decidiu pela impossibilidade do acordo em processo coletivo nos seguintes termos:

Os legitimados para o ajuizamento da ação coletiva não são titulares do direito material discutido em juízo, razão pela qual não podem dispensar direitos ou obrigações, nem renunciar a direitos, que são requisitos essenciais para a configuração de concessões mútuas, relacionadas à

transação.392

Essa decisão do Superior Tribunal de Justiça é contraditória com aquela que homologou o acordo de planos econômicos, como será visto na sequência. Mas, também conflita com a doutrina que, de maneira ponderada, defende a possibilidade de acordo em processo coletivo. No ponto, a síntese de Patrícia Miranda Pizzol:

Entende-se que a regra é da ausência de concessões que possam implicar renúncia ao direito, por parte do legitimado, quando da celebração do termo de ajustamento de conduta ou do acordo. Dessa maneira, a negociação entre o legitimado e o responsável pela violação ao direito coletivo deve, em regra, recair sobre a forma, os prazos e outros aspectos que devam ser observados para que a sua conduta seja ajustada à lei. Entretanto, podem as partes negociar e fazer concessões recíprocas relativas ao direito material, desde que demonstrada a adequação da solução encontrada ao conflito, isto é, desde que perfeitamente caracterizada a vantagem do compromisso ou do acordo em

relação ao processo judicial.393

Esse posicionamento parece ser aquele que mais se adapta à realidade da

vida, pois, como é notório, melior est certa pax quam sperata victoria.394 Nesse sentido,

transigindo acerca do direito material em disputa, recentemente (dezembro/2017), a Febraban – Federação Brasileira de Bancos e a Consif – Confederação Nacional do

392 Disponível em: www.stj.jus.br. Data do julgamento: 13.11.2018. Acórdão publicado em 22.11.2018. 393 PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões.

Tese (Livre docência em direito). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2018, p. 248.

Sistema Financeiro firmaram com diversas associações de defesa do consumidor395 acordo para por fim a diversas ações civis públicas, bem como execuções individuais, que discutiam os chamados expurgos inflacionários. O acordo contou com a interveniência

do Banco Central do Brasil e com a mediação da Advocacia Geral da União.396

Esse acordo, embora desejado pelos principais atores jurídicos envolvidos no assunto (credores, devedores, Ministério Público e Judiciário), e, como era esperado, dada a magnitude do tema, sofreu algumas críticas. Assim, por todos, Edilson Vitorelli

defendeu que ele não deveria ser homologado pelo Judiciário.397

Edilson Vitorelli, após discorrer acerca da pacificação do mérito relativo aos planos econômicos, sustenta que o acordo foi negociado de forma obscura, pois, em primeiro lugar, os poupadores não estavam adequadamente representados e, principalmente, “foram alijados do debate por seus representantes”. O acordo também não teria sido claro acerca de qual teria sido “as concessões dos bancos”. Conclui que “o acordo dos planos econômicos, o maior litígio coletivo relacionado a direitos individuais homogêneos da história do Brasil, chegou a um fim criticável”.

Não obstante esse posicionamento, fato é que o acordo representou um ganho para os poupadores e por uma razão elementar: os poupadores poderiam, ao menos em tese, sair desse litígio sem receber qualquer valor. Portanto, entre o nada e alguma coisa, alguma coisa será sempre muito melhor se comparada ao nada.

395 Associações signatárias do acordo: IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor; FEBRAPO –

Frente Brasileira pelos Poupadores; ACADECO – Associação Catarinense de Defesa do Consumidor; ADEC – Associação para Defesa dos Direitos Civis e do Consumidor; ADOCON – Associação das Donas de Casa dos Consumidores e da Cidadania de Santa Catarina; APADECO – Associação Paranaense de Defesa do Consumidor; AUSFAR – Associação de Defesa dos Usuários do Sistema Financeiro de Americana e Região; IBDCI – Instituto Brasileiro de Defesa do Cidadão; PROJUST – Instituto pro Justiça Tributária; e VIRTUS – Instituto Virtus de Cooperação, Desenvolvimento e Cidadania.

396 O acordo em seu inteiro teor pode ser consultado no seguinte endereço eletrônico:

<https://www.conjur.com.br/dl/integra-acordo-poupadores-bancos.pdf >. Acesso em 13.12.2017.

397 VITORELLI, Edilson. Acordo coletivo dos planos econômicos e por que ele não deveria ser

homologado. Representatividade inadequada. Disponível em: <

https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/acordo-coletivo-dos- planos-economicos-e-por-que-ele-nao-deveria-ser-homologado-15012018>. Acesso em: 16.01.2018.

Ao contrário do entendimento de Edilson Vitorelli, o mérito dos planos econômicos não está pacificado no Judiciário. Não se desconhece que a esmagadora maioria dos juízes julgou procedentes as pretensões deduzidas pelos poupadores.

Contudo, por se tratar de tema que envolve questão constitucional, ele foi levado ao Supremo Tribunal Federal por meio da Ação de Descumprimento de Preceito

Fundamental nº 165-DF, Relator Ministro Ricardo Lewandowski.398

Sendo procedente a pretensão deduzida nessa ação, será reconhecida a constitucionalidade dos planos econômicos e, por consequência, os pleitos dos poupadores serão julgados improcedentes. Contudo, essa ação constitucional, por força do acordo, encontra-se pendente de julgamento. Logo, não se pode afirmar que o mérito do tema chegou ao seu termo. Nessa perspectiva, o acordo não foi de todo ruim. Muito pelo contrário, pois entre a possibilidade de nada receber (expectativa de vitória das instituições financeiras nas ações de jurisdição constitucional), melhor receber alguma quantia.

O ideal seria que todas as pessoas envolvidas nesse tema pudessem ser ouvidas e, por certo, eventuais defeitos de representatividade seriam mitigados. Isso, entretanto, dada a amplitude do litígio, certamente inviabilizaria o acordo. Apenas como exemplo, cite-se o processo nº 1102246-58.2017.8.26.0100, em trâmite na Comarca de São Paulo (SP). Neste processo, a parte por entender se sentir prejudicada com o acordo, pretende pleitear a sua nulidade. Cite-se também o Mandado de Segurança nº 36.345-DF, em trâmite no Supremo Tribunal Federal, Relator Ministro Luiz Fux, impetrado pela Associação dos Advogados de São Paulo. Neste mandado, sustenta-se que as suspensões das ações individuais, conforme os termos do acordo, violam direito líquido e certo dos

poupadores e advogados, porquanto estariam sendo coagidos a aderir ao acordo.399 Sem

adentrar ao mérito dessas pretensões, percebe-se, por meio desses exemplos, que seria impossível abrigar os anseios e desejos de todos.

398 Além dessa Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, há pendente de julgamento também no

Supremo Tribunal Federal os seguintes Recursos Extraordinários, todos com repercussão geral: 591.797- SP e 626.307-SP, Relatora Ministra Cármen Lúcia; e 631.363-SP e 632.212-SP, Relator Ministro Gilmar Mendes. Em razão do acordo, estes recursos estão sobrestados.

399 Em 20.03.2019, o Relator, monocraticamente, julgou extinto esse Mandado de Segurança em razão da

inadequação da via eleita. A decisão transitou em julgado em 13.04.2019. Disponível em: www.stf.jus.br. Data do julgamento: 20.03.2019. Decisão publicada em 21.03.2019.

A crítica de Edilson Vitorelli quanto à ausência de debate também não procede em razão de um fato incontroverso: além de outras associações, talvez com menor expressividade no corpo social, mas sem embargo disso, porém, é certo que houve a participação ativa do IDEC nas negociações. Portanto, é de se pressupor amplo e exaustivo debate, seja aquele realizado entre os que negociaram diretamente o acordo, sejam em relação àqueles que compõem a base de representação do IDEC.

Por outro lado, não há na doutrina, ou mesmo no Judiciário, quem questione a idoneidade do IDEC quanto a sua representatividade adequada para defender os consumidores. Há, inclusive, decisão do Superior Tribunal de Justiça (Relator Ministro Waldemar Zveiter, Recurso Especial nº 138.540-SP), do início dos anos 2000, que atestou essa idoneidade/representatividade ao afirmar “como inquestionável a legitimidade do

IDEC”400 para defesa dos interesses dos titulares de caderneta de poupança.

Não se está a defender que o acordo não tenha defeitos. Provavelmente, tem. Não se discute que uma proposta melhor poderia ter sido criada. Sempre será possível construir algo melhor. Todavia, não se deve desconsiderar que o acordo final representa os melhores esforços das pessoas envolvidas: credores, devedores e agentes públicos (Banco Central do Brasil e Advocacia Geral da União). Nisso, Edilson Vitorelli não discorda: “Não se discute a boa-vontade das entidades envolvidas no processo, que estão entre as mais sérias do Brasil”.

Ressalte-se ainda que o acordo foi homologado pelo Judiciário: Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça. Nessa perspectiva, é de se admitir, salvo eventual teoria da conspiração, que não fosse bom à sociedade, o acordo não teria tido a chancela do Judiciário, seja no seu aspecto formal (representatividade, prazos etc), seja no seu aspecto material (valores, beneficiários etc).

Superadas eventuais contradições desse acordo, imperioso verificar o que nele consta relativamente à possibilidade de se proferir sentença líquida, bem como

imputar ao devedor a responsabilidade pelo pagamento dos eventuais valores devidos e, por conseguinte, contribuindo para a não atomização dos litígios.

Para materializar os termos do acordo, cuja adesão é voluntária, os devedores em conjunto com o Conselho Nacional de Justiça desenvolveram um portal no qual os poupadores, por meio dos seus advogados, realizam requerimento administrativo para pagamento dos valores. O primeiro passo consiste na realização de um cadastro no seguinte sítio da rede mundial de computadores: www.pagamentodapoupança.com.br. Neste site, os interessados terão ainda acesso a uma cartilha que explica, em detalhes, como a pessoa deve se cadastrar.

Cadastro efetuado da forma correta, isto é, em conformidade com os termos do acordo, o poupador receberá o valor devido no prazo de 60 dias corridos. Caso o pedido tinha sido instruído apenas com a declaração do imposto de renda, o prazo dobra.

As adesões ao acordo são realizadas conforme a data de nascimento do poupador. Assim, os nascidos até 1928 podem aderir a partir de 22.05.2018; já os nascidos entre 1959 e 1963, poderão aderir a partir de 18.12.2018, tudo conforme adequadamente delimitado no anexo operacional do acordo. O acordo também contempla os poupadores já falecidos por meio dos seus herdeiros e inventariantes.

Os honorários de advogado também foram objeto do acordo e esses profissionais receberão os valores diretamente em suas contas corrente. Consta da cláusula 7.4.1.:

Os valores dos honorários sucumbenciais serão pagos ao advogado patrono do processo movido pelo poupador habilitado, à razão de 10% (dez por cento). Esses honorários serão adicionais aos valores apurados, conforme o subitem 7.2. e serão pagos diretamente ao patrono da causa, que deverá indicar, na habilitação, a conta para depósito.

Essa experiência demonstra que é perfeitamente possível a prolação de uma sentença líquida (e não importa a modalidade obrigacional: fazer, não fazer, dar ou pagar) com imputação de responsabilidade ao devedor para o adimplemento da obrigação

definida na sentença sem que haja qualquer necessidade de intervenção judicial para tanto.

Os planos econômicos certamente representam um dos maiores litígios coletivos do Brasil. Portanto, em sendo possível construir uma solução para um caso extremamente complexo, como foi o de planos econômicos, seguramente, para aqueles mais simples, o sistema judicial não terá dificuldades para encontrar uma solução adequada, eficiente e efetiva.

Como exemplo do ganho que esse esforço (sentença líquida e imputação de pagamento ao devedor) representa para o sistema, considere que até o dia 16.01.2019, 117 mil pessoas realizaram a devida habilitação e 17 mil pessoas já receberam ou estão recebendo os valores definidos no acordo de planos econômicos. Isso significa que o Judiciário não foi envolvido em mais de 100 mil processos. Isso representa um ganho para a toda a sociedade, considerando que a execução, nas palavras do Conselho Nacional

de Justiça, é o “gargalo” do Judiciário.401

Enfim, nesse acordo, como se percebe, foram estabelecidas as condições formais e materiais para que, sem intervenção judicial, as pessoas recebam o que efetivamente devem receber. Logo, perfeitamente possível que isso também seja determinado por meio de decisão judicial específica, reservando-se a jurisdição para a hipótese na qual exista um conflito real.