• Nenhum resultado encontrado

A norma concreta e o seu descumprimento incentivado pela própria le

CAPÍTULO 2 – O PARADOXO DA INTIMAÇÃO

2.4. A norma concreta e o seu descumprimento incentivado pela própria le

A interpretação literal do artigo 523 do Código de Processo Civil incentiva o descumprimento da decisão judicial ou permite que o devedor se utilize do Estado-Juiz

73 ROQUE, Andre Vasconcelos Roque; GAJARDONI, Fernando da Fonseca, MACHADO, Luiz Dellore,

Marcelo Pacheco; OLIVEIRA JR, Zulmar Duarte. Releitura do princípio do acesso à Justiça: A necessidade

de prévio requerimento e o uso da plataforma consumidor.gov.br. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/TendenciasdoProcessoCivil/134,MI304544,91041Releitura+do+principio +do+acesso+a+Justica+A+necessidade+de+previo>. Consultado em 17.06.2019.

74 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. Teoria geral. Comentários aos arts 1o a 5o

da Constituição da República Federativa do Brasil. Doutrina e jurisprudência. 6ª edição. São Paulo: Atlas,

2005, p. 190.

75 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. Teoria geral. Comentários aos arts 1o a 5o

da Constituição da República Federativa do Brasil. Doutrina e jurisprudência. 6ª edição. São Paulo: Atlas,

como se ele fosse o seu departamento de cobrança, haja vista a ineficiência do Judiciário, caracterizada pela demora na resposta definitiva.

Houve um longo processo no qual as partes deduziram suas defesas e provas. Esse processo culminou com a prolação de uma sentença cujo comando, em palavras simples, é uma determinação para que o vencido cumpra o julgado. Entretanto, mesmo após todo esse iter, ainda será necessário intimar o devedor para cumprir a decisão judicial, como se ele, devedor, não soubesse o que cumprir.

É fato que, comparado com a legislação processual anteriormente vigente, o atual Código de Processo Civil representa notório avanço. Todavia, ainda é benevolente com o vencido. A doutrina, em certa medida, confirma esse caráter generoso da legislação ao afirmar que, não obstante “tenha sido abolido do direito processual civil brasileiro a ação autônoma de execução, transformando-a em simples incidente do processo em que a demanda foi acolhida, não há como recusar ao executado a garantia do contraditório e

da adequada defesa”.76

Não há dúvidas de que o devedor tem direito a uma ampla defesa, mas também é certo que o credor tem direito a sua satisfação material, isto é, receber o bem de vida definido na sentença. No entanto, para receber esse bem, precisa, novamente, provocar o Judiciário, ainda que isso possa ocorrer por meio de um mero requerimento e uma posterior intimação.

Para exata noção da perplexidade, compare-se a obrigação definida na sentença com aquelas oriundas das relações privadas. Uma pessoa, ao firmar um contrato de empréstimo, não espera que o banco a intime para pagar, pois ela sabe exatamente o dia do vencimento da parcela e não pagando ficará sujeita à mora. O mesmo se diga em relação à conta de luz. Nenhum consumidor desse serviço, na esmagadora maioria dos casos, questiona o consumo definido pela concessionária na conta de cobrança. O consumidor simplesmente paga. Todavia, em se tratando de obrigação definida em decisão judicial, no qual o contraditório e a ampla defesa foram adequadamente

76 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo de execução e cumprimento de sentença, 29ª edição revista

exercidos, inclusive com apoio de profissional (advogado), o devedor não paga de imediato, exige ser intimado, pois assim define o artigo 523 do Código de Processo Civil.

Parece possível superar esse paradigma. Assim, a própria decisão judicial pode conter dia e hora para o cumprimento da decisão, de modo que no momento seguinte a inadimplência já estaria configurada. Um exemplo: pagamento em espécie. Neste caso, a sentença poderá definir que o devedor, uma vez apresentada documentação idônea, realize o depósito na conta corrente indicada pelo beneficiário em um número razoável de dias. Mutatis mutandis, com relação ao conserto ou troca de um produto, abstenção de uma conduta etc. Enfim, sempre será possível encontrar uma forma para o cumprimento da decisão judicial, evitando-se que a intervenção do Estado-Juiz seja a regra, como sói acontecer atualmente.

Não se está a afirmar que o devedor não possa, espontaneamente, cumprir a obrigação. Isso sempre foi possível. O que se questiona é a razão lógico-jurídica para que não possa constar na sentença, desde logo, como e quando o devedor deverá cumprir com a obrigação. O que se questiona é a intervenção judicial como regra, especialmente em se tratando de processo coletivo.

Repita-se: a rigor, não há esse impedimento, sendo perfeitamente possível constar da sentença que o devedor, nas obrigações de pagar, por exemplo, deverá depositar o valor devido na conta indicada pelo credor no dia seguinte ao trânsito em julgado da decisão. Dispensando, portanto, qualquer intimação para cumprimento da determinação judicial. Não depositando, a resistência estará caracterizada e o credor poderá provocar o Judiciário, mas agora não mais para simplesmente intimar o devedor para pagar, mas para penhorar bens, impor multas etc. Provoca-se, pois, o Estado-Juiz para a realização de atos de constrição, alienação, satisfação e coerção, ou seja, atos executivos típicos.

Essa forma de leitura do cumprimento de sentença ganha contornos relevantes em se tratando de processo coletivo, porque, em princípio, o condenado possui todos os meios para cumprir a determinação judicial sem que para tanto sejam necessários centenas e/ou milhares de processos para definir a parcela devida a cada pessoa. Evidentemente, repita-se, havendo erros e conflitos no cumprimento da obrigação

definida na sentença, o Judiciário poderá ser provocado, arcando cada parte com as consequências de eventual provocação indevida.

Dessa forma, preservam-se os interesses de todos os envolvidos, credores e devedores, devolvendo aos mesmos os poderes e responsabilidades pelas suas ações e omissões.

O poder do Judiciário também estaria preservado, porquanto somente seria provocado, nessa fase do processo, para realizar atos materiais de satisfação do credor, atos executivos típicos, deixando de funcionar como mero departamento de cobrança, especialmente naquelas hipóteses nas quais o devedor, intimado, cumpre a obrigação, ou seja, situação sem conflito e na qual o Judiciário é absolutamente desnecessário, gerando apenas custos e morosidade.