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CAPÍTULO 3 – A TUTELA COLETIVA NO BRASIL

3.2. Objeto material do direito processual coletivo comum

3.2.1. O Direito transindividual

A sociedade atual apresenta peculiaridades talvez nunca antes imaginada pelos habitantes da Terra. Hoje, por exemplo, as pessoas interagem com máquinas e, não raramente, nem percebem que essa interação não está sendo travada com humanos. Nessa perspectiva e sob qualquer outra, possível notar que o direito exige um novo olhar interpretativo, sob pena de não proteger adequadamente a sua razão de ser, a humanidade.

Em termos econômicos, é possível demarcar, ao menos, três estágios de desenvolvimento. O primeiro, na antiguidade, ocasião na qual a agricultura era a base da economia, não havia, naquela época, por exemplo, atividade industrial como nos dias

atuais. 95 No medievo, com a intensa urbanização verificada nesse período, o centro da

economia desloca-se para o comércio. 96 A revolução industrial, por sua vez, é deflagrada

na Inglaterra em fins do século XVIII para se tornar a força primordial de produção social.

94 No início do desenvolvimento da doutrina da tutela coletiva no Brasil, houve intenso debate acerca da

distinção entre interesses e direitos, haja vista a literalidade do artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor. Na atual quadra do desenvolvimento científico da tutela coletiva, porém, esse debate parece não mais fazer sentido. Aliás, Kazuo Watanabe já registrava irrelevância prática dessa distinção, uma vez que esses termos foram tomados como sinônimos. Confira-se: Os termos “interesses” e “direitos” foram utilizados como sinônimos, certo é que, a partir do momento em que passam a ser amparados pelo direito, os “interesses” assumem o mesmo status de “direitos”, desaparecendo qualquer razão prática, e mesmo teórica, para a busca de uma diferenciação ontológica entre eles”. In Código brasileiro de defesa do

consumidor comentado pelos autores do projeto. 8ª edição revista, ampliada e atualizada conforme o novo

Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 800.

95 Afirma John Kenneth Galbraith: “A atividade econômica básica da Grécia e de Roma era a agricultura;

[...]. Havia, de fato, mercados e artesãos, sendo que a maioria destes eram escravos; havia, contudo, pouca atividade industrial de qualquer espécie que pudesse ser reconhecida como tal”. O pensamento econômico

em perspectiva: uma história crítica. Tradução: Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Pioneira; Editora da

Universidade de São Paulo, 1989, p. 8.

96 No ponto, expõe Robert L. Heilbroner: “Um importante subproduto da ascensão do mercador itinerante

foi a lenta urbanização da vida medieval, a criação de novas cidades e vilas. [...]. Durante os mil anos da Idade Média, quase mil cidades foram fundadas na Europa – um tremendo estímulo à comercialização e à monetarização da vida, pois cada cidade tinha seus mercados locais, suas barreiras de pedágio, muitas vezes sua moeda local, seus celeiros e lojas, suas tavernas e estalagens, seu ambiente de ‘vida de cidade’, o qual contrastava bem nitidamente com o do interior”. A formação da sociedade econômica. Tradução: Álvaro Cabral. Revisão Técnica: Mauro Roberto da Costa Souza. 5ª edição revista e atualizada. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987, p. 73.

A propósito, na síntese de Robert L. Heilbroner, ela deu origem “a novas espécies de

abusos sociais e avivou intensamente a consciência geral das condições econômicas”.97

A industrialização fez surgir a denominada produção em série, determinando, com isso, surpreendente aumento de produtividade e, por consequência,

fazendo aparecer a conhecida economia de produção em grande escala.98 Ou seja, a

produção em massa. Não será um despropósito afirmar que, com a industrialização, ao menos no que diz respeito ao consumo, as pessoas perdem parte da sua individualidade.

Essa assertiva (perda de individualidade) pode ser confirmada pelo seguinte exemplo: outrora, quem desejasse um terno teria que ir ao alfaiate, tirar as medidas e aguardar por um longo período, 30 dias ou mais, para recebê-lo. Hoje, como fruto da produção em massa, basta ir a uma loja do gênero, retirá-lo da vitrine e levá-lo para casa. Na atualidade, os produtos e serviços são, em sua esmagadora maioria, padronizados. Nem de longe a produção de hoje se assemelha àquela da Antiguidade, da era medieval ou até mesmo do início da revolução industrial. Não há um terno para um indivíduo mais um terno para muitos indivíduos. Não há singularidade.

Atualmente, a própria ideia de indústria encontra-se relativamente superada. Vive-se o tempo da era digital. Ou, em preferindo, o tempo da computação difusa, computação ubíqua, cujo objetivo consiste em tornar conectado tudo que assiste ao ser humano: da planta ao televisor.

Há, portanto, inexoravelmente, uma nova ordem social. As trocas econômicas, as relações familiares ou, mais genericamente, quaisquer relações entre os seres humanos, sem exclusão de outras espécies de relações, exigem atualmente do direito uma resposta distinta daquela de outrora. Por essa razão, afirma Antonio Carlos Wolkmer:

Desse modo, as necessidades, os conflitos e os novos problemas colocados pela sociedade no final de uma era e

97 HEILBRONER, Robert L. A formação da sociedade econômica. Tradução: Álvaro Cabral. Revisão

Técnica: Mauro Roberto da Costa Souza. 5ª edição revista e atualizada. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987, p. 129.

98 HEILBRONER, Robert L. A formação da sociedade econômica. Tradução: Álvaro Cabral. Revisão

Técnica: Mauro Roberto da Costa Souza. 5ª edição revista e atualizada. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987, p. 143/144.

no início de outro milênio engendram também “novas” formas de direitos que desafiam e põem em dificuldades a dogmática jurídica tradicional, seus institutos formais e

materiais e suas modalidades individualistas de tutela.99

Nesse contexto, surge – ou melhor, evidencia-se100, conforme alerta Pedro

Lenza – um novo direito, o denominado direito transindividual. Ou seja, aquele direito, consoante a síntese de Celso Lafer, cuja titularidade não pertence ao “indivíduo na sua singularidade, mas sim grupos humanos como a família, o povo, a nação, coletividades

regionais ou étnicas e a própria humanidade”.101

Não há dúvidas da existência no ordenamento jurídico brasileiro de um direito objetivo que trata de pretensões coletivas, inclusive de forma especificada, conforme o artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor. Portanto, como há um direito objetivo coletivo, forçoso reconhecer a existência de um direito subjetivo que transcende a individualidade, o chamado direito coletivo.

Ressalte-se não se tratar da evidenciação de apenas uma pretensão material coletiva. Tem-se, na hipótese, verdadeira pretensão coletiva, compreendida esta como sendo “a posição subjetiva de poder exigir de outrem alguma prestação positiva ou

negativa”. 102 Mas, também se trata de direito subjetivo, pois este, a partir de um conceito

amplo, corresponde a um “espaço de autonomia, poder de iniciativa que é irrenunciável

e insubstituível em todo sistema jurídico”. 103

99 WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução aos fundamentos de uma teoria geral dos “novos” direitos.

Os “novos” direitos no Brasil: natureza e perspectivas. Uma visão básica das novas conflituosidades jurídicas. Organizadores: Antonio Carlos Wolkmer e José Rubens Morato Leite. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 3.

100 Esclarece Pedro Lenza: “Opta-se pela terminologia evidenciação ao invés de surgimento no sentido de

que o verbo ‘surgir’ traz consigo a noção de nascimento, algo que desponta, sem nunca ter existido. Por outro lado, evidenciação, do verbo ‘evidenciar’, denota um sentido de, conforme Aurélio [...], ‘tornar evidente, mostra com clareza (...) aparecer com evidência’. Ou seja, afirma-se que somente a partir dos problemas advindos com a sociedade moderna, principalmente neste século, é que os direitos e interesses difusos são postos em evidência, merecendo uma maior preocupação por parte dos estudiosos do direito. Mencionados bens difusos sempre existiram...”. Teoria geral da ação civil pública. 3ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 37.

101 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt.

7ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 131.

102 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Parte Geral. Tomo V. Eficácia jurídica.

Determinações inexas e anexas. Direitos. Pretensões. Ações. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1955, p. 451.

103 ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; e OLIVEIRA, Rafael Thomaz de. Introdução ao

direito. Teoria, filosofia e sociologia do direito. 4ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo:

Confirma essa assertiva o fato segundo o qual os direitos transindividuais possuem, ainda que de forma difusa, um sujeito de direito, qual seja: a sociedade considerada na sua totalidade. O conteúdo, por sua vez, desse direito subjetivo coletivo consiste na faculdade de a sociedade não ser violada em seus direitos ou no dever imposto a todos de respeitá-los. Há ainda um objeto: o denominado direito coletivo lato sensu, seja ele difuso, coletivo ou individual homogêneo. Por último, é dotado de instrumentos jurídicos que têm por finalidades específicas garantir o exercício do direito ou punir a sua violação, como, por exemplo, a ação popular e a ação civil pública.

Não se desconhece a crítica consistente no fato de que somente haveria direito quando se pudesse identificar de maneira objetiva o seu titular. Ocorre, porém, que o direito subjetivo aqui estabelecido não diz respeito a esta ou aquela pessoa considerada como indivíduo isolado, mas a uma subjetividade própria inerente à coletividade, ou seja, o todo. Portanto, é a coletividade que é titular desse novo direito subjetivo e, nesta afirmação, haja vista a identificação do sujeito (a coletividade), não há nenhuma contradição lógica com a doutrina tradicional acerca do direito subjetivo.

Acrescente-se que o direito subjetivo, em última ratio, significa uma posição de vantagem cuja a origem é o direito objetivo. Nesse sentido, afirmam Ovídio A. Baptista da Silva e Fábio Gomes que o direito subjetivo “corresponde a uma situação favorável na qual se encontra determinada pessoa em relação a outra, por força da

incidência do direito objetivo entre eles mantida”.104

Na tutela coletiva, haja vista os diplomas legais incidentes na espécie, essa posição de vantagem é notória, na medida em que, por exemplo, a sociedade, considerada como um todo, tem direito ao meio ambiente saudável e equilibrado. Quem violar esse direito, estará sujeito às sanções descritas na lei.

A propósito, para quem ainda insiste na impossibilidade de subjetivação, vale a pena transcrever texto profético de Norberto Bobbio:

104 SILVA, Ovídio A. Baptista da; Gomes, Fabio. Teoria geral do processo civil. 2ª edição revista e

Olhando para o futuro, já podemos entrever a extensão do direito à vida das gerações futuras, cuja sobrevivência é ameaçada pelo crescimento desmesurado de armas cada vez mais destrutivas, assim como a novos sujeitos, como os animais, que a moralidade comum sempre considerou apenas como objetos, ou, no máximo, como sujeitos

passivos, sem direitos.105

Ora, em sendo possível imaginar direitos subjetivos pertencentes aos animais, nada mais lógico do que a existência de direitos da própria sociedade que, em última ratio, é o próprio homem considerado no seu todo.

No mesmo sentido do exposto, ou seja, atribuindo subjetividade jurídica aos direitos coletivos, encontra-se a opinião de José Luiz Bolzan de Morais, que fala, por

exemplo, em direito subjetivo difuso.106

Teori Albino Zavascki também parece concordar com o afirmado quando sustenta:

Assim compreendidos esses interesses é que se pode dar um passo adiante: tratando-se de interesses tutelados juridicamente, aptos inclusive a serem defendidos em juízo, eles, na verdade, se revestem da condição de genuínos direitos. E, por se tratar de direitos que pertencem não exclusivamente a um patrimônio jurídico determinado, mas à sociedade em seu todo, é apropriado incluí-los na categoria de direitos transindividuais (coletivos lato sensu).107

Também Humberto Dalla Bernardina de Pinho ao tratar especificamente dos direitos individuais homogêneos: “Com base em todas as considerações já aduzidas, é nosso sentir que o direito individual homogêneo é espécie do gênero direito

subjetivo.”108

105 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Apresentação de Celso

Lafer. Nova edição. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 59.

106 MORAIS, José Luis Bolzan de. Do direito social aos interesses transindividuais: o estado e o direito

na ordem contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 112.

107 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela dos direitos coletivos e tutela coletiva de direitos.

4ª edição revista e atualizada São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 47.

108 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. A natureza jurídica do direito individual homogêneo e sua

Finalmente, mas não menos importante, e tudo a confirmar a existência de um direito subjetivo de natureza transindividual, deve-se anotar que o direito objetivo impõe sanções e, por consequência, tem-se um dever jurídico, para aqueles que violarem as normas de direito coletivo em sentido amplo. Assim, por exemplo, a Lei n° 8.429/1992 (improbidade administrativa) que dispõe sobre as sanções aplicáveis àqueles que violarem as suas normas. No mesmo sentido, o Código de Defesa do Consumidor ou ainda a Lei da Ação Popular. Em todas essas hipóteses, há uma descrição de uma conduta exigível, cuja violação atinge um bem transindividual.