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CAPÍTULO 3 – A TUTELA COLETIVA NO BRASIL

3.2. Objeto material do direito processual coletivo comum

3.2.2. Da tipologia legal dos direitos transindividuais

A partir dos conceitos romanistas,109 distingue-se, classicamente, entre

direito público e privado.110 Esta distinção, contudo, tem mais valor didático, pois,

conforme anota Sílvio de Salvo Venosa, “a linha divisória entre os dois grandes ramos do Direito não pode ser nitidamente estabelecida em teoria, em virtude do enorme

entrosamento das relações jurídicas”.111

André Franco Montoro também adverte sobre a natureza imperfeita dessa distinção:

Essa divisão é clássica e acompanhou a evolução do direito. Mas não é perfeita. Inexiste, na verdade, critério perfeito para essa distinção. Tal fato é comprovado pela multiplicidade de critérios insatisfatórios, que através dos

tempos vêm sendo propostos.112

109 Nesse sentido, Georges Abboud, Henrique Garbellini Carnio e Rafael Thomaz de Oliveira: “A distinção

entre direito público e direito privado tem sua origem nos conceitos romanistas de ius privatum e ius

publicum. O primeiro é relacionado ao interesse privado da sociedade civil (conjunto dos indivíduos

sujeitos privados). Já o interesse público, encontra seu titular e exequente na figura do Estado. Assim, o direito público pode ser visto como regulador do Estado enquanto a sociedade civil seria regulada pelo direito privado”. In Introdução ao direito. Teoria, filosofia e sociologia do direito. 4ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Thomson Reuters - Revista dos Tribunais, 2019, p. 362.

110 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Volume I – Parte Geral. 12ª edição. São Paulo: Atlas, 2012 p.

60.

111 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Volume I – Parte Geral. 12ª edição. São Paulo: Atlas, 2012 p.

60.

112 MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 26ª edição revista e atualizada. São Paulo:

No mesmo sentido e advogando, inclusive, a necessidade de revisão dessa distinção, haja vista o Estado Constitucional, Georges Abboud, Henrique Garbellini Carnio e Rafael Thomaz de Oliveira esclarecem acerca dificuldade em se visualizar um direito exclusivamente público ou exclusivamente privado:

Destarte, no Estado Constitucional, não se concebe poder do Estado que não esteja assentado na soberania popular e na dignidade humana, consequentemente, o dualismo entre direito público e privado mantém sua importância sob o aspecto sistemático, contudo, dificilmente pode-se conceber situação jurídica puramente privada ou puramente pública, na medida em que todas elas estão diretamente normalizadas pelo texto constitucional. Com efeito, o dualismo deve ser utilizado para realçar e fortalecer os direitos fundamentais do cidadão em seu aspecto privado e destacar e pormenorizar as tarefas e os limites do Poder

Público.113

Além disso, na atual sociedade, em que prevalece a economia de massa, a divisão bipartida não é suficiente para encerrar todos os fenômenos que ocorrem no mundo fático. Coexistem atualmente ao lado do público e do privado outras categorias de direito que não se amoldam à divisão bipartida.

No ponto, sustentando a superação da summa divisio público/privado, expõe Mauro Cappelletti:

A summa divisio aparece irreparavelmente superada diante da realidade social de nossa época, que é infinitamente mais complexa, mais articulada, mais “sofisticada” do que

aquela simplista dicotomia tradicional.114

Em razão disso, fala-se em uma espécie de direito que não é público – considerado como o conjunto de normas que tem por objeto regular as relações de Estado,

113 ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Thomaz de. Introdução ao

direito. Teoria, filosofia e sociologia do direito. 4ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo:

Thomson Reuters - Revista dos Tribunais, 2019, p. 365.

114 CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. Tradução:

Nelson Renato Palaia Ribeiro de Campos. Revista de Processo nº 5. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, p. 135.

com a prevalência do poder de império – e que também não é privado – considerado este

como um conjunto de normas que regula as relações entre particulares.115

Entre o público e o privado, a doutrina aponta uma terceira espécie de

direitos considerados como supra ou metaindividuais.116

Talvez por essa razão, Gregório Assagra de Almeida, a partir do texto constitucional vigente, defende a superação da summa divisio direito público e direito privado por uma nova summa divisio constitucionalizada: direito individual e direito coletivo.117

Sem embargo da doutrina de Gregório Assagra de Almeida, opta-se por uma classificação tricotômica, cuja essência consiste em considerar autonomamente os direitos supraindividuais. Portanto, pode-se falar em um direito público, um direito

privado e um direito transindividual.118

Nesses termos, é possível afirmar que os direitos supraindividuais são aqueles que transcendem a esfera do ser humano na sua singularidade, podendo haver indeterminabilidade ou determinabilidade quanto ao universo dos indivíduos nas suas relações fáticas ou jurídicas, sendo, porém, seu objeto sempre compreendido na sua necessária indivisibilidade.

115 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Volume I – Parte Geral. 12ª edição. São Paulo: Atlas, 2012 p.

62.

116 LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. 4ª edição, revista, ampliada e atualizada.

São Paulo: Malheiros, 2017, p. 102.

117 Sustenta o autor: “A summa divisio, implantada na Lei Fundamental brasileira de 1988, é a Direito

Coletivo e Direito Individual (Título II, Capítulo I, da CF/88). O que é denominado ‘Direito Público’ está inserido, com algumas exceções, dentro do Direito Coletivo como um de seus capítulos. A designação ‘Direito Privado’ se insere no Direito Individual também como um de seus capítulos”. ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito material coletivo: superação da summa divisio direito público e direito

privado por uma nova summa divisio constitucionalizada. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 430.

118 No ponto, assim se manifesta Pedro Lenza: “Prefere-se, então, falar em interesses individuais (esfera

privada), interesses públicos (restritos ao Estado, enquanto sujeito de direito) e interesses metaindividuais (transindividuais ou supraindividuais, transcendentes da esfera individual, assumindo feições difusa, coletiva ou individual homogênea). Trata-se da denominada tricotomia que aloca os interesses transindividuais, autonomamente considerados, em categoria distinta dos interesses públicos e privados”.

In Teoria geral da ação civil pública. 3ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos

Para se considerar um direito supraindividual não se deve exigir que as pessoas do grupo sejam indeterminadas, mas apenas que haja um grupo, cujos interesses a serem defendidos transcendam a singularidade de cada um dos componentes do grupo, com o acréscimo de ser o interesse, na sua origem, indivisível.

No ordenamento jurídico brasileiro, os direitos supraindividuais foram subdivididos em três espécies: direitos difusos, direitos coletivos em sentido estrito e direitos individuais homogêneos.

Antes de analisar, contudo, cada uma dessas espécies, deve-se registrar que todas, indistintamente, compartilham da ideologia da supraindividualidade e da indivisibilidade do seu objeto, tudo sem prejuízo dos caracteres da definição legal.

A divisão tripartite exposta decorre de definição legal adotada pelo Código de Defesa do Consumidor nos seus incisos I, II e II, do parágrafo único do artigo 81, a saber:

Interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica-base; e interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

Doutrinariamente, consoante síntese de Pedro Lenza, os direitos supraindividuais são caracterizados da seguinte forma: a) difusos – a transindividualidade é real ou essencial ampla; há indeterminação dos sujeitos; a indivisibilidade é ampla; são indisponíveis; há um vínculo meramente fático a unir os sujeitos; não há unanimidade social; a organização é possível, mas sempre subotimal; e a reparabilidade é indireta; b) coletivos em sentido estrito – a transindividualidade é essencial restrita; há determinabilidade dos sujeitos; há divisibilidade externa e indivisibilidade interna; são coletivamente disponíveis e individualmente indisponíveis; há uma relação jurídica-base a unir os sujeitos; a unanimidade social é irrelevante; a organização-ótima é viável; e a reparabilidade é indireta; c) individuais homogêneos – a transindividualidade é artificial

(ou legal) e instrumental; determinabilidade dos sujeitos; divisível; são disponíveis, quando a lei não disponha o contrário; núcleo comum de questões de direito ou de fato a unir os sujeitos; irrelevância da unanimidade social; organização-ótima viável e

recomendável; e a reparabilidade é direta, com recomposição pessoal dos bens lesados.119

Não obstante o labor de Pedro Lenza, ousa-se discordar, relativamente ao direito individual homogêneo, dos caracteres referentes à transindividualidade e à

divisibilidade. 120

A transindividualidade no direito individual homogêneo, considerado este como algo distinto do direito individual puro eventualmente relacionado, é real, porquanto ela diz respeito à coletividade e não ao indivíduo na sua singularidade, sem prejuízo da possibilidade de identificação do indivíduo.

Acrescente-se: para visualizar a transindividualidade no direito individual homogêneo, há a necessidade de observar a lesão a partir do grupo. Nesses termos, a pergunta que deve ser respondida é a seguinte: referida conduta gera uma lesão social, isto é, lesão a um grupo? Em sendo a resposta afirmativa, haverá uma transindividualidade real, porquanto será o interesse da sociedade, ou seja, do grupo que foi lesado, sem prejuízo da ausência de eventuais lesões individuais.

Um exemplo pode ser interessante: um determinado fornecedor resolve estabelecer uma cláusula abusiva em um determinado contrato (reajuste de parcelas do contrato, conforme o interesse do fornecedor); aplicado o reajuste, o dano foi da ordem de míseros centavos de reais. No caso, houve dano social (a cláusula abusiva de per si é inadmitida pela ordem jurídica vigente, nos termos do disposto no artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor). Não houve, contudo, dano individual relevante, ao menos

119 LENZA, Pedro. Teoria geral da ação civil pública. 3ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2008, p. 67/68.

120 A maioria da doutrina entende que os direitos individuais homogêneos não são direitos essencialmente,

mas acidentalmente coletivos, conforme a expressão consagrada por José Carlos Barbosa Moreira in Ações

coletivas na Constituição Federal de 1988. Revista de Processo. Volume 61. Rio de Janeiro: Forense, 2000,

p. 187/189. Por todos, Patrícia Miranda Pizzol: “Na verdade, os direitos e interesses individuais homogêneos são, em sua essência, individuais, sendo considerados coletivos em razão da forma pela qual são tutelados. Daí decorre a assertiva de que a ação coletiva nesse caso substitui várias ações individuais ou uma ação individual com um litisconsórcio gigantesco. In Tutela coletiva: processo coletivo e técnicas

de padronização das decisões. Tese (Livre docência em direito). Pontifícia Universidade Católica de São

que, em termos econômico-financeiros, seja razoável persegui-lo, haja vista tratar-se, por exemplo, de míseros centavos de reais.

A mesma ratio aplica-se à característica da indivisibilidade, isto é, para ser assim considerada mister observar a lesão a partir do ponto de vista do grupo e não de cada indivíduo isoladamente considerado.

O mesmo exemplo pode ajudar na compreensão do que se afirma. Partindo-se da mesma hipótese (cláusula abusiva), mas considerando um dano patrimonial relevante (cem mil reais). Não há dúvidas sobre a possibilidade de cada indivíduo, de per si, procurar o Judiciário para defender os seus direitos. Entretanto, tendo havido a propositura de uma ação civil pública, a sentença a ser prolatada decidirá a lide, isto é, o objeto da tutela, de forma indivisível, aplicando-se ao grupo, uniformemente, a sentença de procedência ou improcedência. Procedente o pedido e havendo posterior liquidação por cada um dos beneficiados, não haverá mais tutela coletiva – esta já foi concedida a priori –, mas mero processo individual que delimitará o prejuízo sofrido por cada pessoa considerada na sua singularidade.

A propósito, observe o que afirma Luiz Paulo Araújo Silva Filho sobre as sentenças prolatadas nas ações relativas aos direitos individuais homogêneos:

Salientada a abstração das ações coletivas para a tutela de interesses individuais homogêneos, deve ser ainda destacado que, na verdade, as sentenças (ou acórdãos) nelas proferidas são genéricas não apenas porque são ilíquidas, ao menos na concepção tradicional de liquidez da sentença, como tem afirmado a doutrina.

Sob o ponto de vista que mais nos interessa, essas decisões

são, acima de tudo, subjetivamente genéricas,

indeterminadas, porque não individualizam quais são as pessoas que poderão usufruir da condenação; pelo contrário, cada interessado deverá, depois, vir a juízo demonstrar o seu direito pessoal. Em outras palavras: poder-se-ia dizer, assumida certa distorção do termo, que

essas sentenças são subjetivamente ilíquidas.121

121 ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais

De forma mais incisiva, confira-se a opinião de Marcelo Abelha Rodrigues acerca da natureza autônoma do direito individual homogêneo, que a propósito é idêntica

àquela defendida em específica dissertação de mestrado no ano de 2012122:

Observe-se que o próprio direito individual homogêneo, tratado por anos processualmente como um direito coletivo por razões pragmáticas, deve ser “reenxergado” a partir da compreensão do nosso modelo de sociedade e passar a ser encarado como um direito coletivo substancial autônomo, isto é, existente no plano material. Isso implica dizer que os chamados “direitos individuais homogêneos” – adotemos este nome porque é o que está na lei – não são direitos individuais, tampouco poderíamos dizer ser uma espécie típica deles (de direitos individuais), embora seja mais fácil qualifica-los assim. São coletivos na sua essência, porque

coletiva é a sociedade.123

Como corolário da transindividualidade real e da indivisibilidade, decorre a indisponibilidade do direito individual homogêneo, já que os autores ideológicos não

podem transacioná-los,124 não obstante os direitos individuais puros possam na sua

origem remota ser disponíveis.