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Uma experiência externa: a execução nas class actions

CAPÍTULO 5 – A DESJUDICIALIZAÇÃO DA EXECUÇÃO NO PROCESSO

5.5. Uma experiência externa: a execução nas class actions

Nessa análise, não se pretende transportar para o ordenamento brasileiro o modelo de como os Estados Unidos da América realizam o direito material com fundamento em uma decisão oriunda de processo coletivo, especialmente as obrigações pecuniárias, pois cada país tem suas peculiaridades, sejam elas geográficas, sociais, políticas etc.

Não se desconhece também ser o direito uma ciência cultural, porquanto

fruto da construção do gênio humano.369 No entanto, o legislador nacional

confessadamente se inspirou no modelo dos Estados Unidos da América para regular o processo coletivo no Brasil, notadamente quanto aos denominados direitos individuais

homogêneos.370

368 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo de execução e cumprimento de sentença. 29ª edição revista

e atualizada. São Paulo: Livraria e Editora Universitária, 2017, p. 44.

369 REALE, Miguel. Fundamentos do direito. 2ª edição revista. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p.

179.

370 WATANABE, Kazuo; GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos e;

FINK, Daniel Roberto; FILOMENO, José Geraldo Brito; NERY JUNIOR, Nelson; DENARI, Zelmo.

Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Volume II. 10ª edição

Portanto, observar a experiência daquele país pode trazer luzes ao problema relacionado à efetivação das decisões judiciais, especialmente em razão da

ampla liberdade conferida ao Estado-Juiz e às partes no modelo das class actions.371

Em conjunto com essa “criatividade”, tem-se a experiência histórica, pois

as demandas coletivas nos Estados Unidos, sem considerar o Direito Inglês372, remontam

ao início do século XIX, enquanto no Brasil os instrumentos coletivos, ao menos em

termos constitucionais373, começaram a surgir apenas com a Constituição de 1934, que

em seu artigo 113, item 38, previu uma espécie de ação popular segundo a qual qualquer cidadão seria “parte legítima para pleitear a declaração de nulidade ou anulação dos atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados ou dos Municípios”.

Uma primeira peculiaridade da experiência dos Estados Unidos da América diz respeito ao fato de que a maioria das ações judiciais, sejam elas coletivas ou não, é solucionada por meio de acordo. Trata-se de um dado cultural daquele país. Nesse sentido, Antonio Gidi:

Pode-se dizer que o direito processual civil americano é fundado no acordo entre as partes. Os mais otimistas afirmam que 90% dos processos instaurados nos Estados Unidos são encerrados através de acordo, sem falar naqueles casos que são compostos extrajudicialmente pelas partes independentemente da propositura de qualquer ação judicial. [...]. As ações coletivas não são uma exceção a essa

realidade. Muito pelo contrário. 374

Há também um aspecto econômico que estimula a política de acordos naquele país, uma vez que a derrota em uma class action pode significar uma condenação milionária ou mesmo bilionária. Também contribui para essa política os elevados custos

371 ROQUE, Andre Vasconcelos. Class actions. Ações coletivas nos Estados Unidos: o que podemos

aprender com eles? Salvador: Jus Podium, 2013, p. 454.

372 Em se considerando o Direito Inglês, uma vez que os Estados Unidos da América foram colônia da

Coroa Britânica, tem-se o bill of peace como antecedente histórico da moderna ação coletiva, no século XVII. Nesse sentido, Márcio Flávio Mafra Leal, Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 22.

373 A respeito da existência de ações populares em período anterior a 1934 e na legislação

infraconstitucional, ver Rodolfo de Camargo Mancuso, Ação popular – Proteção do erário, do patrimônio

público, da moralidade administrativa e do meio ambiente. 7ª edição revista, atualizada e ampliada. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 63/71.

374 GIDI, Antonio. A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos: as ações coletivas em

para condução de uma ação coletiva do seu início até o seu final. No ponto, a observação de André Vasconcelos Roque:

Após a certificação de uma class action, o réu se depara com a necessidade de enfrentar despesas milionárias para a sua defesa no processo coletivo, cuja procedência poderá significar uma condenação de milhões ou bilhões de dólares.375

Essa realidade é diferente no Brasil. Mais ainda: em que pese o disposto

no artigo 3o, § § 2o e 3o, do Código de Processo Civil, não há no ordenamento jurídico

brasileiro qualquer incentivo, nem mesmo em termos de racionalidade de condução do

processo, para a composição entre as partes.376 Quando se trata de processo coletivo,

acrescente-se, inclusive, a existência de respeitável doutrina segundo a qual eventual transação deveria ter por objeto apenas a forma e não o conteúdo material do direito. Em outras palavras, essa doutrina sustenta que havendo um dano transindividual, a forma como este será reparado poderá ser negociada, mas a reparação deverá ser sempre

integral.377 Logo, sem concessões recíprocas substanciais.

Essa diferenciação poderia ser suficiente para afastar a experiência dos Estados Unidos da América. Todavia, mesmo naquele país, imprescindível considerar que, em se tratando de class action, as partes não são totalmente livres para transacionarem, uma vez que eventual acordo necessariamente deverá ser aprovado pelo Estado-Juiz.

Tal aprovação não é apenas um requisito formal, mas substancial, porquanto existe efetiva investigação do mérito da ação proposta, embora não haja julgamento de mérito pelo Estado-Juiz. Confira-se o esclarecimento de Antonio Gidi:

A decisão que aprova o acordo precisa ser cuidadosamente fundamentada. Não é suficiente que o juiz repita mecanicamente que o acordo obtido pelas partes é justo e

375 ROQUE, Andre Vasconcelos. Class actions. Ações coletivas nos Estados Unidos: o que podemos

aprender com eles? Salvador: Jus Podium, 2013, p. 348.

376 GIDI, Antonio. A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos: as ações coletivas em

uma perspectiva comparada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 358.

377 LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. 4ª edição, revista, ampliada e atualizada.

adequado. É importante que o juiz faça uma investigação aprofundada sobre as circunstâncias fáticas que envolvem a controvérsia e uma abrangente análise das questões

jurídicas e dos termos do acordo. 378

Não se está a afirmar que o Estado-Juiz, ao analisar o acordo, julgará a

causa, mas que realizará juízo de probabilidade da procedência na ação379 para somente

então, concluindo pela justiça, adequação e razoabilidade da proposta, aprová-lo, tudo consoante os termos da Rule 23 (e)(2):

Approval of the Proposal. If the proposal would bind class members, the court may approve it only after a hearing and

only on finding that it is fair, reasonable, and adequate.380

Uma vez firmado e aprovado pelo Estado-Juiz, o réu deve cumprir com o quanto acordado, sob pena de sujeitar-se à execução forçada e à imposição de multa ou até mesmo prisão, dado que essa conduta do réu seria caracterizada como contempt of court.381 Nos processos coletivos, contudo, a efetivação material do direito acordado não é uma tarefa relativamente fácil, até mesmo naquele país.

Para as ações com conteúdo declaratório e constitutivo, a implementação do direito não ocasiona grandes dificuldades, uma vez que a decisão judicial (ou os termos do acordo) basta em si mesma. Maior problema haverá naquelas ações cujo conteúdo dependam de alguma conduta do réu. Geralmente, isso ocorre nas ações de natureza transitiva, ou seja, em regra, naquelas ações com conteúdo condenatório, mandamental e executivo.

A experiência dos Estados Unidos da América indica cinco alternativas para essa hipótese, conforme síntese de Andre Vasconcelos Roque: a) reconhecimento coletivo da ilicitude e/ou responsabilidade do réu com uma posterior fase na qual cada indivíduo exercerá a sua pretensão; b) reconhecimento coletivo da ilicitude e/ou

378 GIDI, Antonio. A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos: as ações coletivas em

uma perspectiva comparada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 325.

379 GIDI, Antonio. A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos: as ações coletivas em

uma perspectiva comparada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 323.

380 Tradução livre: Aprovação da proposta. Se a proposta vincular os membros da classe, o tribunal somente poderá aprová-la após uma audiência e somente após concluir que ela é justa, razoável e adequada. 381 ROQUE, Andre Vasconcelos. Class actions. Ações coletivas nos Estados Unidos: o que podemos

responsabilidade do réu, mas com uma segunda fase simplificada, sem direito a júri popular; c) reconhecimento coletivo da ilicitude e/ou responsabilidade do réu e definição do valor para reparar o dano com estabelecimento de procedimentos para se evitar uma segunda fase com um variado número de ações individuais; d) o estabelecimento de um procedimento administrativo no qual dispensa-se qualquer atividade dos integrantes do fundo; e e) não sendo possível reparação individual, realiza-se a distribuição fluida da

indenização.382

Como se observa as modalidades “a”, “b”, “c” e “e” são, com um ou outro detalhe, semelhantes à prática brasileira. No geral, em comum, elas acabam por cair no paradoxo da tutela coletiva, qual seja: em um primeiro instante, apenas a instauração de uma ação judicial é suficiente para solucionar o problema e, nesse primeiro momento, “desafoga-se” o Judiciário; em um segundo instante, o da fase de satisfação, exige a propositura de várias ações individuais o que, por óbvio, “afogará” o Judiciário.

Já a hipótese “d”, parece ser aquela que revela maior grau de efetividade com o menor dispêndio da atividade jurisdicional. É também a forma frequentemente

previstas nos acordos. 383 São variadas as vantagens: a) não se tem a necessidade de que

a parte a quem aproveita o resultado venha a movimentar o judiciário; b) o credor não precisa pagar custas ou outras despesas judiciais; c) o credor também, em princípio, não precisa contratar advogado; e d) pretensões de valor irrisório podem ser melhor satisfeitas.384

Como se observa, essa última hipótese alinha o interesse de todos os envolvidos, seja do Estado-Juiz, que terá dado uma solução adequada e efetiva aos jurisdicionados; seja do credor, que não será obrigado a movimentar novamente a máquina judiciária; ou, ainda, do devedor de boa-fé, na medida em que o ordenamento jurídico não agasalha um direito fundamental ao inadimplemento.

382 ROQUE, Andre Vasconcelos. Class actions. Ações coletivas nos Estados Unidos: o que podemos

aprender com eles? Salvador: Jus Podium, 2013, p. 455/462.

383 ROQUE, Andre Vasconcelos. Class actions. Ações coletivas nos Estados Unidos: o que podemos

aprender com eles? Salvador: Jus Podium, 2013, p. 460.

384 ROQUE, Andre Vasconcelos. Class actions. Ações coletivas nos Estados Unidos: o que podemos

Acrescente-se, ainda, que no modelo dos Estados Unidos da América para acordos com essa configuração, existe a possibilidade de o Estado-Juiz nomear uma

terceira pessoa385 para auditar as contas ou mesmo a criação de um comitê386 para

solucionar eventuais dúvidas, deixando ao Estado-Juiz somente para o conflito que mereça uma efetiva e dura intervenção estatal.

Esse modelo pode ser satisfatoriamente adaptado à realidade brasileira, exceto para aqueles que entendem que a leitura do artigo 95 do Código de Defesa do Consumidor apenas permite a prolação de uma sentença condenatória genérica e que a liquidação e a execução das pretensões individuais necessariamente devem seguir o modelo do Código de Processo Civil. Em assim sendo haverá, inexoravelmente, apenas uma ação coletiva de conhecimento, o que é salutar, mas tantas quantas liquidações e execuções sejam os indivíduos, o que é contraproducente.

Imagine-se a seguinte situação: um certo fornecedor decide fabricar um determinado chocolate. Este chocolate, em razão de um erro de fórmula, acarreta um dano físico aos consumidores. Este chocolate estava sendo vendido ao preço de R$ 1,00. As pessoas que compraram o produto tiveram, por exemplo, problemas estomacais. Em razão disso, foram obrigadas a adquirir medicamentos ao custo de R$ 10,00. Considere-se, por argumento, que o dano, por consumidor, foi, em média, R$ 11,00. Obviamente, não parece razoável cada consumidor provocar o Judiciário por esse valor. Todavia, não faz sentido não condenar o fornecedor em razão da ilicitude.

Considere-se, entretanto, que o Ministério Público decidiu instaurar inquérito civil (poderia ser também uma ação coletiva de produção antecipada de provas, nos termos do artigo 381 do Código de Processo Civil). Durante este procedimento, concluiu-se haver nexo de causalidade entre o consumo do produto e o dano. Nessa perspectiva, eventual ação civil pública seria julgada procedente, mas poderia durar anos. Além disso, seguindo o modelo processual coletivo tradicional, ainda seriam necessárias

385 ROQUE, Andre Vasconcelos. Class actions. Ações coletivas nos Estados Unidos: o que podemos

aprender com eles? Salvador: Jus Podium, 2013, p. 461.

386 ROQUE, Andre Vasconcelos. Class actions. Ações coletivas nos Estados Unidos: o que podemos

tantas ações de cumprimento individual de sentença coletiva quantos fossem os consumidores.

Nesse contexto, absolutamente razoável um acordo no qual seja previsto um ressarcimento direto ao consumidor pelo valor, por exemplo, de 80% do dano. Para esse objetivo, os legitimados e o fornecedor podem criar mecanismos de ressarcimento administrativo, sem propositura de qualquer ação judicial. Por exemplo, para o consumidor ser ressarcido, suficiente a apresentação da nota fiscal de compra do chocolate e dos medicamentos ou outro documento idôneo. Nesse exemplo de transação, perde-se 20% do valor correspondente ao dano, por assim dizer, mas ganha-se tempo, o que não é, na rotina judiciária brasileira, desprezível. No mais, evita-se uma miríade de ações individuais.

Há, inclusive, doutrina que entende ser perfeitamente possível, sem que haja legislação específica, a adoção desse modelo. Nesse sentido, a opinião de Ricardo de Barros Leonel:

Embora não haja autorização expressa em lei, nada impede que isso ocorra. Sempre que seja possível a tutela específica da obrigação ou provimento mandamental, que se resolve em um fazer ou observância de determinação judicial, isso é preferível, dispensando-se os indivíduos beneficiados pela sentença coletiva das agruras de milhares de processos

individuais de execução por quantia.387

O Superior Tribunal de Justiça, ao menos em um caso específico, parece ter seguido caminho semelhante ao trilhado pelos Estados Unidos da América: Recurso Especial nº 767.741-PR, Relator Ministro Sidnei Beneti:

Processual civil. Ação Civil Púbica. Eficácia da sentença. Provimento de caráter mandamental. Lide multitudinária. Admissibilidade.

I - Na petição inicial da Ação Civil Pública em causa, proposta pela APADECO contra o Banco do Brasil, visando a diferenças de correção monetária de valores depositados em caderneta de poupança, o pedido formulado

387 LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. 4ª edição, revista, ampliada e atualizada.

possuiu nítido caráter mandamental. Essa característica se refletiu no título judicial que se formou.

II - Nos termos do pedido inicial e do Acórdão, devidamente transitado em julgado, válida a determinação para que a execução de sentença de Ação Civil Pública se realize mediante depósito direto em conta pelo próprio Banco dos valores devidos aos clientes.

III - A providência, além de autorizada pela natureza do título executivo, torna efetiva a condenação e evita o assoberbamento do Poder Judiciário com incontáveis execuções individuais que, em última análise, constituem sub-produto dos sucessivos planos econômicos ocorridos na história recente do país.

IV - Recurso Especial a que se nega provimento.388

Portanto, essa modalidade de cumprimento da obrigação definida na sentença coletiva, em tudo assemelhada à experiência dos Estados Unidos da América, foi perfeitamente aceita, o que significa dizer que o conteúdo da sentença em processo coletivo terá a sua natureza definida em razão da forma como a pretensão foi deduzida, sem que isso signifique violação a qualquer lei, preservando-se, por consequência, o princípio da legalidade.