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3 ÀS CIDADES, A CIDADANIA

3.1 A POLÍTICA E A CONSTRUÇÃO DO COMUM: INTERSEÇÕES E TENSÕES

Para elencar características que marcam o diferencial das atuais movimentações sociais, é preciso, antes de mais nada, localizá-las em um contexto marcado por “desencanto com a política, a indignação diante do cenário de corrupção, falta de ética, mau uso do dinheiro público e falta de vontade política dos dirigentes”, apontado por Maria da Glória Gohn (2013a, p. 20). Chama a atenção o fato de serem pessoas comuns, e não instituições, que fazem “acontecer” tais protestos em ruas e praças de todo o mundo, assim como na internet, esboçando novos contornos à esfera pública. E, ainda que isto ocorra, é notório que outras organizações (como sindicatos, partidos, ONGs, associações) e movimentos sociais tenham tomado parte destas manifestações, ao mesmo tempo em que tem sido possível observar a formação de novos coletivos a partir destes acontecimentos, não importando seu tempo de duração, seus objetivos ou se sua estrutura é formal ou não.

Os objetos de comunicação podem ser frutos de trabalho coletivo (a exemplo de comunidades virtuais e alguns vídeos e manifestos) ou individual (tendo como base alguns blogs ou memes veiculados na internet), sendo possível também observar situações em que poderá haver produtos comunicacionais coletivos e individuais com um mesmo objetivo, tecendo diferentes conexões que se potencializarão mutuamente: um mesmo evento de rua, por exemplo, pode contar com várias convocatórias, dentre elas, algumas coletivas e outras individuais. Neste caminho, encontram-se tanto produtos que se destacam pelo apuro estético e técnico quanto os que primam pelo amadorismo, como quando um determinado fato exige cobertura ao vivo, como era o caso da Mídia Ninja.

No caso brasileiro, foi possível observar ocasiões nas quais diferentes propostas de ação eram lançadas na internet e abertas ao debate, o que, nem sempre, gerava consensos,

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como foi o caso da escolha do Marco Zero como destino da passeata do Recife. Em outras ocasiões, como no caso das ações do Movimento de Luta pelo Passe Livre, a comunicação emitida pelo movimento deixava claro que o processo de tomadas de decisões era interno e refletia um pensamento estratégico, bem diferente da produção espontânea que se sucedeu ao longo das “Jornadas de Junho” e depois delas. Independentemente da situação, é possível inferir que ocorreram mudanças significativas no eixo produção-circulação de informação, indicando que pessoas comuns superam, pela primeira vez e em larga escala, as barreiras impostas pela grande mídia, ao criar formas próprias de enunciação coletiva que as tornem visíveis. A comunicação deixa de ser unidirecional para se tornar multidirecional e sem controle, ainda que seu impacto provoque reações dos conglomerados midiáticos.

Tais características evidenciam a existência de uma preocupação com a quebra de paradigmas incapazes de dar conta da realidade expressa por meio de tentativas de recriação dos sentidos da vida em comum. É nesta paisagem que localizamos as contribuições de Jacques Rancière para este estudo. Logo no início de seu livro A partilha do sensível, o autor identifica os atos estéticos como “configurações da experiência, que ensejam novos modos do sentir e induzem a novas formas da subjetividade política” (2005a, p. 11).

Ao mesmo tempo, Felix Guattari (GUATTARI; ROLNIK, 2007) nos ensina que os processos de produção de subjetividade se dão por meio de agenciamentos de enunciação descentrados, que envolvem o funcionamento de máquinas de expressão. Sua natureza pode ser extrapessoal ou extraindividual – como os grandes sistemas maquínicos, econômicos, sociais, icônicos, de mídia – quanto infrapsíquica, infrapessoal  como os sistemas de percepção, sensibilidade, afeto, desejo, imagem, inibição e valor, dentre outros. É neste marco que localizamos a sinalização dos afetos, sublinhando sua presença na construção de uma experiência coletiva de cunho político.

Entendemos, portanto, que, no sensível (e, de modo particular, nos atos estéticos) reside uma chave de leitura importante. Ela nos ajuda a compreender a intrincada rede de relações que articulam e reconectam os afetos com a capacidade de reinventar o fazer político como dimensão cotidiana da vida, provocando mudanças significativas nas esferas pública e privada. Esta construção tem como marco o pensamento de Jacques Rancière acerca da estética e da partilha do sensível como elementos intrínsecos ao fazer político19.

Dentre os atos estéticos que consideramos relevantes para este estudo, destacamos duas formas distintas de experiência de ocupação do espaço público: de um lado, a construção

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dos acampamentos em praças públicas, que configuram uma espécie de reinvenção da polis ateniense e, de outro, manifestações de rua, marchas, passeatas, escrachos e performances, para citar as mais pontuais. Assim, podemos considerar como exemplos do primeiro tipo os acampamentos da Praça Tahrir (no Egito); as diversas #Acampadas na Espanha; o #Occupy Wall Street, em Zuccotti Park, centro financeiro de Nova York, nos Estados Unidos, e, mais recentemente, #Occupy Gezy Park, em Istambul, Turquia. Para ilustrar os demais atos estéticos, elegemos um conjunto de manifestações e passeatas – que, inicialmente, receberam a alcunha de Revolta do Vinagre, sendo hoje conhecidas como “Jornadas de Junho” , ocorridas no Brasil, com maior intensidade, entre junho e outubro de 201320 e, também, as performances que aconteceram em várias cidades, com maior destaque no Rio, tais como os atos de escracho e constrangimento de personagens públicas, como aquelas realizadas em frente à casa do Governador Sérgio Cabral; as encenações do Coletivo Coiote, que se utilizou de imagens sacras na simulação de atos eróticos como crítica ao fundamentalismo religioso; e a projeção de imagens, frases e filmes alusivos às agendas e pautas dos protestos em veículos ou edificações no espaço urbano, realizada pelo Coletivo ProjetAção.

Compreendemos, ainda, que os próprios sistemas de weblogs e fotologs, bem como outros objetos (tais como vídeos, projeções de frases no espaço público) podem se constituir em atos estéticos quando suas motivações e narrativas extrapolam a mera informação e quando sua elaboração institui um processo comunicacional que, ao narrar, também (re)cria esta experiência. Neste sentido, as produções apontadas dão materialidade e colocam em circulação uma comunicação plural que, gerada no âmbito destes movimentos, produz a partilha de novos olhares e percepções sobre o momento político, evocando memórias, impressões, afetos, atmosferas, que se misturam aos fatos ocorridos durante os acontecimentos; processos capazes de “criar uma participação, de tornar comum o que era isolado e singular” (DEWEY, 2010, p. 427-428). Portanto, é uma comunicação que se afirma por conferir sentido ao que é capaz de mobilizar, ainda que à distância, nas pessoas que acompanham os fatos pela internet: blocos de sensações cuja força atravessa aqueles que se deixam tomar por essa força sensível (DELEUZE; GUATTARI, 1997).

Nessa perspectiva, é possível nos perguntarmos se tais atos – sejam acampamentos, manifestações ou mesmo esses produtos de comunicação – podem construir uma revolução estética ou contribuir para ela, nos termos propostos por Rancière (2005a; 2009), qual seja, o

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Consideramos aqui o final da paralisação dos professores das redes estadual e municipal do Rio de Janeiro, iniciadas no dia 08 de agosto e concluídas na última semana de outubro de 2013 (nos dias 24 e 25, respectivamente).

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de superar a dualidade entre ficção e realidade para propor solidariedade entre elas, tornando indefinidas as fronteiras entre a razão dos fatos e a da ficção, revolução que se fundamenta em um princípio igualitário: garantir visibilidade a qualquer um. Esta é uma questão central desta investigação, o que nos leva a focar o interesse em observar as tensões que aí se manifestam e a produção do dissenso21.

Características comuns a todos esses movimentos (ou modos de associativismo) em redes, a convergência de mídias digitais, a conectividade e a formação de comunidades na internet se integraram, definitivamente, ao desenho de estratégias e aos modos de articulação e desenvolvimento de ações cidadãs, mediando – e colocando em relação – estas diversas experiências públicas. Neste sentido, importa considerá-las buscando compreender o impacto dessa mediação na experiência vivida no ambiente virtual e nas ruas.

Se concordarmos com Christine Hine (2000; 2005 apud FRAGOSO; RECUERO; AMARAL, 2011) quando afirma que a internet precisa ser vista como artefato cultural que transita entre as duas esferas e cujos usos e significados variam conforme os contextos, poderemos inferir que tal situação propicia mudanças culturais capazes de amparar e estimular a participação cidadã e, associadas a ela, o engendramento de experiências sensíveis compartilhadas. Manuel Castells (2012, p. 20) nos oferece uma pista sobre o tipo de mudança que aí parece se operar, ao afirmar que a segurança oferecida pelo ciberespaço instigou pessoas de todas as gerações e condições sociais a exporem publicamente suas ideias, convicções e contradições. Elas se atreveram “a ocupar o espaço urbano num encontro às cegas com o destino que queriam forjar, reclamando seu direito a fazer história – sua história –, em uma demonstração de consciência de si mesmos que sempre caracterizou os grandes movimentos sociais”22

.

Mais adiante, Castells (2012, p. 22) referencia que, na “sociedade rede”23

, não podemos perder de vista que os movimentos da atualidade são aqueles que, em última instância, “formarão as sociedades do século XXI, através de práticas conflituosas arraigadas nas contradições fundamentais de nosso mundo”24

. Neste ponto, trata-se de duas

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Para dar a compreender a noção de dissenso (ou desentendimento) e sua pertinência neste processo, o conceito será explicitado, detalhadamente, no item 2.2 deste capítulo.

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Tradução livre. No original: “se atrevió a ocupar el espacio urbano, en una cita a ciegas con el destino que querían forjar, reclamando su derecho a hacer historia – su historia – en una demonstración de conciencia de sí mismos que siempre ha caracterizado a los grandes movimientos sociales”.

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Grifo nosso. Expressão utilizada por Castells. Destacamos o fato de que, ao utilizar os dois termos sem preposição, o autor evidencia a fusão entre eles, ficando implícita a impossibilidade de tratar a realidade contemporânea sem levar em consideração as dinâmicas de rede.

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Tradução livre: “formarán las sociedades del siglo XXI, a través de prácticas conflictivas arraigadas en las contradicciones fundamentales de nuestro mundo”.

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considerações caras a esta pesquisa: a primeira, por evidenciar a condição de sujeito das pessoas comuns ou de “qualquer um”; a segunda, por reconhecer que a presença de novos sujeitos na cena política não elimina as contradições longevas nem a existência do conflito; antes, esta presença o ressalta.

São esses sujeitos, portanto, que trazem consigo a promessa da instituição de comunidades inéditas – ou comunidades de partilha – nas quais se buscará observar indícios de mudanças nas práticas sociais pautadas no princípio de uma partilha igualitária de experiências sensíveis, ou seja, em uma estética sobre a qual a política possa ser refundada e ressignificada, como propõe Jacques Rancière (2005a). Para uma melhor compreensão deste processo, nós nos deteremos em alguns conceitos centrais que alinhavam esse pensamento.