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3 ÀS CIDADES, A CIDADANIA

3.5 RUAS PLENAS DE AFECTOS E PERCEPTOS

3.5.1 Um giro pelo mundo

3.5.2.1 Acampadas: zonas autônomas do viver junto e nas cidades

Já afirmamos que percebemos, na atualidade, uma preocupação com a quebra de paradigmas expressa por meio da tentativa de recriar os sentidos da vida em comum e que se materializa na experiência dos acampamentos em praça pública – reconstrução precária e provisória (como é a vida) da pólis, onde se torna possível reinventar valores e práticas coletivos e igualitários. Por este motivo, teceremos algumas considerações a propósito desta forma de ocupação do espaço urbano, pois, ainda que tenham tido um tempo de duração limitado, consideramos os acampamentos como a mais significativa experiência cidadã no ambiente das ruas, por trazer em si a ressignificação da praça pública como o lugar onde “qualquer um” exerce a política; espaço e tempo compartilhados por aqueles que, sendo tão diferentes entre si têm ali a chance de “escrever a democracia real”.

Seguiremos com as apreciações sobre os acampamentos, tomando como ponto de partida o depoimento do jovem Jean Roure, no documentário #Indignados, el documental

sobre el Movimiento #15M:

Para uma geração como a minha, é quase o nível estético ver as pessoas na rua, ver a História em movimento... Eu pertenço a uma geração que ainda não tem memória histórica das mobilizações de Seattle; nas movimentações contra o Iraque, ainda estávamos “jogando Playstation”. E tem sido uma espécie de batismo de fogo ver a maneira como se reprimem os movimentos sociais.41

No âmbito da pólis improvisada, a gestão coletiva do espaço e as decisões tomadas em assembleias permitem que a interação social, combinando elementos dialógicos e conflituosos, se aprofunde no encontro com o outro, com “aquele que não conheço”, e se

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estabeleçam laços sociais, o que, dificilmente, ocorreria em passeatas, por exemplo. As assembleias tomam um lugar central, uma vez que reforçam o caráter coletivo nos processos de decisão, que antes vinham ocorrendo, de modo mais difuso, na internet, ao mesmo tempo em que incorporam o uso da web à sua realização. Deste modo, toma corpo uma nova ágora, que elimina as fronteiras entre a internet e a praça pública, tornando possível observar como são expostas e negociadas as diferentes expressões dos “modos de viver junto”. Na ágora em que se articulam acontecimentos a partir da interseção entre os dois ambientes, vão se delineando novos contornos para a esfera pública.

O modo de operação de debates anárquico, simultâneo e descentralizador não difere da dinâmica política observada na ágora, na Grécia antiga (em torno dos séculos V-IV a.C.), conforme descrição de Richard Sennett que, ao diferenciar os modos de interação entre corpos na ágora ateniense, comparando-os com aqueles observados no teatro, descreve dois modelos que nos ajudam a compreender o conflito que se forma hoje em torno do sentido real da palavra “democracia”:

Na ágora, múltiplas atividades transcorriam simultaneamente, enquanto as pessoas se movimentavam, conversando em pequenos grupos sobre diferentes assuntos ao mesmo tempo. Não havia nenhuma voz dominante. Nos teatros da velha cidade, as pessoas ainda ocupam seus lugares para ouvir uma única e clara voz (SENNETT, 2008, p. 52).

Ao mesmo tempo, a praça confere visibilidade a um tipo de experiência que traz a política de volta ao cotidiano. O filósofo e escritor Amador Fernández-Savater, membro da Comissão de Pensamento do #15M, em depoimento para o documentário sobre a #AcampadaSol, explicita o desafio: “Queremos inventar nosso próprio caminho. E, para isso, temos que abandonar os caminhos que nos dizem para fazer” para afirmar, na sequência, que a proposta do 15M é constituir-se como “um movimento que parte de problemas comuns e

não a partir de identidades [...] Queremos pensar problemas que podem ser comuns a

pessoas muito distintas”.42

Na afirmação de Fernández-Savater, se encontra a chave para compreender a praça pública como o lugar de construção de um mundo comum o qual se quer composto como uma “pluralidade de comunidades que só se transformam em ‘comunidade de uma pluralidade’ porque o espaço público [...] conecta sujeitos e universos particulares” (MARQUES, 2012, p. 147). O sentido do mundo comum se dá mais pelas lacunas e espaços vazios que se colocam

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AcampadaSol: historia de uma ciudad. Direção: Adriano Morán (grifo nosso; tradução livre a partir de entrevista em vídeo).

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em devir do que por similaridades, afinidades prévias ou consensos anteriormente pactuados. É marcado por alteridades e intervalos de subjetivação que possibilitarão o surgimento de capacidades de enunciação não expressas em experiências anteriores e no qual:

Viver juntos e em meio a fraturas torna-se mais relevante do que “ser em comum”, uma vez que viver junto com o outro requer sua consideração, a apreensão sensível de seu mundo e de suas marcas sem, necessariamente, incorporá-las ao seu universo (MARQUES, 2012, p. 147).

É nesse marco, portanto, que compreendemos o sentido de a praça ser retomada como lugar do trato do comum onde se dão a enunciação e a visibilidade da resistência política, em um momento de esvaziamento de espaços institucionais de participação popular. Ao mesmo tempo, para que esta capacidade de enunciação seja posta em prática, é preciso construir o que Angela Marques (2012, p. 147) chamou de “registro no domínio público de visibilidade”, que permite aos sujeitos da ação serem percebidos e inscritos como parte do “comum” – o que pode assumir contornos singulares conforme a situação dos diferentes países como, por exemplo, naqueles em que as restrições aos direitos civis passam pela repressão a manifestações públicas pelo confisco da liberdade de expressão e pela censura à internet.

Em contextos de forte cerceamento da liberdade de expressão, a manifestação da indignação e da desesperança poderá se concretizar por meio de atitudes extremas, sendo exemplo a autoimolação de Mohamed Bouazizi, no dia 17 de dezembro de 2010, episódio que deflagrou a Primavera Árabe e a realização dos acampamentos em praça pública que, tendo sua origem no Egito, se tornaram a grande expressão coletiva de oposição ao poder institucionalizado. Assim, concordamos com Bénilde (2012, p. 39) quando afirma que “as imolações públicas, as manifestações proibidas e a ocupação da Praça Tharir são, antes de tudo, expressões físicas de contestação e luta popular”.

Por outra parte, as situações adversas quando geradas por uma perversa combinação de frágeis condições de liberdade política articuladas a tradições culturais que negam o direito à alteridade e a exacerbação da tensão e dos conflitos podem colocar em risco a construção do comum que parte do reconhecimento e da aceitação da pluralidade de comunidades. Nesta perspectiva, em meio a confrontos violentos entre a polícia e os manifestantes, a atmosfera de ira e tensão pode provocar ações de violência e barbárie entre os próprios manifestantes, derrubando por terra o sentido do viver junto há pouco mencionado.

Foi o que se viu, no Egito, onde a violência coletiva se voltou contra as mulheres em, pelo menos, três ocasiões: no dia 8 de março de 2011, quando um protesto, no Cairo, contra

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os abusos e pela igualdade de direitos foi interrompido por dezenas de homens, resultando na prisão de sete mulheres, submetidas por oficiais a “testes de virgindade” ilegais. Em junho de 2012, houve registro de estupro de dezenas de mulheres, durante uma manifestação contra assédios sexuais, o que se repetiu no dia 25 de março de 2013, quando, pelo menos, 25 mulheres foram violentadas na Praça Tahrir, segundo informações do Alto Comissariado de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), durante a comemoração dos dois anos da revolução, em janeiro de 2013.43

Em nossa percepção, o caso #OccupyWallStreet, com o acampamento em Zucotti Park, teve um papel diferenciado: visibilizar o problema em âmbito mundial. Para isto, tornava-se estratégico destacar a responsabilidade do sistema financeiro na crise que atingia países em diferentes continentes a partir do próprio centro financeiro, chamar a atenção da própria população estadunidense e atrair o apoio da intelectualidade de esquerda naquele país. Não por acaso, somente depois de algum tempo, passada a surpresa inicial, o acampamento, situado em pleno coração do capitalismo financeiro, em Nova York, passou a receber dezenas de visitas ilustres, a exemplo de Naomi Klein, Angela Davis, Michael Moore e Slavoj Zyzek.

Ao mesmo tempo, o #OWS fez parte de um conjunto de estratégias que culminaram no #15O (15 de outubro), Dia de Ação Global (DAG)44, data para a qual foi programada uma grande concentração em Bruxelas, durante o encontro da Comunidade Econômica Europeia (CEE), ponto de convergência de uma grande marcha que teve início em diferentes países. Assim, o #OWS é marcado para acontecer um mês antes do #15O. A estratégia foi bem sucedida: finalmente, a mídia mundial passou a dar atenção ao que acontecia nas ruas. Os protestos passaram a ter visibilidade, tornando-se um acontecimento midiático, ao mesmo tempo estimulando a deflagração de uma onda de acampamentos em outras cidades dos EUA.

Um aspecto em comum desses acampamentos foi a intervenção policial cujo grau de agressividade e violência variou conforme os países. De todo modo, o caráter não violento de manifestações e acampamentos foi uma característica importante na construção de laços solidários entre participantes. Na Espanha, a violência policial para retirar o acampamento da

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<http://operamundi.uol.com.br/conteudo/reportagens/27665/mulheres+sofrem+com+estupros+na+praca+tahrir +dois+anos+apos+revolucao+egipcia.shtml>. Acesso em: 10 dez. 2013.

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Os Dias de Ação Global fazem parte de uma estratégia de ação conjunta elaborada por movimentos sociais que fundaram, em 1998, uma campanha global conhecida como Ação Global dos Povos (AGP), fundada por dez movimentos sociais, entre eles o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o MST. Os quatro princípios da AGP são; rejeição explícita de instituições especuladoras, como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e acordos de liberalização do comércio; atitude de confronto; chamada para desobediência civil não violenta e construção de alternativas locais pelas comunidades locais, como resposta à ação de governos e corporações; e filosofia organizacional baseada na descentralização e autonomia. Cf. LUDD, 2002, p. 17-18.

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praça, logo após a instalação das primeiras barracas, motivou a permanência como ato de resistência.