• Nenhum resultado encontrado

3 ÀS CIDADES, A CIDADANIA

3.5 RUAS PLENAS DE AFECTOS E PERCEPTOS

3.5.1 Um giro pelo mundo

3.5.2.3 O ativismo de sofá #vemprarua

Esse cenário sofreu uma grande mudança, a partir de junho de 2013, com a entrada em cena das manifestações públicas em defesa do passe livre e pela melhoria da qualidade do transporte. Uma vez que o panorama inicial das manifestações brasileiras – com suas motivações, características, sujeitos em cena, dentre outros – foi apresentado no primeiro capítulo e que sua caracterização e análise serão objeto do capítulo seguinte, não há motivos para pormenorizá-las neste item.

Nesse momento, importa recordar que a iniciativa do Movimento Pelo Passe Livre se tornou uma espécie de senha para que outros coletivos e indivíduos levassem às ruas um conjunto de indignações, decorrentes de demandas insatisfeitas no campo da cidadania e do acesso a direitos, associado a uma crise de representatividade no sistema político institucional. Uma multidão tomou as ruas de grandes e pequenas cidades do país, gerando comoção e envolvimento na sociedade e impactos no governo, nas agremiações políticas, na mídia de

71

massa e nos movimentos sociais tradicionais. Incorporadas ao cotidiano dos brasileiros, as mobilizações evidenciavam que, mesmo com os avanços obtidos, durante os últimos anos, nos campos social e econômico, permanecia latente uma insatisfação generalizada, de origem difusa e aparentemente incompreensível. Em uma carta dirigida aos estudantes, Eugênio Bucci (2013) esboça o contorno desse acontecimento:

[...] as massas nas ruas não querem tomar o poder – elas apenas são candidatas a cidadãs. [...] o fenômeno brasileiro guarda, sim, semelhanças com o que vimos na Primavera Árabe, nos indignados espanhóis, no Occupy Wall Street, no movimento estudantil chileno. Melhor: no conteúdo, também há várias analogias. Esses levantes todos carregam aspirações próprias do viver, próprias do modo de vida, falam de romper amarras, reclamam dignidade dos serviços públicos e pretendem domesticar o Estado (não por acaso, são as forças encasteladas no aparelho de Estado que vivem querendo domesticar as massas). Quanto à forma dessas manifestações, podemos constatar que, em todos esses episódios, os indivíduos, tal como existem no mundo da vida – sem atuação organizada na esfera pública –, entraram, sem convite, na cena pública para abalar a inércia das instituições. Com o Brasil, agora, não é diferente.

Quando esses elementos emergem no cenário político, evidenciam a presença de qualquer um na disputa pela partilha política e se instituem como novos sujeitos falantes em uma esfera pública ainda desigual (ÁVILA, 2001). Assim, teremos aí vozes dissonantes em relação ao Estado, mas, também, em relação aos partidos políticos, associações e movimentos sociais, vozes que trazem a possibilidade de construção da comunidade inédita: aquela, segundo Rancière (1996), que toma o conflito como parte inseparável do jogo político igualitário.

Em um contexto como esse, convém refletir que, além dos instrumentais políticos e teóricos disponíveis para análises sobre os acontecimentos em curso, é preciso que sejam elaborados novos referenciais para dar conta do que, até então, não havíamos visto como experiência. Contudo, ao mesmo tempo, reconhecemos que é muito cedo para arriscar análises que apontem prognósticos. Por este motivo, qualquer leitura feita sobre este terreno movediço, notadamente, é da ordem do provisório e, portanto, não conclusiva. Admitir possíveis erros é parte do processo de compreender o que se passa.

Por esses motivos, corremos o risco de não contemplar a complexidade do ocorrido no Brasil e no mundo. Ainda assim, é possível identificar como características dessas manifestações: o papel mediador das tecnologias de comunicação, que se expressam, principalmente, por meio da ampliação da convocação espontânea pela internet; mudanças na produção e veiculação da cobertura jornalística onde o duplo papel de comunicador que é, também, agente da ação suscitou um debate nacional sobre a qualidade do jornalismo feito no

72

Brasil, com ênfase nos limites do jornalismo mainstream; a presença multifacetada da violência, que inclui desde a violência policial até o emprego da violência como instrumento de resistência popular; a presença de sujeitos coletivos representativos dos mais diferentes matizes ideológicos – radicais de esquerda e de direita , movimentos apartidários, porém não apolíticos, movimentos sociais ligados à luta de classe e à luta por direitos civis; a presença preponderante da juventude, sugerindo uma renovação nas lideranças políticas e nos modos do fazer político; o desdobramento das grandes aglutinações em movimentos organizados e mais visíveis na luta por pautas locais; e a retomada da política como dimensão do cotidiano.

Importa considerar que os episódios que vinham ocorrendo desde 2011, no exterior e no Brasil, por si só funcionaram como laboratório de experimentações de novas formas de associativismo e ações coletivas que criaram uma atmosfera favorável aos acontecimentos de 2013. Ao mesmo tempo, é pertinente considerar que a disputa por uma reconfiguração da partilha do poder político não arrefeceu no exterior. Ela se expressa nos processos ainda em curso, como é o caso das redes cidadãs, surgidas na Espanha a partir do #15M; no uso de armas químicas, na guerra civil na Síria, e suas repercussões na comunidade internacional; nas rebeliões em países como Turquia, Bósnia e Bulgária, entre maio e junho de 2013, que ganharam novos contornos em setembro; na crise deflagrada pelos protestos contra o presidente Moursi, no Egito, que levaram a um golpe militar em julho; e no assassinato de um ativista e rapper por neonazistas, na Grécia.

Esses novos fatos, simultâneos às manifestações massivas no Brasil, evidenciam os laços de solidariedade que se formam além fronteiras e o impacto recíproco, independentemente das grandes diferenças e distâncias que se guardam entre os diversos contextos. Eles nos levam a crer que podemos inscrever as manifestações brasileiras no âmbito do que Manuel Castells (2012) define como um novo modelo de movimentos sociais, ou, até mesmo, de novas formas de mudança social surgidas no marco de uma profunda transformação das relações de poder, em interação com mudanças no campo das comunicações.

Algumas pistas sobre o que aproxima e distancia a experiência brasileira das demais revoltas são apontadas pela socióloga Maria da Glória Gohn (2013b):

[...] O movimento acontece “em se fazendo”, e não via grandes planos de organizações com coordenações verticalizadas. Conecta-se a redes de apoio internacional, e a solidariedade entre eles é um valor e um princípio. São [as manifestações] laboratórios de experimentações de novas formas de operar a política. Dirigem suas reivindicações a personagens específicos da cena público- política de cada país.

73

É a partir desse ponto de convergência que Gohn (2013b) localiza as diferenças entre a experiência brasileira e os demais processos, ocorridos: na Europa: não temos o mesmo grave contexto de crise econômica e social com retirada de direitos; no Norte da África, onde ditaduras ou frágeis democracias se associam ao forte controle religioso; e nos Estados Unidos, que adotaram formas diferentes de agir.

Feitas estas colocações, passaremos ao próximo capítulo, onde será apresentado o registro de uma experiência na rua: a passeata conhecida como 1º Ato “À Luta Recife!”, para efetuar uma análise dessa experiência e da comunicação a ela circunscrita, à luz das referências teóricas apresentadas nesta dissertação.

74

4 20 DE JUNHO DE 2013: “ESQUINA, MAIS DE UM MILHÃO...”