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5 A COMUNICAÇÃO COMO VETOR DA EXPERIÊNCIA SENSÍVEL NA

5.2 EU FALO, TU SILENCIAS, ELES DEBATEM: #TAMOJUNTO? MODOS DE

PARTILHAS E (DES)IGUALDADES NA REDE

A adesão massiva ao 1º Ato “À Luta, Recife!” teve motivações as mais diversas. Este fenômeno pode ser visualizado, em parte, por meio de uma enquete realizada por internautas na página do evento no Facebook, criada pelo DCE Unicap. No capítulo sobre o campo e o método, explicamos a importância e o funcionamento destas páginas de evento, portanto, não retornaremos a este aspecto; abriremos um espaço aqui para explicar a dinâmica de funcionamento das enquetes.

Essas pesquisas podem ser feitas por qualquer perfil que se associe à página de evento ou comunidade e não há limites para a inserção de respostas a serem votadas. Assim, um perfil pode criar uma enquete com um número x de opções de respostas e ser votada, por exemplo, por outras 100 das quais ao menos 10 inseriram novas opções de respostas. Sendo assim, trata-se de um método aleatório de mapeamento de opiniões e que, ainda que não tenha caráter científico, vale a pena ser observado por construir um retrato dos afetos em fluxo na rede. Além disto, as enquetes também podem gerar comentários e impulsionar o debate.

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Figura 33  Enquete na página do Evento #ÀLutaRecife – junho de 2013

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Ao longo do monitoramento da página do evento #ÀlutaRecife, escolhemos quatro enquetes para monitorar. Dentre estas, a que obteve maior repercussão trazia como título a seguinte pergunta: “Qual é a sua verdadeira luta?”. A enquete (Figura 33) recebeu 42 propostas de respostas, 11.817 votos e 191 curtidas. Dentre as alternativas apresentadas, os cinco motivos mais votados na página do evento foram: 1º) “saúde, educação, corruptos, transporte público e impostos altíssimos”  6.500 votos; 2º) contra a PEC 37 (que reduz o poder de investigação criminal do Ministério Público)  1.900 votos; 3º) “todas as alternativas acima” (que incluía, além das mencionadas, a reforma pública e a oposição ao Estatuto do Nascituro)  1.600 votos; 4º) segurança pública  188 votos; e 5º) corrupção  174 votos.

Essas pesquisas têm valor ilustrativo, dado que qualquer perfil pode acrescentar itens à lista, quando não se percebe contemplado pelas alternativas iniciais, de maneira que um mesmo tema pode aparecer mais de uma vez, isolado ou acompanhado de outras proposições. Exemplo disto é o tema da reforma política, que encabeçava a lista de alternativas nesta enquete, e que aparece duas vezes sozinho, sendo a primeira com 59 votos e a segunda com 11 votos, além de ter aparecido como parte de uma frase maior ao lado de outros temas, o que lhe valeu mais de 6.500 votos além daqueles já mencionados. A mesma coisa ocorre com os temas da saúde e educação. Entre as pautas menos votadas, destacam-se “fora Dilma”, “a favor do anarquismo” e “liberdade, igualdade, amor e conhecimento”, todas com apenas um voto.

O humor também se fez presente na enquete, contribuindo para a ambivalência presente na mobilização aqui associada ao futebol, devido à realização da Copa das Confederações que teve no Recife uma de suas cidades sedes. Assim, a proposta “por Caça Rato na Seleção96” recebeu 19 votos – a mesma quantidade angariada pela proposta que vinha logo em seguida, de aumento de salário para os militares.

Outro aspecto que nos chama a atenção em comentários postados na internet  e isto ocorre, com frequência no Facebook  é a carga emocional que se faz presente em muitas intervenções (comentários). No caso das enquetes que observamos – mas também em outros debates ocorridos nesta página –, é muito comum que os perfis se deixem levar por emoções, assumindo posturas autoritárias, preconceituosas, o que evidencia um modo idiossincrático de lidar com outras opiniões manifestadas pelos demais internautas no espaço das comunidades digitais.

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Caça Rato é o apelido de Flávio Augusto do Nascimento, jogador do Santa Cruz, clube de futebol pernambucano, reconhecido por ser o time de preferência das classes populares.

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As demais enquetes produzidas na página do evento 1º Ato “À Luta, Recife!” são bastante ilustrativas do que acabamos de afirmar, como se poderá observar pelo tipo de perguntas e respostas criadas nas enquetes. No caso das respostas, ilustramos apenas com aquelas que foram mais votadas, apresentando o escore correspondente. As enquetes monitoradas giravam em torno das seguintes questões: motivações que levaram as pessoas aos protestos, vandalismo, presença de partidos políticos e o confronto entre “pacifistas” e “vândalos” (Quadro1).

Quadro 1 – Enquetes realizadas na página do evento 1º Ato “À Luta, Recife!” – junho, 2013 PERGUNTAS VOTANTES OPÇÕES

DE RESPOSTA RESPOSTAS MAIS VOTADAS Nº DE VOTOS / RESPOSTAS NÚMERO DE CURTIDAS O que devemos fazer se um/algum grupo de vândalos começarem a fazer baderna? 4.693 25 - tentar impedir - gritar: não à violência - nos afastar 1.900 1.600 371 60 Você é a favor do uso de spray com tintas para marcar bandidos e desordeiros que queiram estragar o ato pacífico? 277 9 - sim, spray vermelho

- não, não adianta - marcar c/ ferro em brasa no rosto os vândalos 195 65 07 11 Pode-se usar bandeira partidária? (vamos fazer uma votação, afinal, estamos numa democracia?) 5.129 13 - não - movimento é do povo, não de partido; nada de oportunista - usa quem quer, protesto é livre - é protesto, não comício 3.900 613 242 133 51

Fonte: Página do evento Facebook

Pelos tipos de respostas mais votadas, é possível inferir que a maioria dos votos corresponde a posicionamentos conservadores e preconceituosos, a exemplo da primeira pergunta onde uma das atitudes mais votadas é “gritar não à violência” (grifo nosso). Consideramos pertinente destacar o apoio à delação, evidenciado na segunda questão, pelo número de respostas que apoiam a identificação com tinta vermelha de quem viesse a agir na passeata de modo não pacífico. Os termos empregados – tais como “bandidos”e “desordeiros” – e mesmo a proposta de marcar com “ferro em brasa no rosto dos vândalos” são indicativos

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do pouco (ou nenhum) conhecimento sobre as práticas de grupos políticos radicais (a exemplo dos anarquistas que usam a violência como tática dirigida a atingir objetivos políticos) associado ao modo pelo qual a grande mídia traçou um recorte para estabelecer uma oposição entre os participantes das passeatas: de um lado, os legítimos manifestantes pacíficos, de outro, os vândalos cujas atitudes violentas os descredenciaram como manifestantes. Esta forma de abordagem da questão, aos poucos, seria acentuada com a entrada em cena dos

Black Blocs.

Os debates não seguem uma linha dialógica ou, muitas vezes, sequer se aproximam de um diálogo. Há muitos perfis que repetem opiniões como uma tática para serem lidos (algo que se pode observar com frequência em assembleias políticas onde há muitas disputas de sentidos em jogo) e poucos são os comentários que mantêm, de fato, uma interação com os demais participantes. Além disto, como não há mediação do diálogo, há intervenções que não dizem respeito ao tema em votação. É comum, também, que perfis aproveitem o espaço das votações para prestar informações de apoio à participação ou para fazer repercutir boatos, principalmente aqueles que servem para desmobilizar ou para atemorizar participantes. Poucos são os posts que contribuem para uma politização em torno das questões apresentadas.

Além das enquetes, qualquer outro tipo de post publicado no Facebook pode operar como motivo gerador de um debate. O diálogo a seguir, realizado na comunidade virtual do grupo Direitos Urbanos97 contém uma série de elementos caros à discussão proposta por este estudo, seja no que se refere aos temas focados ou subjacentes seja pelas possibilidades de leitura das tensões e contradições que evidencia. (Figura 34).

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Para facilitar a leitura dos comentários, Identificamos cada um deles por meio da letra C (Comentários) agregada a um número que indica a ordem de seu aparecimento na sequência do debate.

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Figura 34  Debate prévio: 1º Ato “À Luta, Recife!”  19-20 de junho de 2013

Fonte: Página do Grupo Direitos Urbanos, no Facebook

O primeiro post inicia o diálogo expressando um sentimento de alegria, que logo se perde, a partir de um terceiro comentário (C-3) que manifesta preocupação sobre a possibilidade de haver práticas violentas na manifestação. O tema passa, então, a ser o fio condutor do diálogo. É possível observar que, em diversos comentários, a violência é associada a termos que, ao expressar preocupação, alimentam um clima de apreensão, potencializado pela falta de clareza quanto ao perfil e intencionalidade de pessoas que estariam presentes à manifestação, aliado ao fato de não haver liderança formal. Destacamos a seguir algumas destas expressões: “desconfiança” (C-3); “ações de indivíduos malucos numa massa de milhares” (C-7); pessoas que portavam máscaras eram associadas a “agitadores contratados por contrários ao movimento que querem desmoralizar a manifestação” (C-8) e a “infiltrado para fazer o mal e depredar” (C-13); e o alerta “cuidado com bandidos” (C-14).

Ao menos três pessoas vincularam links a esse debate. Em dois casos – o link para o artigo de André Forestieri (C-17) e o outro para o blog “Recife Resiste!” (C-18) –, os textos buscam dissociar a violência do vandalismo inconsequente. Como os links foram postados apenas com um vago convite à leitura, não é possível perceber por ali a opinião de quem os apresentou. Porém, se compararmos tais convites aos links com outros posts apresentados

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pelos mesmos comentadores, é possível inferir que seus autores apoiam as reflexões de Forestieri e do blog “Recife Resiste!”.

É interessante contrapor a esses links, outro post (Figura 35), que se localiza no comentário C-14. Este vem acompanhado de um link para o site do radialista e apresentador de televisão, Joslei Cardinot, que comanda o programa policial “Cardinot aqui na Clube”, veiculado pela TV Clube, dos Diários Associados:

Figura 35  Detalhe do site de Joslei Cardinot

Fonte: Facebook – página da Comunidade Direitos Urbanos com link para <www.cardinot.com>.

A estratégia do participante no debate, para legitimar seu alerta contra possíveis “bandidos” que estariam presentes à passeata, é se amparar em denúncia e apelo feitos por este radialista da grande imprensa, conhecido por abordagens sensacionalistas das tragédias cotidianas – fato que já lhe havia rendido uma ação na Justiça. Assumindo esta perspectiva, o comentador contribui para esvaziar o conteúdo político da discussão em prol de fortalecer a atmosfera de medo e apreensão.

Entretanto, vale a pena nos determos um pouco mais no discurso do comentário C-14 (Figura 36).

Figura 36  Detalhe: Comentário  Grupo Direitos Urbanos – 20 de junho de 2013

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Ao legitimar os protestos que se organizaram a partir dos “manifestantes”, mesmo sem identificá-los, o comentarista traça uma nítida separação entre estes e a “sociedade”, como se a organização em movimentos não fosse, ela própria, um processo social. Ao mesmo tempo, há uma evidente associação entre sociedade e banditismo, que pode ser percebida pelo emprego da palavra “portanto”, por meio da qual o autor do comentário estabelece uma relação de causa e efeito: se a sociedade acompanha, os bandidos aparecerão.

É possível perceber, aí, uma atitude similar àquela identificada na enquete sobre vandalismo. Trata-se de abordagens emblemáticas dos modos desiguais pelos quais se dá a partilha do sensível na política (RANCIÈRE, 2005a) brasileira, dado que evidenciam a resistência que ocorre quando os “sem parte” decidem tomar parte nos processos que se organizam em torno das decisões sobre o bem comum.