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O riso, o humor, a festa: entre a transgressão e a confirmação da ordem

3 ÀS CIDADES, A CIDADANIA

4.2 IMPRESSÕES SOBRE UM OBJETO EM MOVIMENTO NÃO IDENTIFICADO

4.2.6 O riso, o humor, a festa: entre a transgressão e a confirmação da ordem

O humor e o riso se destacavam como elemento constitutivo da experiência da passeata, realizada de forma espontânea, sem qualquer tipo de coordenação, a não ser as convocatórias enviadas por meio das redes sociais a partir de emissores diversos, a exemplo da página criada pelo DCE Unicap, como mostramos no início deste capítulo. Dada a invisibilidade de algum tipo de comissão coordenadora do evento, o ambiente parecia se tornar mais permeável ao riso coletivo, aqui compreendido nos termos colocados por Bakthin (apud MARTINS, 2009, p. 131), ou seja, como aquele que “se opõe ao tom sério e à sobriedade repressiva da cultura oficial e do poder político e eclesiástico, e que procura ser negativo e destrutivo.” As imagens a seguir (Figura 27) são bastante ilustrativas a esse respeito.

Figura 27  Deboche do poder público: 1º Ato “À Luta, Recife!”  20 de junho de 2013

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Na foto à direita, o cartaz usa a linguagem comumente utilizada na criação de memes, a exemplo daqueles popularizados na internet, destacando uma frase que segue a tendência nacional de ampliar os sentidos das manifestações para além da questão da mobilidade urbana. Assim, “R$ 0,10 não vale nem um dudu” reflete o pouco valor dado ao anúncio da redução das tarifas de ônibus, antecipada pelo governador de Pernambuco, Eduardo Campos78, diante dos problemas que vinham sendo expostos nas ruas, e que se completa na frase “É por muito mais que isso que estamos lutando”. O tom jocoso joga com o duplo sentido da palavra “dudu”, que assume, neste contexto, um duplo significado: além de ser empregada no Estado como diminutivo para o nome do governador Campos, também nomeia uma bebida caseira, feita à base de suco ou vitamina congelado e vendidas em saquinhos.

Os “dudus” – também conhecidos como sacolé, chup chup, raspadinha – são bastante populares e vendidos na rua a baixíssimo custo. A foto à direita (Figura 27) destaca duas mulheres integrantes de um grupo que portava gigantescos “dudus” feitos de plástico inflado. O contorno fálico do objeto que elas seguram reforça o sentido expresso no cartaz, ao mesmo tempo em que projeta a imagem grotesca de um poder que remete ao tradicional modelo de governança das oligarquias, que articula a centralização de decisões, as privatizações com práticas populistas e midiáticas, em nome da construção de um projeto político de poder mais ousado, o que já valeu ao governador o apelido de “Imperador”79

.

Riso e humor também podem apenas contribuir para reafirmar o caráter festivo da manifestação, independente de se contrapor a uma certa “ordem natural das coisas” instituída e legitimada, apenas representando “a hierarquia dos valores sociais das normas vigentes, reafirmando-as coletivamente” (TURNER, s/d apud MARTINS, 2009, p. 132). Encontramos exemplos de diferentes tipos acerca do que acabamos de afirmar.

O primeiro aspecto que queremos ressaltar diz respeito à própria diluição da política em festa, que pode ser percebida em comunicados diferentes, um dos quais faz alusão à própria manifestação de rua: “Cadê o boy magia?”, perguntava o cartaz de uma jovem, o que sugere que ali importava mais a disposição de tempo e ambiente favorável a um possível encontro com o prazer. O outro comunicado diz respeito à pouca seriedade com que é tratada

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Cf. Governo anuncia redução na tarifa de ônibus e lança novo edital para licitação de linhas na RMR. Blog de Notícias do Governo do Estado de Pernambuco. Disponível em: <http://www.pe.gov.br/b/4863>. Acesso em: 9 ago. 2013.

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A este respeito, ver as análises de: ZAIDAN, Michel. Eduardo Campos: um imperador a serviço das oligarquias. Blog Virose Eleitoral. Disponível em: <http://viroseeleitoral.wordpress.com/ 2012/09/20/eduardo-campos-um-imperador-a-servico-das-oliguarquias/>; e LEMES, Conceição: DINIZ, Chico; BENTO, Daniel. Eduardo tem parentes no governo; secretário nega nepotismo. Blog Vi o Mundo. Disponível em: <http://www.viomundo.com.br/denuncias/eduardo-campos-tem-parentes-no-governo- secretario-nega-nepotismo.html>. Acessos em: 20 ago. 2013.

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a gestão de políticas sociais, sugerida em um cartaz abandonado na Praça da República, onde se encontrava a seguinte pergunta: “2,15 é open bar?”. Neste caso, o elevado preço da passagem do transporte público é equiparado ao custo de ingressos para festas privadas com a diferença de que estas últimas conferem direito à bebida alcoólica. Se, por um lado, evidencia-se aí a crítica ao fato de que são os usuários que custeiam o lucro das empresas privadas – sejam estas concessionárias de transporte público ou produtoras de eventos – também parece haver uma nítida confusão entre cidadania e consumo.

Um segundo aspecto diz respeito ao uso de palavras obscenas para contestar a influência do moralismo cristão nas definições de políticas que amparam o exercício dos civis no campo da sexualidade e reprodução. Assim, “Meu cu é laico, Feliciânus”, faz uma alusão ao Deputado Marcos Feliciano, pastor evangélico que, ao assumir a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal, passou a liderar uma cruzada contra a comunidade LGBT no Congresso Nacional. Na mensagem, que contém críticas dirigidas tanto à instituição do Estado quanto a um parlamentar, encontramos elementos do humor grotesco, como assinaladas por Bakhtin (2008): a inversão, o baixo no lugar do alto, a ambivalência e o exagero.

A crítica ao Estado remete à experiência do corpo pensado em sua integridade e não a partir de uma dissociação entre a sua materialidade e o espírito, nem mesmo entre corpo (campo sensível) e mente (campo racional). É nos corpos assim percebidos que se dão as escolhas privadas, inclusive, no âmbito da experiência sexual e amorosa, que precisam ser protegidas por um Estado que se afirma secular. Nesta perspectiva, o grotesco da frase desvela a permanência das relações ambivalentes entre Estado e instituições religiosas. Por outra parte, não basta apontar o problema do Estado, é preciso “escrachar” o político, termo usado para designar uma estratégia cada vez mais utilizada no interior dos protestos. Neste contexto, fazer trocadilho com o nome do deputado que confronta o ideário da liberdade sexual aponta para uma inversão. No momento em que Feliciano se torna Feliciânus, a felicidade que pode emanar do prazer sexual assume tanta importância quanto aquela que vem da fé religiosa e, ao mesmo tempo em que parece reafirmar ao próprio deputado o que ele nega a qualquer um: a possibilidade de alcançar felicidade por meio de práticas sexuais menos ortodoxas está ao alcance de todos, portanto, não exclui o parlamentar.

O terceiro aspecto se refere à própria ironia feita com essa diluição da política em festa, que se pode observar nas imagens a seguir (Figura 28).

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Figura 28  Do caráter festivo das manifestações  Recife, 20 de junho de 2013

Fonte: Acervo próprio

Ambas ironizam o aspecto festivo, porém, com sentidos opostos. Na imagem da direita, o rapaz estabelece uma conexão entre a multidão presente aos protestos espalhados pelo país e o Galo da Madrugada, bloco de carnaval que, sozinho, é capaz de reunir cerca de dois milhões de pessoas nas ruas do Recife.80 Assim, o convite parece apostar no interesse pelo carnaval como mote de mobilização. Já a imagem da esquerda nos sugere que não havia consenso quanto à necessidade de se dar maior importância à dimensão festiva do protesto  “O problema do brasileiro é que tudo vira festa. Isso não é festa”. Antes, tornava-se necessário alertar para os riscos aí implícitos. Riscos estes que podem ser lidos a partir de dois parâmetros: a falta de profissionalismo, de rigor, de ética e de compromisso político, historicamente presentes no Estado brasileiro e por outra parte, como um recado aos próprios manifestantes para que não se deixassem levar pela euforia e excesso de otimismo que tendem a cercar estes acontecimentos que se desenvolvem com a participação das multidões.