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5 A COMUNICAÇÃO COMO VETOR DA EXPERIÊNCIA SENSÍVEL NA

5.1 APROXIMAÇÃO INICIAL DE PRODUTOS COMUNICACIONAIS

5.1.1 As Jornadas de Junho segundo organizações e movimentos sociais

Em um primeiro momento, nos detivemos na leitura dos documentos produzidos por organizações sociais, sindicatos, ONGs e movimentos sociais. Especificamente, a “Carta

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aberta à Presidente Dilma”, a nota pública dos movimentos sociais, intitulada “Nas ruas por igualdade, justiça social e democracia”, a “Nota da AMB diante das mobilizações sociais” e a “Carta das centrais sindicais e movimentos sociais aos pernambucanos e às pernambucanas”, e que podem ser lidas, na íntegra, nos Anexos A, B C e D desta dissertação.

O interesse por esses documentos reside no fato de explicitarem como as “Jornadas de Junho” são percebidas e ressignificadas por sujeitos coletivos identificados com a tradição dos movimentos populares e que não tomaram parte direta nas articulações que resultaram nas revoltas massivas que tomaram as ruas do país. Interessam, também, pela possibilidade de nos dar a ver as nuances que vão compor diferenças nesta produção simbólica e que variam conforme o lugar de fala a partir do qual demarcam seu lugar de sujeito.

Em linhas gerais, todos apresentam, em maior ou menor profundidade, sua leitura do momento político, identificam as possíveis causas dos problemas que resultaram nas “Jornadas” bem como os responsáveis pela situação e que devem ser tratados como “inimigos”, termo utilizado em um dos documentos. Enfatizam, sobretudo, o papel do capitalismo financeiro e o papel da mídia, destacando, neste último caso, a sua força e possibilidade de capturar os sentidos das manifestações apresentando somente o que a ela interessaria destacar. Foram dirigidas críticas também à violência de Estado reconhecida na atitude repressora da polícia em diferentes estados. Todos os documentos apresentam, independente do grau de detalhamento, pauta de reivindicações, agenda ou questões para debate com o poder público, reafirmam seus compromissos com as causas populares, a construção da democracia e o combate às injustiças assim como o reconhecimento das lutas da juventude, com as quais se dizem comprometidos, e nessa perspectiva, todos eles afirmam a importância das “Jornadas de Junho”.

Entretanto, é possível perceber que, apesar desse reconhecimento, os documentos servem mais como oportunidade para que esses movimentos destaquem a importância de sua luta e trajetória na construção de processos sociais que possibilitaram às novas gerações tomar a frente das “Jornadas”. Em suma, as revoltas servem como pretexto para que estas organizações reafirmem sua tradição de luta. O grau de proximidade dessas entidades com os partidos de esquerda e da base de sustentação do governo federal também opera como um divisor no tom crítico que será dado à análise da situação socioeconômica e política do país e ao modo de se interpelar as autoridades. Neste sentido, a carta dirigida à Presidente Dilma Rousseff (Anexo A) apresenta um tom conciliatório, responsabiliza o setor empresarial, o capital estrangeiro, os “aliados de última hora” e a “burguesia” pelos problemas enfrentados no país. Em seguida, explicita sua percepção sobre a juventude que lidera o processo: os

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termos aqui empregados problematizam a inexistência de experiência anterior e focalizam o teor educativo de um processo que permitiria aos jovens “perceber que precisam enfrentar os que impedem o Brasil de avançar”. E é neste momento que os signatários do documento alertam sobre a importância de o governo abrir espaço às demandas populares, e se demonstram abertos ao diálogo entre o governo e a sociedade civil, ou seja, tomam para si a tarefa de condução de um processo de interlocução entre manifestantes e governo, independente de ter havido ou não essa demanda.

Esse documento, intitulado “Carta dos Movimentos Sociais à Presidente Dilma”, assinado por 30 movimentos sociais e organizações, e datada de 19 de junho, afirma que:

Mais que um fenômeno conjuntural as recentes mobilizações demonstram a gradativa retomada da capacidade de luta popular. É essa resistência popular que possibilitou os resultados eleitorais de 2002, 2006 e 2010. [...] As recentes mobilizações são protagonizadas por um amplo leque da juventude que participa pela primeira vez de mobilizações. [...] O momento é favorável. São as maiores manifestações que a atual geração vivenciou e outras maiores virão. Esperamos que o atual governo escolha governar com o povo e não contra ele.84

Por outra parte, o documento intitulado “Nas ruas por igualdade, justiça social e democracia”, assinado por outras 25 organizações e movimentos sociais, no dia 22 de junho, localiza as “Jornadas de Junho” no contexto de um processo histórico mais amplo das lutas sociais por igualdade e ampliação de direitos no Brasil, em trecho destacado na abertura do

post (Figura 32 e Anexo B):

Figura 32 – Nota Pública de Movimentos Sociais – 23 de junho de 2013

Fonte: Facebook

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Signatária desse documento, a Articulação de Mulheres Brasileiras segue por essa mesma vertente em outra nota, emitida sozinha (Anexo C). Nesta última, afirmam que as manifestações são uma “resposta justa e democrática aos governos que não se importam com os graves prejuízos acumulados ao longo dos anos” pela população. Dessa forma, dão a perceber a existência de um mal-estar represado na sociedade acerca de questões diversas, que extrapolam o tema do transporte público, mas que junto com ele, precisam redesenhar os sentidos do sistema democrático no país. Nesta perspectiva, atentam para a tensão sobre a qual se mantém a rebeldia, alertando que esta pode se tonar “destrutiva” e ser “utilizada pela direita e os meios de comunicação para contestar os avanços no campo dos direitos”, numa clara demonstração de crítica às tentativas de criminalização dos movimentos sociais por parte da mídia. Por fim, estabelece uma relação direta entre a prática política e a teoria social ao afirmar que o contexto exige “formas de organização social que possam ajudar a dar impulso aos novos caminhos de protesto social e a definição de um novo paradigma de sociedade democrática e igualitária”.

Já a nota produzida pelo grupo “Direitos Urbanos” mistura o tom de manifesto com um convite à passeata do dia 20 de junho. Destaca-se das demais pelo tom de informalidade e de diálogo com que visa estimular os internautas à participação política e pela ênfase à necessidade de os manifestantes cuidarem do ambiente e das pessoas que lá estarão presentes. Assim, o DU propõe que sejam evitados confrontos com manifestantes de posições divergentes e/ou com a polícia e que haja atenção e solidariedade, por meio de eventual socorro a possíveis vítimas, caso haja acirramento de tensão e conflitos. As duas notas emitidas pelo DU afirmam seus vínculos e comprometimentos com as lutas e movimentos populares. A primeira delas, veiculada no dia 19 de junho (Anexo G), reproduz, ao final, a mesma agenda nacional de lutas e, agregada a ela, uma pauta local. Já a segunda nota, emitida no dia 21 de junho (Anexo H), destaca a crítica aos conflitos ocorridos entre manifestantes motivados pela presença de bandeiras de partidos políticos e de movimentos sociais que foram rechaçadas por parte das pessoas que estiveram presentes à manifestação.

Do mesmo modo, em nota intitulada “Nem um minuto de silêncio” (Anexo F), o “Movimento Zoada” defende ser este “um relevante momento histórico que nos conduz ao processo de conscientização das massas e de conquistas para o povo, ampliando o diálogo do Estado com os movimentos sociais”. Esta convergência de pensamentos reflete o fato de os coletivos que estavam à frente das manifestações apresentarem as mesmas pautas, agendas ou temas que foram apresentados pelos movimentos populares. Isso faz perceber que apesar das

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críticas a movimentos sociais com longa trajetória política, estas não significam, necessariamente, uma ruptura com os mesmos.

Por fim, a nota emitida pelo Diretório Central dos Estudantes da Universidade Católica (Anexo I) enfatiza três aspectos importantes: a necessidade de que os movimentos e coletivos construam uma pauta “bem definida, com objetos factíveis e palpáveis” para serem cobradas ao poder público, alertando que a falta de objetividade esvazie o sentido das manifestações públicas, transformando-as em “caminhadas e passeatas” (grifo dos autores) quando, em última análise, devem incidir junto aos governos. Apesar de seu evidente protagonismo no processo, evidenciado no Facebook, o DCE da Unicap faz questão de legitimar outros sujeitos coletivos como lideranças da construção dessas manifestações e finaliza o texto, manifestando preocupação com a carnavalização dos protestos.

Diante do exposto, é possível afirmar que a politização das “Jornadas” , expressa nos diferentes manifestos, visam confrontar o modo como a mídia interpretava as revoltas. Entretanto, chama-nos a atenção o fato de que, na maioria das vezes – com exceção das notas públicas do grupo DU, do DCE e do Movimento Zoada –, os demais manifestos analisados não pareciam repercutir nas redes sociais digitais. Não localizamos, por exemplo, nenhum debate a partir de sua veiculação nas páginas no Facebook. Isto reforça a compreensão de que tais movimentos não operaram mudanças na sua comunicação que lhes permitissem abrir diálogos mais amplos com a sociedade, expandindo sua capilaridade na sociedade por meio das redes digitais de relacionamentos. Ao mesmo tempo, não conseguem atrair a atenção mesmo daquelas pessoas que, nos últimos anos, vêm participando dos debates políticos em torno das políticas urbanas no Recife e do modelo de desenvolvimento em implantação em Pernambuco.

Para demonstrar o que acabamos de afirmar, identificamos que a primeira nota veiculada pelo DU, no dia 19 de junho (Anexo G), teve 38 comentários emitidos por 17 perfis e 60 curtidas; já a segunda nota, emitida no dia 21 de junho (Anexo H), contou com 377 curtidas e 23 comentários de 18 perfis. A nota do DCE/Unicap angariou 164 curtidas, 37 comentários e O manifesto elaborado pelo “Movimento Zoada” (Anexo F) obteve 35 curtidas, 51 compartilhamentos e 4 comentários de 3 perfis, ao passo que a nota elaborada pelos movimentos sociais (Anexo B, Figura 32) teve apenas quatro curtidas. Reconhecemos, no entanto, que o “curtir” pode sofrer alguma variação, sendo necessário considerar o perfil de quem veicula a informação e sua rede de contatos. Mesmo assim, considerando o universo de relações aos quais estão circunscritos, a diferença de repercussões nesse microuniverso é significativa.

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As questões expostas nos sugerem que, apesar dos modos difusos, e, muitas vezes despolitizados, observados nas manifestações, é inegável que as “Jornadas de Junho” revigoram o exercício da política, como também parecem ser um marco de mudanças profundas nos modos de fazer ação política, mesmo que ainda não seja possível afirmar quais tipos de novas experiências tais manifestações irão gerar. Um dos motivos pelos quais esta perspectiva ainda não se dá a ver deve-se ao fato de que estes acontecimentos são recentíssimos e ainda provocarão desdobramentos importantes em 2014, considerando-se ser este ano de Copa do Mundo e de eleições gerais no Brasil.

Por outra parte, não é possível tratar as “Jornadas de Junho” – e, em particular, a manifestação do dia 20 daquele mês – de forma isolada. É preciso fazer a sua leitura dentro de um contexto mais amplo, no plano internacional, buscando identificar quais são os traços em comum que dão a possibilidade de ver, nesta série de levantes, algum diferencial em relação ao já ocorrido anteriormente. Com esta dissertação, não temos a pretensão de dar conta desta empreitada, porém, as análises que aqui elaboramos não podem perder de vista esta dimensão, sob o risco de tratar o objeto de pesquisa de forma ensimesmada, sem permitir generalizações a partir do estudo empírico.

Seguindo essa linha de raciocínio, compreendemos que o elemento que une experiências tão diversas pode ser encontrado no campo da experiência sensível. Pautando-se nos casos da Islândia (2008-2009) e Tunísia (2011)  consideradas como experiências seminais das mudanças políticas em curso , Castells (2012) oferece uma explanação que nos é útil para compreender como se opera este circuito de emoções entre as redes e as ruas. O sentimento de poder, experimentado por cidadãs(ãos), nasce da indignação contra governos e classe política, produzida pela raiva contra a cumplicidade entre estes e a elite financeira. Qualquer acontecimento inaceitável pode disparar uma reação emocional85. Fluxos de comunicações nas redes digitais articulados à presença das comunidades no espaço urbano produzem um sentimento de união que leva à superação do medo. Tais elementos confluíram com um ambiente marcado por mudanças políticas e uma cultura cívica oriunda da ação de movimentos sociais: “transformações que materializaram a possibilidade de conseguir

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A crise financeira mundial de 2008 provocou o endividamento do país, com a cumplicidade do governo. A população da Islândia articulou uma série de protestos até conseguir derrubar o governo, reescrever a Constituição e realizar um plebiscito onde decidiu pelo calote da dívida externa do país para com bancos europeus. Pela primeira vez, uma mulher, lésbica declarada, Johanna Sigurdardottir, assume o cargo de Primeira Ministra e metade do novo gabinete é constituído por mulheres. No caso da Tunísia, a derrubada da ditadura de Ben Ali, em janeiro de 2011, que teve como estopim a imolação do vendedor de frutas Mohamed Bouazizi, em dezembro de 2010, em protesto contra a sistemática pressão policial por suborno. O episódio deu início à Primavera Árabe.

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algumas reivindicações chaves dos manifestantes” (CASTELLS, 2012, p. 38) dando forças à população para confrontar o poder instituído.

Tomando como referência o percurso das emoções nessas experiências, cabe-nos perguntar: quais emoções e sentimentos se fizeram presentes na experiência em questão no Recife e foram perceptíveis na comunicação em rede e nas ruas? Que condições existem hoje, no país, que tornaram possível essa partilha de afetos? A quais caminhos estes levaram? Quem tomou parte da construção destes caminhos e quem ficou de fora?

Aqui entramos, então, na leitura de outras formas de processos comunicativos que nos permitam obter um panorama dessas questões.