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5 A COMUNICAÇÃO COMO VETOR DA EXPERIÊNCIA SENSÍVEL NA

5.3 ENTRE O PAPELÃO E A TELA MOVEM-SE AFETOS

A retomada do espaço público tem adquirido novos contornos, uma vez que essa experiência pública é cada vez mais mediada por tecnologias de comunicação. Na atualidade, não basta ocupar a cidade: faz-se necessário transmitir ao mundo o que acontece, buscando tecer conexões com o que ocorre em outros territórios. Nesta paisagem  em que se dá uma profunda crítica às formas tradicionais de organização política associada aos debates sobre a criação de novas formas de viver (e de atuar) junto , como se expressam as singularidades? O que as atuais formas de mobilização e participação política, que entrelaçam as redes e as ruas como espaços híbridos trespassados por fluxos comunicacionais em diferentes direções, podem nos ensinar? Olhar para as diferentes formas de expressão das pessoas presentes à passeata pode apontar algumas pistas que analisaremos a seguir.

5.3.1 “A disputa é memética”

A tática de levar cartazes com mensagens às passeatas não é nova, tampouco surgiu no Brasil. Porém, é inegável que, nos últimos três anos, este tipo de autocomunicação ganhou força nos protestos populares, em todo o mundo. De modo geral, estes cartazes têm como função comunicar emoções, ideias, pautas e/ou indignações de cada uma das pessoas que compõem a multidão anônima. Aqui, nos lembramos de Castells (2012) quando afirma que a abertura a novas formas de relações sociais proporcionadas pela internet propiciou às pessoas vencer o medo e ir às ruas.

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É possível observar que o modelo de texto utilizado nas redes como facebook, twitter entre outras, se tornou o parâmetro para a construção dos cartazes que, muitas vezes, reproduzem a linguagem dos memes. Dadas suas pequenas dimensões e a aplicação de técnicas artesanais para comunicar uma ideia ou pauta  como composições de fotomontagem, letras escritas à mão, aplicação de cores, desenhos, entre outras , a mensagem só poderá ser lida por quem se aproxima do cartaz ou por meio das fotografias e vídeos que circulam amplamente pela internet.

Desse modo, joga-se na rede uma profusão de mensagens em tempo real que resulta em múltiplas e simultâneas narrativas sobre a experiência compartilhada nas ruas. Nesta dimensão, é possível perceber tais enunciados como manifestações das subjetividades. Entretanto, ao serem dispostas em um mesmo lugar na rede – como o Facebook, o Instagram, o Youtube, por exemplo – se transformam em subsídios à formação de uma memória coletiva sobre aquela experiência pública. O que foi produzido pela subjetividade, ao ser disponibilizado na rede, passa a constituir um conjunto de matérias-primas que tornam possível a reconstrução daquela experiência impessoal por meio da memória coletiva, assim, conferindo-lhes outros sentidos. Outra função implícita neste compartilhamento das experiências individuais por meio da autocomunicação nas redes é que os registros compartilhados podem propiciar outras experiências que estabelecem vínculos com aquele acontecimento, porém, à distância e em um tempo mais alargado.

Essa possibilidade de apropriação permanente e de reconstrução de discursos e narrativas se torna suporte para tornar visível a participação anônima de qualquer um na construção de um conhecimento que, em última instância, não pertence apenas àqueles que o elaboraram, mas que se torna um bem comum, à disposição da humanidade. Não há limites para a construção coletiva do conhecimento ou da experiência.

5.3.1.1 Em conta-gotas vem a polifonia do riso

A principal característica dos memes – e que fazem o seu sucesso na internet  é seu conteúdo jocoso. Sua força está na capacidade de provocar o riso, atuando como reforço ao caráter transgressor de manifestações populares que se propõem a se contrapor ao poder instituído, embora não sejam suficientes para se medir esta transgressão, sendo necessário observar, também, outros elementos presentes, podendo revelar apenas a dimensão festiva que estas comportam. Na experiência em questão, foi possível observar isto, sendo comuns as

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manifestações de deboche, escárnio, cinismo, entre outras formas de humor, que constituíam uma relação de mão dupla e um continuum entre o festivo e o político no qual, por vezes, transitavam perversidades.

Uma cena em particular nos chamou a atenção, pois nos parece emblemática das relações ambivalentes entre o humor e a política. Estamos nos referindo à cena em que um jovem branco, bem vestido, com aparência de estudante universitário, na faixa etária entre 18 e 22 anos, carregava um cartaz pouco visível em meio à multidão onde se podia ler a frase: “E agora um poema: eu poderia estar transando, mas estou protestando pra evitar que fodam com o país”. Os verbos “foder” e “transar”, apesar de se encontrarem no mesmo diapasão, operam aqui em sentidos opostos para evidenciar a escolha pessoal e política de quem trocou um prazer íntimo e privado pela participação em uma ação coletiva em defesa de um bem público. O trocadilho maroto vem de onde menos se esperaria.

Essa foi uma leitura feita durante a passeata, mas, no momento de elaborar esta descrição – exercício que constitui um tipo de experiência identificada por Duarte (2013, p. 5) como “atividade intelectual da realização científica” , uma segunda leitura da cena fez vir à tona novos elementos que nos remetem a processos de apropriação nos quais se dá uma resignificação simbólica (LEMOS, 2002 apud FRAGOSO; RECUERO; AMARAL, 2011).

No episódio narrado anteriormente, o enunciado do cartaz fazia um chiste a partir de um bordão que se tornou popular porque usado por pessoas desempregadas que se tornaram vendedores ambulantes no espaço público para chamar a atenção dos passageiros: “Eu podia tá matando, eu podia tá roubando, mas prefiro tá vendendo aqui para sustentar minha família...”. No interior do transporte coletivo, somos constrangidos por tais narrativas, que remetem a pequenas tragédias da vida cotidiana, demarcando os lugares de cada um no mercado de trabalho ou dele excluído. Quase que ao mesmo tempo, este mesmo bordão foi apropriado e ressignificado, na internet, por meio de memes ou outros objetos98 alusivos a temas inseridos em outros contextos.

Quando, no plano da memória, a frase da passeata é associada ao bordão do ônibus, produz-se um confronto entre estes enunciados. Se o riso entra em cena, ele pode operar em dois sentidos: um deles é o de confirmar a naturalização dos lugares sociais cristalizados no imaginário coletivo pelo preconceito. No entanto, interessa-nos aqui um segundo sentido propiciado por um jogo de contrários (RANCIÈRE, 2012a), ou seja, o riso que confronta os dois contextos pode provocar o rompimento em relação a uma lógica de posições sociais

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Em uma busca rápida no Youtube, a partir do trecho “eu podia estar matando, eu podia estar roubando” localizou-se pelo menos trinta vídeos diferentes que trazem este título ou como parte de sua identificação.

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estanques naturalizadas na sociedade: é natural que pessoas desempregadas, pobres, negras, façam seus biscates no ônibus para sobreviver, assim como seria natural supor que o rapaz branco não saísse de casa para protestar. Quando esse jogo de contrários é bem sucedido, o riso disruptivo favorece a percepção de uma dupla ousadia sugerida pelo cartaz.