• Nenhum resultado encontrado

3 ÀS CIDADES, A CIDADANIA

4.1 MARCO ZERO: O DIA 20 DE JUNHO NAS JORNADAS DE JUNHO

4.1.1 Por uma vida sem catracas: passe livre para todas as pautas

Tais demonstrações públicas tiveram início com manifestações pontuais contra o aumento das tarifas de transporte coletivo em cidades como Natal (16 de maio), Goiânia (21 e 28 de maio), São Paulo e Rio de Janeiro (ambas em 3 de junho). No dia 6 de junho, tomaram grandes proporções, quando o Movimento pelo Passe Livre realizou o “1º Grande ato contra o aumento da tarifa no transporte público da capital paulista”51

. Os conflitos com a polícia, que já vinham acontecendo em algumas cidades, se acirraram, em São Paulo, no dia 13 de junho, como descrevem Igor Carvalho e Felipe Rousselet, em edição especial da Revista Fórum:

O dia foi marcado pela truculência policial contra manifestantes e a imprensa. Sete repórteres foram atingidos por balas de borracha e mais de 200 militantes foram presos. Toda pessoa que estivesse portando vinagre era detida. O produto é utilizado para atenuar os efeitos do gás lacrimogêneo. (2013, p. 8).

O agravo da violência policial operou como uma espécie de senha para a resistência popular e adesão aos protestos. Assim, as manifestações se espalharam pelo país, ao longo das semanas seguintes, desta vez incorporando-se ao cotidiano de outras capitais como Brasília (a partir de 15/06), Belo Horizonte, Fortaleza, e cidades do interior, como Juiz de Fora,

51

Disponível em: <http://saopaulo.mpl.org.br/2013/06/07/nota-sobre-a-manifestacao-do-dia-6>. Acesso em: 5 ago. 2013.

82

Araraquara, Três Rios, que realizaram atos de protesto (ambas as capitais e cidade menores com registros a partir de 17/06)52.

A prisão de centenas de pessoas pelo porte de garrafas de vinagre, o mote que gerou uma reação crítica e galhofeira na internet, com a propagação da hashtag53 #Revoltadovinagre e de inúmeros memes54, evidenciando que a disputa política se dava entre as ruas e o espaço virtual, conferindo a este e ao fluxo de informações e afetos mantido entre os dois ambientes um lugar e um peso na dinâmica de reconfiguração da ágora. Isto fica explícito nas apreciações de Bruno Torturra, do Coletivo Mídia Ninja, em entrevista a Ronaldo Bressane (2013), na Revista Piauí: “A rede e a rua se fundiram. A guerra agora é memética, de imaginários”.

Nas semanas que se seguiram, diversas manifestações foram noticiadas. No dia 15 de junho de 2013, durante a solenidade de abertura da Copa das Confederações, em Brasília, cerca de 8.000 tomaram as ruas da capital, enquanto, dentro do Estádio Mané Garrincha, a Presidente Dilma Rousseff era vaiada pelo público, em um reforço às críticas que vinham sendo feitas aos acordos realizados entre o governo e a Federação Internacional de Futebol (Fifa) para assegurar a realização de eventos esportivos no país. Os gastos com obras de infraestrutura associados vis-à-vis à crítica às ações de despejos de moradores e às precárias condições de serviços públicos, especialmente nas áreas de saúde e educação, entraram na pauta das manifestações com slogans que pediam educação e saúde “no padrão Fifa”.

Dois dias depois, no dia 17, crescia o número de manifestantes na rua: 28 cidades de 12 estados tiveram manifestações notificadas.55 Tarde da noite, em Brasília, uma multidão ocupou a marquise do Congresso Nacional, proporcionando aquela que talvez seja a imagem mais emblemática do espírito do tempo que se experimentou naqueles dias (Figura 4).

52

O registro para datas e cidades varia conforme a fonte. Aqui, nos baseamos no hot site “Protestos 2013”, publicado no Portal Globo. Disponível em: <www.g1.globo.com/brasil/protestos-2013/infografico/platb/>. Acesso em: 30 jul. 2013. Comparamos com outras fontes: Wikipédia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Protestos_no_Brasil_em_2013>. Acesso em: 30 jul. 2013; e CARVALHO; ROUSSELET, 2013, p. 8-9.

53

Hashtag – ver definição no Glossário, ao final desta dissertação.

54

Meme – ver definição no Glossário, ao final desta dissertação.

55

83

Figura 4  Manifestantes ocupam Congresso Nacional – 17 de junho de 2013

Autor: Fábio Rodrigues Pozzibom – Agência Abr Fonte: Portal da Empresa Brasileira de Comunicação56

O que chama a atenção na foto de Fábio Pozzibom (Figura 4) é menos o fato de registrar o momento em que as pessoas tomaram a marquise do Congresso e mais a sombra de seus corpos dançantes projetados, justamente, na cúpula que representa a Câmara dos Deputados. Esta imagem parece tecer uma alegoria da atmosfera febril e dionisíaca que emanava das ruas sobre as paredes externas da “casa do povo”57

, questionando as limitações institucionais impostas ao exercício do poder popular. Sombras fantasmagóricas de cidadãos anônimos, sem rosto nem lei, que manifestavam, como potência dos afetos, o desejo de tomar parte nas decisões que dizem respeito ao bem comum. Na internet, esse zeitgeist das ruas proliferou por meio da comunicação direta, que gerou outras apropriações e experiências. Uma delas foi o meme criado a partir de uma foto similar do mesmo momento, sem autor identificado. (Figura 5)

56

Disponível em: <http://www.ebc.com.br/noticias/brasil/2013/06/manifestantes-deixam-pacificamente-area- em-torno-do-congresso-nacional-no>. Acesso em: 30 jul. 2013.

57

A estrutura do Congresso Nacional comporta duas torres centrais e um platô que serve de cobertura ao parlamento e sobre o qual se dispõem duas conchas – uma côncava e outra convexa. A primeira situa-se sobre o Senado, poder que representa os Estados brasileiros; a segunda sobre a Câmara de Deputados, que representa o poder do povo.

84

Figura 5  Meme sobre manifestação em Brasília – 17 de junho de 2013

Autor: Desconhecido. Fonte: Blog Conversa Cult58

Retomando a sequência dos fatos, ao longo da semana, a tensão com a polícia crescia. Entre 7 e 24 de junho, várias capitais anunciaram e/ou colocaram em vigor a redução das tarifas de passagem, por decisão dos governos ou por pressão de liminar, mas todas certamente associadas às pressões dos protestos. No dia 19, registraram-se conflitos graves e, neste mesmo dia, os governos municipal e estadual de São Paulo anunciaram a redução das tarifas de transporte público, mas a manifestação marcada para o dia seguinte foi mantida, como forma de comemoração pela vitória.

Várias análises – na época e posteriormente – concordavam que a repressão policial funcionara como um motor para o povo se manter nas ruas. O ápice ocorreu no dia 20 de junho, instituído por coletivos e movimentos como “Dia Nacional de Lutas por Transporte Público Gratuito e de Qualidade”. Foi quando 25 estados brasileiros  alguns dos quais já haviam decretado redução nas tarifas e outras medidas para melhoria do transporte coletivo  viram as ruas de suas capitais, além de Brasília, tomadas por multidões. Em, pelo menos, 15

58

Disponível em: <http://conversacult.blogspot.com.br/2013/06/as-conquistas-da-revolta-do-vinagre.html>. Acesso em: 30 jul. 2013.

85

destes estados ocorreram manifestações também nas regiões metropolitanas e no interior, somando um total de 136 cidades em todo o território nacional. 59

O fenômeno foi monitorado por organizações com tradição na luta por direitos no país, tanto quanto por empresas privadas, todos interessados em saber como esse fenômeno de comunicação impactava no campo político, porém, a partir de distintas motivações. De um lado, no campo dos movimentos sociais, encontra-se a análise feita por um dos diretores da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), publicada no site da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (ABONG), o historiador Evanildo Barbosa (2013). Para a associação, importa refletir os sentidos e significados dos protestos para a renovação da ação política no campo dos movimentos sociais comprometidos com um projeto democrático e popular:

As manifestações atuais – não a sua profusão de demandas nem no que elas irão dar, pois ambas necessitam de um tempo largo pra serem razoavelmente compreendidas – estão aí como combustível e combustão potencial de um novo ciclo de nossa cultura política. É sempre bom lembrar que o que ainda se tem de rico e expressivo em termos de cultura política nasceu da luta popular, razão pela qual em parte se explica porque as instituições clássicas estão tão desacreditadas na sociedade. Quem sabe a insatisfação das ruas não venha a se traduzir em novos horizontes utópicos e, desde aí, não se constituam novas possibilidades para transpor as muitas barreiras que ameaçam diariamente a vida de nossa população? (BARBOSA, 2013).

De outra parte, foi possível localizar uma pesquisa de mercado realizada por uma agência de comunicação, a Máquina Public Relations (Máquina PR), interessada em fazer projeções sobre o impacto dos acontecimentos na economia, a partir de possíveis mudanças no campo da comunicação, sinalizadas pelo uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) como instrumento potencializador de mobilização política. A empresa analisou o impacto das redes sociais digitais nos protestos e produziu um relatório que circulou amplamente na imprensa, cautelosa, mas interessada em entender o que se passava. Em artigo publicado na seção Opinião  Tendências e Debates, da Folha de São Paulo, no dia 1º de julho, Maristela Mafei e Marcelo Diego (2013), membros da direção da MPR, avaliaram ter sido este um acontecimento sem precedentes na comunicação direta entre pessoas, “que se torna ainda mais singular quando (e que os historiadores nos corrijam, por favor) o furor acontece em um país com inflação dentro da meta, baixa taxa de desemprego, expansão do consumo e eleições livres”.

59

Fonte: hot site “Protestos 2013”, publicado no Portal Globo. Disponível em: <www.g1.globo.com/brasil/protestos-2013/infografico/platb/>. Acesso em: 30 jul. 2013.

86

Segundo o levantamento produzido pela Máquina PR, entre os dias 19 e 21 de junho, as mensagens que circularam pela internet impactaram 94 milhões de brasileiros. O principal meio de compartilhamento de informação foi o Twitter, com 49,3% das citações; em segundo lugar, o Facebook, com 47,1%; e, em seguida, ainda que muito distante, o Google+, com apenas 1,6%. Os homens representam um universo de quase 56% dos autores de posts e as mulheres, pouco mais de 44%. As cidades com maior participação de usuários em volume de postagens foram Rio, São Paulo e Brasília. O Recife aparece em sexto lugar.

A análise, porém, não aprofundou o perfil das autorias considerando outras variáveis como, por exemplo, as hashtags, para monitorar o fluxo de comunicação. As principais

hashtags usadas sobre o assunto foram #vemprarua, que impactou 80,1 milhão de usuários,

seguida de #ogiganteacordou, impactando 60 milhões de pessoas.

Estes dados nos solicitam abrir um parêntese para ilustrar a diluição de fronteiras que se operou entre o mercado e a comunicação direta elaborada no ambiente produzido pelas manifestações. As expressões #vemprarua e #ogiganteacordou foram criadas pela publicidade e reapropriadas por profissionais do setor na produção de um meme em vídeo que circulou amplamente, às vésperas do dia 20 de junho. O filme intitulado Um pouco do troco (Figura 6) foi editado pela Atitude Records e Pandemideas como colaboração “para que o vírus da atitude consciente seja altamente transmissível, compulsivo, latejante”60

.

Em síntese, o videoclipe combina imagens e áudios de duas campanhas publicitárias comerciais – da Johnnie Walker e da Fiat , de reportagens feitas pela imprensa alternativa – TVT e AND Produções Audiovisuais –, de registros amadores, feitos por pessoas presentes às manifestações, no Brasil e no exterior, e de entrevistas capturadas pela televisão. Trata-se de uma peça de comunicação de forte apelo afetivo e se transformou em um dos principais

memes vinculados às passeatas que circularam às vésperas da passeata do dia 20 de junho,

circulando de modo viral na rede. Seu refrão, “vem pra rua/é a maior arquibancada do Brasil”, se tornou uma espécie de hino que convoca aos protestos, ocupando uma função agregadora, semelhante às palavras de ordem que fazem parte dos rituais estéticos dos protestos tradicionais. O vídeo será analisado no capítulo 4.

60

Um pouco do troco. Edição criada por: Atittude Records/Pandemídeas. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=VkOHilE4MbA>. Acesso em: 18 jun. 2013

87

Figura 6  Imagens do clipe Um pouco do troco – 17 de junho de 2013

Fonte: Pandemideas, Youtube

Ainda no que diz respeito ao estudo sobre a comunicação direta nas manifestações, o fluxo de mensagens trocadas individualmente entre pessoas pode ser observado no tríptico comparativo de mapas captados entre os dias 19, 20 e 21 de junho (Figura 7). No site em questão, trata-se de um gif animado por meio do qual é possível acompanhar o crescimento deste fluxo, ao longo do dia, entre 2h da manhã do dia 20 e 00h do dia 21 de junho61. O momento de maior tráfego de informações nas redes sociais ocorreu em horário noturno, coincidindo com a cobertura ao vivo dos telejornais e com os confrontos em Brasília  onde houve tentativa de invasão do Itamaraty , no Rio e em Campinas.62 A cor vermelha significa um alto tráfego de posts, a verde, médio tráfego, ao passo que a cor azul representa poucos

posts.

61

Mapa digital das manifestações, no dia 20 de junho entre 02h da manhã e 24h. Disponível em: <http://bit.ly/1tF9oWW>. Acesso em: 30 jul. 2013.

62

A este estudo seria interessante poder cotejar o local de emissão dos posts com detalhes sobre o local de onde partem as emissões – se das ruas onde ocorrem os fatos ou se de ambientes fechados a partir do qual se acompanha os acontecimentos à distância. Isto nos permitiria estabelecer análises sobre o uso da tecnologia digital e móvel na experiência de participação nos acontecimentos, mas o estudo não fornece dados suficientes que nos permitam fazer uma comparação entre o volume de posts feitos nas ruas e aqueles que circularam a partir de pessoas que estavam assistindo os telejornais, o que poderia ser interessante para a nossa observação.

88

Figura 7  Mapa digital comparativo do fluxo de mensagens sobre as manifestações, na internet – 19- 21 de junho de 2013

Fonte: Grupo Máquina PR/Brandviewer

Essa variação também pode ser cotejada com o gráfico (Figura 8), traçado a partir do número de participantes presentes por manifestações em um período de tempo mais extenso, que compreende o período de 17 a 30 de junho de 2013.63

Figura 8 – Estimativa do número de participantes das manifestações no Brasil  17-30 de junho de 2013

Fonte: Portal de Notícias da Globo, com base em: Polícia Militar, Polícia Rodoviária Federal, Datafolha, COPPE-UFRJ e NitTrans

63

89

Nos dias que se seguiram, após o pronunciamento da presidente Dilma Rousseff em cadeia nacional, a audiência com o Movimento Passe Livre, o atendimento a reivindicações  como a não aprovação da Proposta de Emenda Constitucional PEC nº 37/201164 e o anúncio de um plebiscito sobre a reforma política, as manifestações se mantiveram, entretanto, com um número menor de participantes nas ruas. A euforia inicial parecia ter arrefecido, porém, vários episódios davam a perceber que uma certa efervescência perdurava, alimentada por focos de tensão ocorridos entre manifestantes; entre manifestantes e poder público; entre manifestantes e peregrinos presentes à Jornada Mundial da Juventude e, por fim, pela publicização da tática de Black Blocs e o fenômeno da Mídia Ninja, que tem impactado a discussão sobre os rumos do jornalismo no país. A estas questões retornaremos adiante.