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3 ÀS CIDADES, A CIDADANIA

4.2 IMPRESSÕES SOBRE UM OBJETO EM MOVIMENTO NÃO IDENTIFICADO

4.2.8 Panorâmica final: “Tá tudo bem Mas tá esquisito ”

Não há dúvidas de que havia sido animador ver tanta gente na rua. Mas a atmosfera não favorecia encontros. O caminhar pelas ruas, aparentemente aleatório, parecia favorecer a dispersão, ativar o medo, sem possibilitar a criação de laços, por mais tênues que pudessem parecer, entre as pessoas. Esta é a diferença importante em relação aos protestos ocorridos em outros países nos quais ocorreram acampamentos ao longo de vários dias – tema ao qual voltaremos mais adiante: os encontros precisam de tempo para acontecer e possibilitar uma comunicação densa, compreendida aqui nos termos propostos por Marcondes Filho (2010, p. 31), ou seja, como “relação, como clima, ambiente criado entre pessoas no interior de um grupo, entre homens e obras. O acontecimento só corre se for capaz de atingir essa fulguração, essa mudança qualitativa no ato de comunicar”.

A cena de uma saudação feita com cartazes nos parece emblemática do que acabamos de afirmar. Esta nos chamou a atenção ao ocorrer já no momento da dispersão: na ponte Buarque de Macedo, duas pessoas se cumprimentavam por meio de um aceno com cartazes (Figura 30): estranha saudação aquela, entre mudos interlocutores, possivelmente, mais

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habituados a chats em salas virtuais de bate-papo ou a troca de mensagens com celulares, via SMS.

Figura 30  Saudação com cartazes– screen captures, frames, vídeo  Recife, 20 de junho de 2013

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No dia seguinte à passeata (Figura 31), o tema da “tomada simbólica” do território do Marco Zero seguiu repercutindo na comunidade Direitos Urbanos, no Facebook. Permanecia a avaliação que havia preocupado os debatedores no dia anterior ao protesto: a chegada ao ponto final constituiu-se, de fato, como um “Marco Zero”, esvaziado de sentido, como se pode ver por meio do debate do qual extraímos alguns trechos e publicamos a seguir (Figura 31).

Figura 31  Detalhe: Debate  Grupo “Direitos Urbanos” após 1º Ato “À Luta, Recife!” – 21 de junho de 2013

Fonte: Facebook – Página do Grupo Direitos Urbanos

Os posts acima abriram um debate acerca dos objetivos das manifestações e da necessidade de se ter um posicionamento claro quanto a isto, que pudesse ser demonstrável nas ruas. O diálogo se estendeu por dois dias, porém, neste momento, importa destacar os elementos que dialogam com a percepção acerca da ausência de rumo da passeata: a crítica à antecedência na preparação, que teria permitido ao governo estadual se antecipar e, com isto, esvaziar o sentido da passeata; o depoimento irônico, que coloca em dúvida a consistência do protesto, onde era “muito ‘bunitinho’ todo mundo DESFILANDO para o mundo ver...”, e que

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usa o destino, a praça do Marco Zero, como trocadilho, para reforçar o impacto nulo da iniciativa; e, por fim, a necessidade de haver um comum em torno do qual se organizar para construir uma pauta, em lugar de manifestações individuais de opiniões.

Essa questão nos faz refletir ser possível fazer muitos mapeamentos do ocorrido, traçar caminhos, identificar agenciamentos e subjetividades dispostos nesta experiência, se considerarmos, que a subjetividade não é dada pela natureza humana, mas produzida socialmente, sendo assumida e expressa de forma singular por cada pessoa, a partir da reapropriação de seus componentes. Assim, a subjetividade individual “resulta de um entrecruzamento de determinações coletivas de várias espécies, não apenas sociais, mas econômicas, tecnológicas, de mídia e tantas outras” como afirmam Guattari e Rolnik (2007, p. 42-43). Nesta perspectiva, a subjetividade tem uma natureza maquínica, não humana, o que nos permite pensar que ela seria produzida “artificialmente”.

Guattari (2012) argumenta que os processos de produção de subjetividades variam conforme o contexto em que ocorrem: assim, em sociedades tradicionais, mais fechadas, tendem a se manter circunscritas a um determinado território ao passo que, em sociedades mais abertas, como as sociedades ocidentais capitalistas, tais processos se dão em uma dimensão mais alargada, transnacional. Por outra parte, não podemos deixar de pensar que na medida em que as tecnologias de comunicação vêm provocando mudanças substantivas nas concepções de território e no lidar com as noções de espaço e lugar, elas impactam na constituição destes processos de subjetivação, os quais são atravessados por representações sociais, a exemplo dos padrões de gênero, raça/etnia e classe. Representações essas que se renovam ao longo da história, atuando no imaginário, produzindo referências macrossociais que balizam ideias, crenças e comportamentos cotidianos em campos tão diversos como o trabalho, a família, nas relações amorosas, nos modos de perceber e interagir com o espaço urbano.

Foi o que buscamos observar na leitura dos acampamentos que ocorrem em praças públicas no contexto das revoltas populares que vêm acontecendo desde 2011, mas que acreditamos não ser possível identificar em formas de ocupação do espaço urbano como as passeatas, fortemente marcadas pela dimensão da velocidade e do deslocamento permanente, tal qual pudemos observar na passeata do Recife.

Por fim, Guattari (2012) afirmava ser possível considerar, naquela ocasião (década de 80), um momento de crise do capitalismo. Entretanto, afirmava, o capitalismo ganhou a maior de todas as disputas, que é a disputa pelas subjetividades. Concordando com esta apreciação, refletimos que as atuais manifestações, em processo no Brasil e no exterior, sugerem que

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estamos a testemunhar ou participar, nos dias das “Jornadas de Junho”, de um novo enfrentamento no campo das subjetividades. O tamanho do desafio não é pequeno e sendo nosso propósito focar nas tensões que surgem nesta experiência pública, a emergência dos dissensos, paradoxos e contradições em processos comunicacionais serão um eixo a partir de onde tecer as análises a seguir.