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3 ÀS CIDADES, A CIDADANIA

4.2 IMPRESSÕES SOBRE UM OBJETO EM MOVIMENTO NÃO IDENTIFICADO

4.2.4 Imagem nº 3: traços perceptíveis de uma multidão anônima

De volta ao ambiente da experiência na rua, à medida que, junto com amigos, me aproximava e adentrava o cortejo da passeata, procurava observar as pessoas presentes e, a partir deste primeiro contato visual, traçar um perfil. O fato é que, analisando esta função de mobilização massiva da internet, em particular pelo Facebook, é possível inferir que esta propiciou a criação de um ambiente onde pulsavam pequenas expressões do contraditório que é próprio da democracia. Sentia-se ali a presença de “qualquer um” que se sentia afetado, tocado, motivado a mostrar sua indignação – independente de qual fosse ela. Na multidão, ladeavam-se gregos e troianos.

Era possível encontrar mulheres e homens de diferentes classes sociais: de profissionais liberais, aposentados, donas de casa, estudantes de ensino médio e universitário, brancos, à classe de trabalhadores precarizados – vendedores ambulantes, biscateiros, desempregados, esta última, majoritariamente composta por população negra. Dada a diversidade, seria impossível fazer um recorte preciso. E como este relato etnográfico busca lidar com as observações à primeira vista, que se constituem em pistas para possíveis análises, enfatizo aqui o que, ao saltar aos olhos, me chamava a atenção. Assim, era possível perceber que este aparente “recorte de classes” também correspondia a maneiras diferenciadas de participação nos acontecimentos daquele dia.

Assim, parte dos segmentos que poderiam ser identificados a princípio como classe média74 estava lá assistindo ao cortejo; em um grupo formado por homens e mulheres na faixa

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Reconhecemos haver hoje, no Brasil, uma forte disputa em torno do conceito de classe média. Esta, em nosso entender, seria motivada pelo fato de as políticas de distribuição de renda, que retiraram milhões de pessoas da miséria, terem vindo acompanhadas da produção de dados e de narrativas institucionais que visam

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etária superior aos 50 anos, seria possível especular sobre uma possível preocupação com filhos e filhas que estavam indo às ruas pela primeira vez, considerando os relatos de violência que vinham ocorrendo em outros estados. Outros grupos, que também pareciam ser representativos da classe média, eram formados pelos profissionais liberais, que tomavam parte da passeata como militantes de gerações anteriores ou, pelo menos, simpatizantes de movimentos de esquerda, desde há muito tempo.

Em determinado momento, era possível perceber que a divisão etária se distribuía de forma ordenada nas ruas: os jovens estavam à direita na pista e a ala mais velha à esquerda. Em outro momento, mais adiante, a calçada de uma loja (Figura 18), que dispunha de uma larga escadaria, de poucos degraus, parecia uma arquibancada, o que remetia ao jingle da propaganda que fez da rua “a maior arquibancada do Brasil”75.

Figura 18  “Camarote”: 1º Ato “À Luta, Recife!” – 20 de junho de 2013

Fonte: Acervo pessoal

Havia pessoas – parte das quais, nitidamente, era formada por trabalhadores precarizados ou filhos destes – que traziam o rosto parcialmente coberto de diferentes

consolidar no imaginário social a ideia de que tais políticas seriam responsáveis pela existência de uma “nova” classe média. Não há propósito, nesta dissertação, de abrir tal discussão. No entanto, fazemos esta demarcação por compreender que esta é uma questão conjuntural significativa quando se busca compreender as motivações das revoltas populares e as diferentes disputas que marcaram o ambiente político brasileiro a partir de junho de 2013.

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Estamos nos referindo ao jingle da campanha publicitária da Fiat, que tomou como eixo a Copa das Confederações. O jingle conclamava à multidão: “Vem pra rua/é a maior arquibancada do Brasil”.

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maneiras. Entre as mais comuns, destacava-se o uso de camisetas ou echarpes enroladas no rosto, deixando apenas os olhos à mostra, ou de fantasias e a máscara de Guy Fawkes, personagem da história em quadrinhos “V de Vingança”, que se tornou, em 2011, símbolo do coletivo de hackers conhecido como Anonymous.

Dias antes da passeata, uma notícia veiculada no Facebook chamava a atenção: as máscaras de V poderiam ser encontradas no mercado a preços variáveis conforme o local de compra fosse um shopping center ou o comércio popular do centro da cidade. Era perceptível que a escolha pelo anonimato transcendia o poder de compra das máscaras (Figura 19) e não se vinculava, necessariamente, a uma suposta intencionalidade de praticar atos de violência ou qualquer outro tipo de ilegalidade. Naquele dia, inclusive, os Black Blocs ainda não haviam se identificado enquanto tal, o que só viria a acontecer cerca de um mês depois, no Rio.

Figura 19  De camisetas a pratos de papel: máscaras – Recife, 20 de junho de 2013

Fonte: Acervo pessoal

Por volta das sete da noite, ou seja, relativamente cedo, parte da multidão já se dispersara, reforçando a impressão de que a manifestação havia sido breve. As pessoas que dela participavam, ou apenas apreciavam, pareciam ter pressa, inclusive, de voltar para casa. Foi quando se tornou possível distinguir um grupo de pessoas que se mantinha na Avenida Guararapes a tocar tambores de latas e outros instrumentos artesanais. No lusco-fusco, à distância, via-se que algumas daquelas pessoas, mal trajadas, aparentando ser jovens, tinham o rosto coberto: só não era possível distinguir o que traziam sobre a face. A luz noturna criava uma imagem estranha, distorcida da cena.

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Movida pela curiosidade, fui me aproximando e notei que uma delas acenava para mim, de modo insistente. Eu não conseguia identificar o grupo tampouco quem estava com a tal “máscara”. Ela passou a sacudir sua bolsa como que para me chamar a atenção. O adereço trazia uma foto de um grupo de mulheres feministas e havia sido produzido pela organização na qual eu trabalhara por muitos anos. A moça me chamava pelo nome de modo festivo, mas eu não reconhecia sua voz. Até que ela retirou a “máscara” causando-me dupla surpresa: tratava-se de ativista negra do movimento feminista, agricultora, artesã e poetisa, liderança comunitária, residente em um assentamento do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), na região do Agreste pernambucano. Foi só naquele momento que percebi o que ela e seus jovens companheiros usavam: um prato de papelão, do tipo que se usa em festas infantis, com dois buracos feitos com tesoura para dar lugar aos olhos e que se sustentavam em um elástico.

O encontro com Luiza, a amiga que se escondia por detrás da máscara feita de prato de papelão, provocou pensamentos vários. Sua figura doce, festiva, extremamente politizada rompia com as imagens criadas nos debates na internet e na imprensa acerca dos significados das máscaras em meio a uma multidão de anônimos, sendo muitas vezes associadas a perfis de vândalos, infiltrados, despolitizados. Tudo o que Luiza, por certo, não era. Por outro lado, ali onde a encontrara com seus amigos, o anonimato estava garantido, não sendo possível perceber se por um gesto político, performático ou jocoso. Criava-se ali uma atmosfera ilusória capaz de propiciar à imaginação as mais variadas fantasias, o que remete à dupla face do anonimato (FERNANDEZ-SAVÁTER; SAURA, 2009) cuja força se encontra na capacidade de afetação e não em ideologias e certezas, ao passo que sua fragilidade reside, justamente, na dificuldade que temos de “articular o existencial e o político”. Ao longo dos meses subsequentes, deu-se um intenso debate sobre o tema, muitas vezes movido por sentimento de desconfiança.

Ao mesmo tempo, em meio à passeata (Figura 20), era possível distinguir outros grupos de trabalhadores precarizados que se misturavam à multidão de ativistas, porém, exercendo suas atividades profissionais  como vendedores ambulantes, catadores de material reciclável – além de grupos de homens, mulheres e crianças sem ocupação definida. Os vendedores ambulantes, empunhando caixas de isopor, sacolas de pipoca, carrocinhas ou bicicletas com salgadinhos, cachorros-quentes e bebidas ofereciam suas mercadorias, aproveitando que grande parte dos estabelecimentos comerciais havia fechado suas portas. As ruas se encontravam coalhadas de lixo, ao passo que catadores de materiais recicláveis arrastavam suas pesadas carroças (conhecidos como burros-sem-rabo) por entre a multidão ou

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tiravam um momento de descanso para retomar o trabalho intensificado pelo grande contingente de pessoas, o que, por sua vez, aumentava o volume de lixo nas ruas. Sendo assim, esta será uma questão à qual nos interessa retornar no capítulo 4.

Figura 20  Trabalhadores precarizados no 1º Ato “À Luta, Recife!” – 20 de junho de 2013

Fonte: Acervo próprio

Inesquecíveis eram os diversos cheiros que se sucediam ao longo do caminho. No início, era a fumaça das motocicletas que faziam a segurança. O odor fétido de restos de comida e urina se espalhava por boa parte do percurso. De modo pontual, chegavam outros odores: da única lanchonete aberta na Avenida Conde da Boa Vista emanava um forte cheiro de pizza; já no final, no Bairro do Recife, pairava um leve odor de maconha, vindo de diferentes direções, para ser disperso pela brisa marinha.

Dispersa se encontrava também a parte da multidão que se dispôs a chegar ao Marco Zero. Muita gente ficou pelo meio do caminho. Na praça em frente aos arrecifes, formaram-se grupos de pessoas sentadas no chão, outras em pé, conversando e descansando. A sensação ao se chegar ao local era de dúvida: “E agora?” Não havia bandeiras, não havia ato público, não havia lideranças “deitando falação”. Era estranho chegar ali, à beira do mar, e se deparar com uma cena que parecia um anticlímax da passeata, bem ao lado de um porto que não opera mais, justo no bairro que é o “coração financeiro” da cidade – praça que se tornou um espaço

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simbólico de concentrações políticas associadas às tradições da esquerda pernambucana. Confirmando as preocupações levantadas, antes da passeata, no âmbito da comunidade Direitos Urbanos, no Facebook, ali nada acontecia.

Figura 21  Grand finale: 1º Ato “À Luta, Recife!”  Marco Zero, Recife, 20 de junho de 2013

Fonte: Site Mundonovelas

Hora de voltar. Logo em seguida, em meio a um momento já bastante dispersivo, por volta de 19:30, um grupo conversava de forma animada e um homem aos gritos corria por um pequeno trecho na rua, convidando os demais para juntos se dirigirem à sede da Prefeitura, situada a pouco metros, logo adiante, em uma das artérias do bairro, a Avenida Cais do Apolo. Parecia uma brincadeira sem maiores consequências. O grupo ficou por ali e segui com meus amigos em retorno para casa. O fato é que, no dia seguinte, a imprensa noticiou que um grupo de pessoas havia, de fato, atacado a prefeitura.76 Jamais saberemos se foram as mesmas pessoas que vimos.