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3 ÀS CIDADES, A CIDADANIA

4.2 IMPRESSÕES SOBRE UM OBJETO EM MOVIMENTO NÃO IDENTIFICADO

4.2.5 Imagem nº 4: uma pauta para chamar de sua

Compartilhar à distância e em tempo real o acontecimento nas ruas é uma prática incorporada à experiência das manifestações em todo o mundo. Naquele dia, não foi diferente. Aproveitando o fato de estar acompanhada de uma amiga, fizemos o mesmo, logo nos

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“Polícia impede ataque à prefeitura do Recife” é o título da notícia veiculada pelo jornal online Brasil 247, no dia 21 de junho de 2013. Apesar de o título falar em impedimento, a matéria afirma ter havido quebra de

vidraças no edifício da prefeitura. Disponível em:

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momentos iniciais de transitar pela passeata. Enquanto eu fotografava, pedi a ela para transmitir, pelo meu celular, a “cobertura” da passeata para outra amiga, antiga companheira de militância feminista, hoje residente na África do Sul. Esta nos dizia: “Tô aqui exercitando a calma!! Louca p/ tá aí”. A cobertura e o diálogo a três vozes e tecladas giravam em torno dos sentimentos que moviam as pessoas à rua e na rua cujas evidências podiam ser observadas nos cartazes. Era, portanto, um momento espontâneo de partilha da experiência sensível, em tempo real, que se dava entre os âmbitos local e internacional, na rua e na rede, movimento este que se observava em outros pontos do país e no exterior (Figura 22).

Figura 22  Montagem com fotos de cartazes individuais em cidades – junho de 2013

Locais das fotos por linhas: 1ª) Brasília e Portugal; 2ª) Itabuna e local não identificado; 3ª) São Paulo e Parnaíba; 4ª) Ambas no Recife

Fontes: Agência Estado; Agência EBC; Publicitáriopobre. Files; Acesso 343 e acervo pessoal

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Seja com o intuito de propagar “as vozes das ruas” ou de documentar acontecimentos, dando suporte à cobertura jornalística, seja com o objetivo de proceder à produção da memória coletiva que reconstrói a experiência vivida, o fato é que as manifestações sempre contaram com o apoio de aparatos técnicos, dos rudimentares aos mais sofisticados: megafones, trios elétricos, carros de som, câmeras fotográficas, câmeras de vídeos, gravadores portáteis. Parte dessas ferramentas ainda se faz presente. Mas, aos poucos, são incorporados novos objetos ou estas vão sendo substituídas. As atuais manifestações – e a passeata do dia 20 de junho não era diferente – conferem novos usos e sentidos ao telefone celular com processadores de dados e acesso à internet, incorporando a convergência digital à experiência do ativismo ao lado de faixas e cartazes, provocando mudanças na performance das ruas e na sua comunicação.

Figura 23 – Panorâmica do 1º Ato “À luta Recife!” – 20 de junho de 2013

Fonte: Folha de Pernambuco. Autor da foto: Bruno Campos

Cartazes expostos na passeata se destacavam pela quantidade e conteúdos diversificados apresentados em textos, fotos ou combinações criativas dos dois (Figuras 22 a 29). Ao mesmo tempo, compunham um estranho balé de corpos dedicados a poses instantâneas, para serem documentados e expostos em fotografias e vídeos para a internet,

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registros de expressões populares e anônimas sobre a presença de qualquer um em processos históricos, por tantas vezes negada pelas elites.

Figura 24 – Experiência sensível e participação popular: 1º Ato “À Luta, Recife!” – 20 de junho de 2013

Fotos: Acervo pessoal

Era possível encontrar críticas à corrupção e a um sistema político representativo que deixa pouco espaço à participação popular direta, ainda que esta seja prevista pela Constituição; reivindicações de ampliação dos investimentos para garantir a qualidade dos serviços públicos, em especial, no que se refere a mobilidade, saúde e educação; defesa do Estado laico; exigência de transparência no uso de recursos públicos associada à crítica aos grandes eventos esportivos; direito à terra e à existência da população indígena; não violência policial... Assim, se compôs um mosaico de diferentes questões, dirigidas ao poder público, mas também à comunidade da cidade, como uma colcha de retalhos atando diferentes territórios de percepções, sentimentos, experiências. O uso de frases de efeito, associadas a bordões que se tornaram populares serviam de âncora para a construção das mensagens. Por vezes, este sentido era distorcido, como no exemplo a seguir, onde a força da rima valia mais do que criar um nexo de ligação entre o chavão e a afirmação dos afetos movidos por problemas éticos: “Dias sim, dias não. A nossa revolta é contra a corrupção”.

A concretude do problema que motivou as manifestações estava ali em bem humoradas sentenças, ressaltando a distância entre governantes e cidadãos, entre as políticas públicas e os problemas da vida cotidiana: “Por um Barro-Macaxeira mais humano”; “Isso porque o governo não anda de Barro-Macaxeira”77. Havia também mensagens dirigidas à própria população, reforçando mobilizações anteriores que já ocorriam na cidade desde 2012,

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Referência à linha de ônibus 202, que faz o trajeto entre dois bairros localizados na periferia do Recife: Barro (Região Político Administrativa /RPA 5) e Macaxeira (RPA 3), conhecida na cidade pelas péssimas condições de mobilidade que oferece aos usuários.

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com o movimento #OcupeEstelita: “A cidade é nossa. Ocupe-a”. Ao mesmo tempo, era perceptível a preocupação de articular o problema do dia a dia com questões estruturais no campo político: “Não é pelos 0,20. É pela rearticulação do povo brasileiro”. Ao mesmo tempo, o caráter difuso das reivindicações, tantas vezes criticado, ganhou uma explicação bem humorada: “É tanto problema que não cabe em um cartaz”.

Entretanto, para se compreender a renovação do sentido político que se buscava alcançar por meio das manifestações ocorridas no país, é preciso dirigir a atenção para além das agendas, pautas e palavras de ordem. Tal sentido se expressa também por meio da manifestação dos afetos e das subjetividades, que recuperam e valorizam as dinâmicas do sensível como aspecto intrínseco à construção do comum.

Figura 25 – Detalhes de cartazes: 1º Ato “À Luta, Recife!”  20 de junho de 2013

Fonte: Acervo pessoal

É nesse marco que se afirma a defesa da “liberdade” como princípio democrático de superação do fundamentalismo cristão, que nega as escolhas no campo da sexualidade e da

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reprodução, que as ampara como decisões de foro íntimo, como direito inalienável que precisa ser amparado pelo Estado.

Já a urgência da “felicidade” pode ser lida em duas perspectivas distintas e conflitantes: como reforço ao hedonismo despolitizado, bastante corriqueiro nas redes sociais, ou como o resgate de um sentimento que está longe de ser satisfeito, em um contexto onde predominam valores neoliberais, os quais tornam urgente a afirmação do individualismo e a negação da alteridade, o acúmulo de prestígio e riqueza em detrimento da partilha do bem comum. Um contexto no qual a competição e não a solidariedade se tornou o caminho mais curto para assegurar um lugar ao sol, trasnformando as noções de liberdade e felicidade em mercadorias acessíveis a quem tiver conta bancária e cartão de crédito.

Figura 26  O discurso conservador: 1º Ato “À Luta, Recife!”  20 de junho de 2013

Fonte: Acervo pessoal

Sendo esta uma manifestação convocada espontaneamente, a perspectiva conservadora também se fez presente, sendo perceptível por meio da defesa de posicionamentos que, amparados no preconceito, reforçam as condições para a manutenção das desigualdades sociais. Eram exemplos pautas como: proibição do aborto e aprovação do estatuto do nascituro, permissão da cura gay, redução da maioridade penal para jovens de 16 anos, pena de morte e combate à corrupção (Figura 26), esta última, muitas vezes associada à deslegitimação das instituições políticas. Importa observar que, aparentemente, esta presença parecia ser minoritária na passeata. Entretanto, não o podemos afirmar com segurança e isto

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por dois motivos: primeiro, porque muitas dentre as pessoas presentes à manifestação não portavam qualquer mensagem; segundo, porque, ao longo dos dias que antecederam a manifestação, a página do evento #ÀLutaRecife!, no Facebook ficou repleta de enquetes e de diálogos onde predominavam expressões de autoritarismo, marcadas por preconceito e intolerância, incompatíveis com princípios e valores democráticos.

No entanto, importa frisar aqui esta questão com a finalidade de evidenciar o grau de dificuldade de se interpretar o conjunto de emoções que se dispunham nas ruas naquele momento, sendo possível, apenas, tecer algumas aproximações a partir do que se dispunha nos cartazes vistos.