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3 ÀS CIDADES, A CIDADANIA

3.4 COMUNICAÇÃO E EXPERIÊNCIA SENSÍVEL

Vimos que a ruptura do dualismo entre razão e afeto não decorre apenas de processos vinculados à criação e fruição artísticas, estando presente também nas sensações, percepções e construção de pensamentos que se constituem no cotidiano. Deste modo, conferem uma dimensão estética à experiência – seja esta ordinária ou singular –, tornando-a uma experiência sensível.

Dialogando com essa perspectiva, as contribuições de Ciro Marcondes Filho, em sua abordagem sobre comunicação, se tornam significativas para esta dissertação. Dada a intensidade do fluxo de informações a respeito destes episódios em circulação e visto que ele

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se torna parte constitutiva de sua existência, parece-nos particularmente importante refletir acerca dos fundamentos da comunicação propostos pelo autor. Concordamos com sua concepção de que ela se dará à medida que nos modifique a maneira de ver, sentir, pensar o mundo e que propicie uma reconfiguração do pensamento, uma possibilidade de encontrar um pensamento que, até então, não sabíamos existir em nós. E “essa descoberta de algo que não se sabia antes é o expor-se à ‘violência’, é o ato de a comunicação nos fazer pensar nas coisas, nos outros, em nós mesmos, na nossa vida” (MARCONDES FILHO, 2010, p. 22).

Por esses motivos, interessou-nos fazer uso, neste estudo, de uma abordagem da comunicação que a diferencia da sinalização, já que “tudo ao nosso redor produz sinais que podem ou não ser convertidos em componentes do processo comunicacional” (MARCONDES FILHO, 2010, p. 15); porém se essa conversão se dará ou não, é contingência. Para que os sinais se transformem em informação, é preciso que haja interesse, intencionalidade por parte de quem os recebe. Desta forma, a comunicação que provoca o pensamento “violento” faz com que este se manifeste à revelia de quem por ele é afetado. Ao mesmo tempo, a comunicação não se confunde com informação, na medida em que esta tem apenas o poder de nos confirmar aquilo que não abala nossas certezas, mas, por outro lado, nos faz sentir seguros do que somos e pensamos.

É nesse contexto que a mediação da experiência das revoltas populares, realizada por tecnologias de comunicação e informação (TICs) tem se tornado capaz de proporcionar experiências sensíveis manifestadas por meio de posicionamentos, ações e reações – seja nas ruas seja, sobretudo, nas redes sociais digitais – que destacam a força política de um ato comunicativo.

Considerar as TICs como artefatos mediadores de experiências, que as fazem transitar entre o ambiente virtual e o mundo real, nos leva a postular que o seu uso durante a ocorrência de uma determinada experiência abre possibilidades para que o impacto sofrido pelo sujeito se dê na intersecção entre o que se passa nas ruas e nas redes digitais, ganhando assim contornos imprevisíveis.

Isto porque os modos de operação da rede mundial de computadores e os tipos de interação social que proporciona permitem que a web estabeleça “uma dupla relação de separação e não separação entre arte e vida” (RANCIÈRE, 2012a, p. 59), onde se inscreve um regime estético do pensamento. Ao mesmo tempo, ao tornar acessível, em larga escala, um amplo conjunto de produtos comunicacionais criados no contexto das revoltas populares, o ciberespaço se constitui como “forma de recorte do espaço comum e modo específico de visibilidade”, virtualmente disponível a qualquer um. Em outras palavras, este espaço tanto

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acolhe as diferentes formas de expressão da pessoa comum quanto enseja experiências estéticas individuais e/ou coletivas, instigando o debate político sobre elas (RANCIÈRE, 2012a, p. 59).

No caso brasileiro, um importante exemplo do que acabamos de afirmar é a experiência da Mídia Ninja cujas coberturas em tempo real das manifestações de rua e dos temas correlatos são marcadas pela não diferenciação entre sujeito da ação e sujeito comunicador da ação. Assim, suas transmissões ao vivo parecem convidar o espectador à cena onde transcorre a ação, aproximando-o de sua posição de sujeito assim como da atmosfera produzida pelo calor dos acontecimentos. Esta é potencializada pelo microfone aberto por meio do qual a narrativa dos fatos se mistura a todos os demais sons que vazam da cena, independentemente de eles serem imprescindíveis à compreensão dos fatos em curso ou não. Não há roteiro, edição; a reportagem se compõe daquilo que o momento oferece, mas também do lugar posicionado que o sujeito portador da câmera escolhe como seu lócus na experiência.

Em nossa compreensão, trata-se de uma abordagem comunicacional que busca ultrapassar a dicotomia entre a razão e o sensível, desconstruir papéis tradicionais na produção da notícia e estabelecer outras formas de interação com o espectador, aproximando a comunicação das relações entre estética e política para refletir sobre seu papel nos processos atuais de mobilização social. Neste sentido, concordamos com Marcondes Filho (2010), quando afirma que este tipo de comunicação se aproxima da arte como forma de apreensão sensível do mundo e que

[...] ocorre igualmente nas formas sociais maiores de contato com objetos, especialmente com objetos culturais das produções televisivas, cinematográficas, teatrais, nos espetáculos de dança, nas performances, nas instalações, nas possibilidades de criação de situações similares, inclusive em ambientes de relacionamento virtual (MARCONDES FILHO, 2010, p. 23).

Se a comunicação – em contraposição à sinalização e à informação – é aquela que faz o sentir e o pensar como partes de um mesmo movimento estético, ela precisa se configurar como um dos elementos que permitirão a expressão pública do desentendimento, podendo dar sustentação ao tensionamento daí decorrente que é próprio do caráter estético da política. Esta, portanto, nos parece ser uma chave de leitura importante para tecer uma análise crítica da comunicação destes movimentos nas redes sociais digitais, de forma a compreender em que medida eles guardam coerência com a tensão que buscam imprimir por meio destas manifestações populares ou se contribuem para sua diluição.

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